De anti-Édipo a messias de farda
Hugo Chávez é psicanalisado, elogiado por amigos e criticado pela oposição em biografia polêmica
Hugo Chávez é obcecado pelo poder, "uma obsessão que, como toda obsessão, se denuncia por si mesma", dizem seus biógrafos Cristina Marcano e Alberto Barrera Tyszka, ela jornalista, ele colunista do jornal El Nacional, ambos com 46 anos. Cristina e Alberto deixam claro, logo na nota preliminar, que a biografia Hugo Chávez sem Uniforme: Uma História Pessoal, concluída há dois anos e lançada só agora no Brasil, não é nem uma hagiografia nem pretende fornecer munição a seus opositores. Tampouco acreditam em biografias imparciais. "Toda imparcialidade é artificial", dizem, citando o filósofo alemão Lichtenberg (1742-1799). Lichtenberg também disse que "quem se encontra enamorado de si mesmo tem ao menos a vantagem de ser incomodado por poucos rivais", o que se aplica perfeitamente ao presidente venezuelano.
A polarização provocada pelo presidente da Venezuela, dentro e fora o país, não permite nem indiferença acadêmica nem falsa neutralidade, defendem os biógrafos. Esclarecida a posição dos autores, eles concluem que Hugo Chávez criou um país "onde tudo é legal, mas inadmissível", um país onde o presidente "vociferou, numa manifestação pública em 2004, que a oposição jamais voltará ao poder". Cristina e Alberto, parece claro, não integram a parcela da população venezuelana que vê Chávez como Simón Bolívar ressurrecto ou crê que a História seja um exercício de salvação. Desnecessário dizer que a dupla não o vê sequer como um enviado especial para concluir a obra deixada inacabada pelo Pai da Pátria.
O menino pobre criado pela avó pode, sim, ter deitado numa cama de palha, mas não é o messias. Será um revolucionário, um neopopulista pragmático e vaidoso? O pêndulo inclina-se para a segunda alternativa. Chávez detém o poder de resolver, hoje, a crise energética na América Latina - o que inclui fornecimento de gás a preços módicos para o Brasil, considerando sua influência sobre o companheiro boliviano Evo Morales. Militar até a medula, entende de estratégia como poucos. Foi preso ao tentar um golpe contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em 1992, escapou de um outro golpe em 2002 e não se cansa de repetir que é a reencarnação do estrategista militar Ezequiel Zamora, morto em 1860 com um tiro na cabeça (pelos próprios companheiros, segundo dizem). Há, no entanto, quem diga ser ele o próprio Bolívar caminhando sobre a Terra. Por via das dúvidas, Chávez, em algumas reuniões, pediu para que se deixasse vazia a cadeira do Libertador, assegurando que seu espírito descia e sentava-se nela para iluminar seu caminho.
Nenhum médium confirmou a suspeita até hoje, mas o historiador Teodoro Petkoff dá seu veredicto: "Chávez é um caudilho populista capaz de estabelecer um contato místico com a massa", ou seja, uma versão extemporânea de Perón sem Evita. Sortudo na política, não se deu tão bem no terreno amoroso. A biografia da dupla Marcano/Tyszka traz depoimentos de ex-amantes e colaboradoras que hoje fazem oposição ao presidente, como a historiadora Herma Marksman. Companheira de luta na conspiração liderada por Chávez em 1992, Herma arriscou o pescoço ao esconder militares conspiradores só para ouvir pelo rádio, pela voz do próprio, que foi Nancy Colmenares, sua primeira mulher, quem o ajudou na sublevação. Herma ficou furiosa.
Herma, na biografia, conta que as autoridades colombianas chegaram a investigar Chávez por uma suposta vinculação com um ataque guerrilheiro a um posto militar venezuelano, em 1995. Jesús Urdaneta, que dividiu um quarto com o presidente nos tempos da Escola Militar, teria brigado com ele justamente por esse vínculo indesejável com a guerrilha colombiana na época em que dirigia o Serviço de Inteligência venezuelano (até 1999), quando decidiu deixar o cargo. Urdaneta, que investigou 40 casos de corrupção em apenas um ano no governo Chávez, dá seu depoimento. Durante um almoço, ele teria dito ao presidente: "Veja, Hugo Chávez, eu me levantei contra um governo vagabundo e corrupto, e o seu é a mesma coisa! Eu o informei das vagabundagens de Luis Miquilena, de toda a infra-estrutura de poder e corrupção que veio crescendo, e não vi em você disposição de enfrentar isso." Chávez deu de ombros. Criticou Urdaneta por querer mudar o estado das coisas da noite para o dia.
Disposto a ser o garoto-propaganda da esquerda internacional, Chávez parecia mais preocupado em aparecer na televisão e criar uma Al-Jazira venezuelana com o consórcio de Cuba e aliados. "Al-Jazira pan-americana" é como se referem os opositores da rede Telesur, entre eles o escritor paquistanês Tariq Alí. Projeto concebido em Havana e concretizado com os petrodólares de Chávez em maio de 2005, a Telesur é uma estação de televisão com sede na Venezuela, que transmite programas informativos para toda a América Latina e quer ser uma CNN de esquerda.
Chávez adora falar de seus projetos para o povo no programa Aló Presidente, transmitido aos domingos por rádio e televisão estatal (quatro canais estão sob seu poder na Venezuela). Observam seus biógrafos que Chávez errou de profissão. Deveria ser animador de talk-show. Excertos do discurso presidencial selecionados pela dupla de biógrafos respondem pelos momentos mais engraçados e ao mesmo tempo reveladores do livro. Chávez chama Bush de assassino e genocida para cativar seus opositores, mas não fala em suspender o fornecimento de petróleo aos EUA (cerca de 70% da produção venezuelana). Fala em liberdade, mas não da Lei Orgânica de Telecomunicações que, no artigo 209, como assinalam seus biógrafos, concede ao Executivo o poder de suspender a transmissão de qualquer meio de comunicação para resguardar os interesses da nação. Já vimos essa história antes, aqui mesmo, no Brasil. Chama-se censura.
O professor de História Moderna e Contemporânea Francisco Carlos Teixeira da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que assina o prefácio da biografia de Chávez, recomenda ao leitor livrar-se dos preconceitos se quiser saber o que significa o socialismo "mestiço, confuso, polêmico e generoso" representado por líderes que, a exemplo de Chávez (Morales, entre eles), lançam pontes para o futuro com pilares do passado (Rousseau, Marx ).
Os biógrafos não ignoram o fato de Chávez, filho de um humilde professor, combinar os ideais românticos das lutas anticolonialistas, tão típicas da América do Sul, com certa dose justicialista. Ele, afinal, colocou os pobres na agenda. Ressalvam, no entanto, que o golpista e o democrata continuam sendo personalidades irreconciliáveis. Chávez alimentaria uma retórica bélica para fazer crescer a paranóia dos venezuelanos, militarizando a sociedade e demonizando os EUA (30% da população acreditam numa possível invasão americana). Não são raras as declarações intempestivas de Chávez ameaçando queimar os poços de petróleo e destruir o império americano se Bush cruzar a fronteira.
O grande ausente na biografia de Chávez é seu amigo Lula, presidente do Brasil, que faz uma passagem meteórica lá pelo meio da biografia, etapa dedicada a uma revelação engraçada. O livro fetiche do líder venezuelano, que adora bons ternos e relógios Cartier, é - ou pelo menos era - O Oráculo do Guerreiro, do argentino Lucas Estrella. Obra aparentemente de auto-ajuda que, tarde demais, Chávez descobriu ser um código para gays. Nunca mais quis saber do tal oráculo. Jogou o livro no lixo, ao que parece.
Perfil do líder ANTI-ÉDIPO: "Eu sentia que ele gostava mais do pai que da mãe. Acho que lhe fez muitíssima falta o calor da mãe nos primeiros anos." (Herma Marksman, professora de história e ex-amante de Chávez)
ALMA DO OUTRO MUNDO: "Vou dizer-lhe uma coisa que não disse a ninguém, mas sei que é verdade. Eu sou a reencarnação de Ezequiel Zamora." (Chávez para Jesús Urdaneta, colega na Academia Militar e chefe da Inteligência até 1999, quando descobriu ligações do líder com a guerrilha colombiana)
NARCISO: "Chávez tenta que o amem e, se não o amam, começa a ter reservas. Ele precisa ser admirado, faz parte de seu narcisismo." (Edmundo Chirinos, ex-psiquiatra de Chávez)
SOLDADO: "Chávez é uma fortaleza militar em movimento, e exerce muita atração para a sociedade venezuelana não republicana, aquela que não depende ainda da cidadania cívica, mas da chegada de um messias. Se esse messias usa farda e tanque de guerra, essa parte da sociedade se sente mais segura." (Elías Pino Iturrieta, historiador)
Estadão
Um comentário:
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