30.11.08

O ROSTO CLANDESTINO DA ABIN

VEJA localizou o espião que, por descuido, revelou a atuação da inteligência oficial em operação secreta.

Ex-segurança do presidente Lula, o tenente Antônio Leandro está lotado no Gabinete de Segurança Institucional


Expedito Filho

Fotos Manoel Marques e Marcello Casal Jr.
HISTÓRIA DE COBERTURA
O general Jorge Felix, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, criou um mal-estar dentro do Palácio do Planalto ao inventar uma história para ocultar a identidade e a verdadeira missão do espião que fora requisitado da PM de São Paulo para a equipe de segurança do presidente da República

Os espiões figuram no imaginário coletivo como pessoas discretas, misteriosas, dotadas de habilidades especiais e normalmente envolvidas em missões perigosas e secretas. Exceto em relação ao último quesito, o tenente Antônio Leandro de Souza Júnior, que aparece na foto ao lado, pouco tem a ver com esse perfil. Policial militar de São Paulo, em seus registros funcionais consta que ele foi requisitado em 2005 pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), no Palácio do Planalto, para integrar a equipe de segurança do presidente Lula. Recentemente, porém, seu nome apareceu na lista dos 84 espiões da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que atuaram na operação que investigou o ex-banqueiro Daniel Dantas. O que apenas um círculo muito restrito do poder sabe é que foi graças a um descuido do tenente Leandro que eclodiram as primeiras pistas sobre a ação clandestina dos agentes do estado e, por conseqüência, a revelação da existência de uma rede de espionagem ilegal que monitorava políticos, jornalistas e autoridades, entre elas o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, que teve seus telefones criminosamente grampeados pelos espiões a serviço da Abin. VEJA localizou o tenente Leandro de Souza em Jundiaí, cidade distante 63 quilômetros de São Paulo.

Alan Marques/Folha Imagem
ALVO INDIRETO
Gilberto Carvalho, chefe-de-gabinete de Lula: transformado em suspeito depois de receber informações falsas repassadas pelo GSI sobre o flagrante do espião que atuava no Rio de Janeiro


Para entender seu papel no episódio é preciso retroceder a 27 de maio passado. Naquele dia o tenente Leandro foi flagrado por policiais da Delegacia Anti-Seqüestro do Rio de Janeiro em "atividade suspeita" numa avenida da Zona Sul da cidade. Estava a bordo de um Astra prata de propriedade da Abin, estacionado em frente a um prédio de apartamentos. Inquirido sobre o que fazia ali, o militar exibiu uma identidade funcional da Presidência da República e se identificou como "tenente Marcos". E, seguindo a versão oficial divulgada pela Abin na ocasião, respondeu que estava em missão sigilosa de acompanhamento de "espiões russos". De maio até os dias atuais, a versão de Leandro mudou bastante. Em entrevista concedida na porta de sua casa, no domingo, 23, o tenente disse que naquele dia seguia os passos de um empresário, mas que "não sabia quem era". Ele confirma ter recebido a missão de seus superiores da Abin, mas nega que tenha se identificado como tenente Marcos e que tenha dito que vigiava a atividade de espiões russos. Leandro conta que só soube posteriormente que seu alvo se chamava Humberto Braz, um ex-sócio e atual lobista do ex-banqueiro Daniel Dantas. Diz o tenente: "Eu não sou louco de mentir, apresentar um documento falso, uma história falsa, e levar um tiro".

A confissão do espião, que continua vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional, constrange e cria enormes embaraços para seu chefes – o ministro Jorge Felix, do GSI, e o delegado Paulo Lacerda, diretor afastado da Abin. O tenente não poderia estar ali, dentro do Astra, vigiando russos, alemães ou lobistas de ex-banqueiros encrencados com a polícia e a Justiça, como é o caso de Daniel Dantas. Mas estava. Foi abordado por policiais que suspeitaram dele e acabou abrindo a brecha que escancarou toda a gama de abusos e ilegalidades da operação da qual ele participava, segundo ele próprio, sem saber do que se tratava. Essa operação, batizada de Satiagraha, já entrou para a história das polícias por ter produzido o mais risível e destrambelhado relatório de todos os tempos, escrito em um idioma com enorme parentesco com o português, que teve de ser reescrito recentemente de modo que ganhasse um mínimo de lógica interna. O alvo principal da investigação é o tal ex-banqueiro Daniel Dantas, um tipo sempre encrencado com a Justiça e a polícia, que se julga mais esperto do que a esperteza e que, fossem os policiais menos amadores, já teria sido facilmente flagrado em delito.


Lula Marques/Folha Imagem

FALSO TESTEMUNHO
Paulo Lacerda, o diretor afastado da Abin, tentou de todas as formas esconder a real dimensão do trabalho de seus espiões na investigação policial sobre o ex-banqueiro Daniel Dantas

A abordagem ao tenente Leandro no Rio de Janeiro foi um desastre especial para a Operação Satiagraha. Como parecia tratar-se de um segurança do Palácio do Planalto, o governo federal foi logo informado da abordagem. A comunicação foi feita a Gilberto Carvalho, o mais próximo e influente assessor do presidente Lula. Carvalho fez o que deveria fazer. Levou as informações que acabara de receber ao general Felix, que não mostrou surpresa e saiu-se com a extraordinária versão dos "espiões russos". Carvalho engoliu a história e a passou adiante. Uma das pessoas a quem ele contou essa versão, por telefone, foi o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, petista histórico, seu amigo pessoal de muitos anos e que, algum tempo atrás, fora contratado pelo ex-banqueiro encrencado, esperto, Daniel Dantas. Como o advogado do ex-banqueiro estava sendo monitorado pelos policiais e pela Abin, a conversa foi interceptada. Sem saber, portanto, o tenente Leandro havia levado a investigação para a ante-sala do presidente Lula no Palácio do Planalto. Carvalho se tornara mais um dos alvos da equipe de policiais e espiões da Abin chefiada pelo nefelibata delegado Protógenes Queiroz. "Tudo o que eu fiz foi tentar ajudar um amigo. Se tivessem me dito que o episódio era parte de uma investigação policial, é óbvio que teria me silenciado", diz Carvalho, o assessor que por algum tempo foi levado por uma mentira a pensar que o Brasil estava sendo alvo de ações hostis por parte da Rússia.

Obviamente, a mentira do general Jorge Félix não foi digerida por Gilberto Carvalho. Em depoimento à CPI dos Grampos, tanto o general quanto Lacerda revelaram que a tal missão de acompanhamento de espiões russos era uma "história de cobertura". "Foi uma história de cobertura porque a investigação era sigilosa", confessou o ministro-chefe do GSI. No jargão dos arapongas, isso quer dizer que o general e seu delegado contaram uma mentira para preservar o segredo de uma operação. Chefes de serviços de inteligência que mentem para os assessores dos presidentes e para os próprios presidentes não são propriamente uma novidade, tampouco uma invenção brasileira. Os historiadores dos serviços secretos americano, CIA, e soviético, KGB, convergem em um ponto: eles mentem para os presidentes, que mentem para o público. Essa é a lei nesse reino paralelo. A natureza do trabalho dos espiões acaba por convencê-los de que são pessoas acima das leis e das instituições.


Sérgio Castro/AE
ANTES DE SER PRESO
O empresário Humberto Braz, lobista de Dantas, achava que seqüestradores estavam vigiando seus passos: a polícia descobriu que eram arapongas da Abin

As investigações sobre a atuação ilegal dos espiões da Abin já revelaram que o comando das ações clandestinas estava sediado em Brasília, precisamente no gabinete do delegado Lacerda, diretor afastado após a descoberta de que seus comandados haviam grampeado ilegalmente os telefones do presidente do STF. Na semana passada, a CPI dos Grampos ouviu um depoimento em que isso ficou evidente. O agente Márcio Seltz, um dos oitenta espiões que participaram da operação secreta, revelou que teve acesso a mensagens eletrônicas e a interceptações telefônicas oriundas das investigações da PF e que chegou, inclusive, a repassar o material a Lacerda. Portanto, é razoável supor que o delegado e seu superior, o general Felix, conheciam todos os detalhes da operação, inclusive a missão – ou as missões – do tenente Antônio Leandro.

A história do tenente, por essa razão, precisa ser investigada com atenção. Abordado pela reportagem em sua residência, Leandro, tenso, pergunta: "Como foi que você me descobriu?". Trava-se o seguinte diálogo:

Qual era sua missão na Operação Satiagraha?
Eu fui lá render um colega que já estava de campana e acabei sendo pego pela polícia. Eu não sabia exatamente quem estava seguindo. As operações são compartimentadas. A pessoa recebe uma ordem, mas não sabe detalhes. Nesse caso, a ordem era seguir o carro do alvo.

De quem foi a ordem?
Eu recebi instruções do meu superior na superintendência da Abin em São Paulo.

Dida Sampaio/AE
Lula Marques/Folha Imagem
REVELAÇÕES
O agente Márcio Seltz, que participou da operação clandestina, revela à CPI dos Grampos que mensagens eletrônicas e gravações telefônicas oriundas da investigação do delegado Protógenes Queiroz (à direita) foram entregues nas mãos do delegado Paulo Lacerda, diretor afastado da Abin, que negou ter recebido o material

O senhor chegou a ter contato com o delegado Protógenes Queiroz, da Polícia Federal?
Não, eu não sabia que a Polícia Federal estava nessa operação.

Quando foi abordado pela polícia do Rio, o senhor se identificou como tenente Marcos?
Eu não menti. Dei a carteira da Presidência da República e falei que trabalhava para a Abin. Eu não sou louco de mentir, apresentar um documento falso, uma história falsa, e levar um tiro.

O senhor fazia o que antes de atuar na Abin?
Fui do corpo de segurança do presidente Lula. Quando ele viajava para São Paulo, eu fazia a segurança dele. Você acha que vão me chamar para a CPI? Você vai publicar isso aí e vão me dar uma cadeia na Polícia Militar por eu ter participado da operação. Vou perder minha promoção. Se isso acontecer, eu vou te achar em Brasília. Não posso falar mais... Se você publicar, eu vou te achar.

O Gabinete de Segurança Institucional e a Abin se recusaram a comentar o caso.

UM DEGRAU ACIMA

A parte clandestina da operação policial que investigou o ex-banqueiro Daniel Dantas contou com a participação de espiões da Abin e de um ex-segurança do presidente Lula, o tenente Antônio Leandro de Souza Júnior, lotado no Gabinete de Segurança Institucional (GSI)

Selmy Yassuda

O FLAGRANTE
No dia 27 de maio passado, policiais do Rio de Janeiro abordaram um Astra prata na porta da casa do empresário Humberto Braz, investigado pela PF no caso do ex-banqueiro Daniel Dantas. Dentro do carro estava um espião da Abin.

ESPIÕES RUSSOS
O caso chegou ao conhecimento do Palácio do Planalto. O general Jorge Felix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, informou ao chefe-de-gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, que o agente estava no encalço de espiões russos.

CLANDESTINIDADE
Em julho, descobriu-se que a operação da Polícia Federal que prendera Daniel Dantas havia contado com a participação maciça e clandestina de espiões da Abin, que monitoraram e grampearam ilegalmente autoridades, entre elas o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes.

Antônio Cruz/ABR

MENTIRAS
Ao Congresso, o general Jorge Felix e o diretor afastado da Abin, Paulo Lacerda, disseram que a participação dos espiões havia sido informal e se limitara à checagem de endereços. Segundo eles, a história dos agentes russos teria sido uma invenção do espião para não colocar em risco a investigação contra Dantas.

DENTRO DO PALÁCIO
Localizado por VEJA, o espião confirmou que estava seguindo os passos de Humberto Braz e que nunca contara história alguma sobre agentes russos. Ex-integrante da equipe de segurança do presidente Lula, ele foi colocado pelo GSI à disposição da Abin e atuou no caso.

O horror diante dos olhos

As causas,o desespero e os prejuízos do dilúvio que atingiu o coração de Santa Catarina, um dos estados mais prósperos e desenvolvidos do Brasil

Igor Paulin e Duda Teixeira, de Santa Catarina, e José Edward

Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem

Salvação pelo ar
Uma família de desabrigados da área de Alto Baú, em Ilhota, é resgatada por helicóptero da Força Aérea



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Depoimentos de sobreviventes

Na era das grandes navegações, a palavra "procela" entrou para o vocabulário da língua portuguesa. Procelas são as fortes tempestades que se formam em alto-mar. Na semana passada, uma procela se adensou, não sobre o oceano, mas nos céus da próspera Santa Catarina. Quando ela despencou sobre as cidades, foi com uma fúria e constância jamais vistas, mesmo numa região historicamente sujeita a precipitações caudalosas e enchentes. Apenas na Blumenau dos laboriosos imigrantes alemães, caíram, em cinco dramáticos dias, 300 bilhões de litros de água. Sim, bilhões – o suficiente para abastecer a cidade de São Paulo durante três meses. Outra comparação é ainda mais impressionante: se esse volume hídrico fosse despejado dentro de uma torre com uma base de 1 metro quadrado de área, a construção teria de ter 300.000 quilômetros de altura – quase a distância entre a Terra e a Lua. A primeira das mais de 100 vidas ceifadas por tamanho horror foi a da menina Luana Eger, de 3 anos. No sábado 22, um barranco deslizou sobre a casa em que ela morava, soterrando-a. A mãe de Luana, Virgínia, e seus irmãos Juan, de 7 anos, e Rafael, de 5, escaparam da morte. Seu pai, o comerciário Evandro Eger, estava fora da cidade quando soube do desastre. Restou-lhe comprar num supermercado o vestido cor-de-rosa com o qual enterrou a filha no dia seguinte. "Era a cor preferida dela", disse ele. Evandro e Virgínia ainda conseguiram dar um funeral razoavelmente digno à menina. Muitas das vítimas foram enterradas em caixões improvisados, e nem sempre em cemitérios, mas em quintais. Até sexta-feira, dezenove pessoas continuavam desaparecidas. Boa parte delas pode ter sucumbido em decorrência de afogamentos e dos 4.000 deslizamentos registrados no estado. Somados, desabrigados e desalojados chegam a 79.000. Dos 293 municípios do estado, 49 foram atingidos. Catorze deles decretaram estado de calamidade pública. Nessas cidades, os sobreviventes lutam contra a fome e doenças pestilentas. E, como se não bastasse a desgraça, tentam evitar saques no que sobrou de suas casas e negócios.

Foi a maior calamidade já ocorrida em Santa Catarina, que registra grandes enchentes desde 1852. Em que pese o que possa ter havido de desídia ou incompetência por parte das autoridades na prevenção da tragédia, ela foi, sobretudo, resultado de uma combinação catastrófica de dois fatores – um meteorológico e outro geográfico. O primeiro começou a tomar forma no dia 20 de novembro, quando um anticiclone estacionado em alto-mar, na altura do Rio Grande do Sul e do Uruguai, levou chuvas para o litoral catarinense. Anticiclones são sistemas de alta pressão que, no Hemisfério Sul, originam ventos em sentido anti-horário. Eles são comuns no litoral catarinense e no gaúcho, de onde sopram ventos do Oceano Atlântico em direção ao continente. Isolados, não têm a força de causar grandes estragos e sua duração numa mesma região não costuma ultrapassar três dias. Só que, desta vez, por causa de um bloqueio atmosférico, isso não ocorreu. Até sexta-feira, o anticiclone permanecia no mesmo lugar. Ainda que extraordinária, sua longa permanência não teria causado a tragédia não fosse o fato de um segundo fenômeno – o vórtice ciclônico – ter ocorrido simultaneamente a ele. Ao contrário do anticiclone, o vórtice ciclônico é um sistema de baixa pressão que atrai ventos e gira no sentido horário. Como indica o nome, ele funciona como um redemoinho em altitudes médias, e também não é um fenômeno estranho à região. O problema surgiu da combinação com o anticiclone: o vórtice ciclônico suga os ventos imediatamente abaixo dele, levando-os para cima, resfriando-os e – de novo – provocando chuvas. Foi assim, por meio da ação extraordinariamente simultânea de dois fenômenos ordinários, que os índices pluviométricos na região atingiram patamares de dilúvio.

Fotos Moacyr Lopes Júnior-Folha Imagem e David J. Phillip-AP

À SEMELHANÇA DO KATRINA
Vista aérea do município catarinense de Itajaí, um dos mais castigados pela chuva. No destaque, a cidade americana de Nova Orleans, na Louisiana, um dia depois da passagem do furacão Katrina, em 2005. Lá, os mortos passaram de 1 300

O perfil geográfico era o detalhe que faltava para desenhar a tragédia. A camada superficial que recobre o solo do Vale do Itajaí, a região mais afetada pelas chuvas, é de composição argilosa – o que faz com que se desloque mais facilmente. Encharcada pela chuva forte e constante, essa camada ficou mais pesada. Somem-se a isso a declividade das encostas, os desmatamentos, as ocupações desordenadas e o resultado são deslizamentos destruidores, o principal causador das mortes no litoral catarinense e no Vale do Itajaí. O risco passou despercebido das autoridades. Já sob chuva grossa, pouco antes da morte da menina Luana, a Defesa Civil garantiu à população de Blumenau que não havia perigo. No fim da tarde daquele sábado, porém, o nível dos córregos que cortam a cidade começou a subir rapidamente. O Rio Itajaí-Açu transbordou as barragens e, em poucas horas, elevou-se 12 metros acima de seu nível normal. As chuvas provocaram deslizamentos e desmoronamentos. Como 40% da população local reside em encostas, todas as classes sociais foram afetadas.

A tormenta levou vidas e deixou, em seu lugar, histórias pungentes. No domingo 23, o operário André Oliveira, de 29 anos, deixou a família na casa de um parente, no município de Gaspar, e foi ao mercado. A poucos passos do portão, ouviu um estrondo. Ao olhar para trás, viu a mulher na varanda e os filhos no quintal. "Saiam daí", gritou. Não deu tempo. O morro próximo veio abaixo soterrando, além da sua casa, uma dezena de outras. Oliveira ainda ouviu o choro da filha de 3 anos, Ester. Tentou tirá-la dos escombros, mas dois novos desabamentos se sucederam. Quando resgatou os corpos, viu que sua mulher morrera abraçada à menina. "Ainda não parei de chorar", disse ao repórter Duda Teixeira.

Jonathas Cesario/Reuters

ARCA DE NOÉ
Gado procura abrigo na sede de fazenda alagada perto de Itajaí-Açu, localizada na foz do Rio Itajaí. A cidade teve 80% do seu território inundado: a subida das marés bloqueou o escoamento da água do rio para o mar, causando o seu transbordamento para as margens

Na cidade de Ilhota, mais especificamente no bairro do Baú, registrou-se o maior número de óbitos: 32. Foi lá que o caminhoneiro Zairo Zabel, de 37 anos, perdeu a mulher e os dois filhos, de 13 e 7 anos. Também no domingo passado, Zabel voltava para junto da família quando soube da enchente. Largou o caminhão no meio da estrada e arrastou-se por 12 quilômetros com água na cintura, até descobrir que sua casa havia sido tragada por uma avalanche. O corpo de seu filho mais velho, Marques, foi encontrado boiando pelos vizinhos. O do mais novo e o de sua mulher ainda estão possivelmente debaixo dos destroços. "Só sobrei eu", chorou Zabel, em conversa com o repórter Igor Paulin. No dia seguinte, a catástrofe aniquilou outra família na cidade de Rodeio. Um morro desfez-se sobre a propriedade mantida há mais de um século pelos descendentes dos Eccel, italianos que chegaram ao Brasil em 1885. Sob uma viga da casa, morreram abraçados o casal Dario e Giacomina e suas filhas Kendy, de 15 anos, e Kelly, de 7. Kevin, de 13, conseguiu escapar, mas ainda se lembra da mãe gritando "Aiuto!", socorro em italiano. Da família, além do garoto, só restou Keylla, de 5 anos, que se salvou do desastre.

Os prejuízos econômicos da catástrofe ainda não podem ser calculados em toda a sua extensão. O governo estadual estima que precisará, por baixo, de 280 milhões de reais apenas para reconstruir estradas, pontes e outras obras de infra-estrutura. A conta não inclui a reparação do Porto de Itajaí. Maior do país no setor pesqueiro e vice-líder em movimentação de contêineres, o Itajaí perdeu três de seus quatro berços. Estão parados lá 100 dos 450 contêineres que a Embraco, líder mundial na produção de compressores herméticos, exporta por mês. Outros sessenta contêineres de matérias-primas importadas esperam para ingressar no país. Só para recompor o porto são necessários 300 milhões de reais. Enquanto seus cais estão interditados, o país perde 77 milhões de reais por dia em exportações. A empresa estadual de gás de Santa Catarina ainda terá de gastar 50 milhões de reais para sanar o rompimento da tubulação num dos trechos do gasoduto Brasil-Bolívia. Levará três semanas para que o fornecimento desse ramal seja restabelecido. Até lá, as indústrias de cerâmica do estado, que dependem de gás para produzir, perderão 7 milhões de reais por dia. Os agricultores projetam prejuízos de 200 milhões de reais, a indústria têxtil, de 136 milhões, e o turismo, de mais de 120 milhões. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobrevoou as áreas destruídas quatro dias depois de a calamidade se abater sobre o estado. Afirmou que liberaria 2 bilhões de reais para socorrer Santa Catarina. Quando as águas baixarem de vez, os catarinenses precisarão secar as lágrimas para reconstruir sua linda terra.

Fotos Hermínio Nunes/Ag.RBS/AE, Patrick Rodrigues/Ag. Rbs, Marco Gamborgi/Mafalda Press, Piero Ragazzi/Mafalda Press/EFE e Artur Moser/Ag. RBS/AE

Lama, destruição e fome
Carros esmagados, casas soterradas e água por toda parte. À direita, moradores de Itajaí saqueiam supermercado

Fotos Marcos Porto/Ag. RBS, Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem e Fernando Donasci/Folha Imagem

Uma ilha de corpos
Cenário de 32 mortes, o bairro do Baú, em Ilhota, foi evacuado por ar. No alto, o resgate de um bebê. À esquerda, o corpo de uma das vítimas sobre um teto. À direita, uma mulher chora a perda de sua casa

Reprodução

A primeira vítima
Luana Eger, de 3 anos, morreu na tarde do dia 22, soterrada nos escombros de sua casa, em Blumenau. Seu nome encabeça a lista de mais de uma centena de pessoas que sucumbiram na tragédia

Guto Kuerten/Ag. RBS

NEGÓCIOS PARADOS
O Porto de Itajaí teve três de seus quatro berços destruídos: perda de 77 milhões de reais por dia em exportação

Flávio Neves/Ag. RBS/AE

Fila de túmulos
Acima, as covas abertas na cidade de Gaspar para os que morreram soterrados. O presidente Lula observou uma área atingida pelos alagamentos em um vôo de helicóptero no quinto dia da calamidade

Ricardo Stuckert/PR

Tarcisio Mattos/Tempo Editorial

O pior dos pesadelos
Zairo Zabel perdeu a família. Seus vizinhos encontraram o corpo de seu filho mais velho boiando na enchente. O de seu caçula e o de sua mulher aindaestão soterrados

CUT lidera lobby no governo, diz pesquisa

Pesquisa feita com 60 integrantes da administração pública com poder de decisão -chefes-de-gabinete, secretários nacionais, secretários-executivos de ministérios, dirigentes de agências reguladoras- revelou que, de 149 entidades integrantes de conselhos de políticas públicas do governo, a campeã do lobby no Executivo nos últimos cinco anos é a Central Única dos Trabalhadores.
Com 30 visitas a gabinetes da administração, a CUT encabeça a lista de 38 entidades que praticaram o lobby mais de dez vezes no período e tiveram suas visitas às repartições documentadas. Em segundo lugar, com 25 visitas, está a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), seguida pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), com 24 reuniões.
A pesquisa faz parte da tese de doutorado de Luiz Alberto dos Santos, subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil, na qual ele compara o lobby no Brasil e nos EUA.
Ele diz que "33 entidades, que mantiveram mais de 10 contatos no últimos cinco anos, são responsáveis por quase a metade dos contatos totais. E, se considerarmos as entidades mais atuantes -que mantiveram mais de 15 contatos-, teremos que um grupo de 13 entidades foi responsável por 235 contatos, ou seja, 8,7% das entidades consideradas responderam por 23,2% dos contatos".
Os dados da pesquisa de Santos foram apresentados num seminário sobre a regulamentação do lobby promovido pela Controladoria Geral da União, responsável por propor uma regulamentação da atividade.
A pesquisa também abrangeu o lobby no Congresso -60 parlamentares responderam. Ela revelou que tanto os parlamentares como os administradores têm forte presença de filiados às entidades lobistas (72,09% entre os gestores efetivos, 71,9% entre os deputados, 66,7% entre os senadores).
Dos parlamentares, 39,66% admitiram ter atuado para "transformar em proposição legislativa" matéria de interesse da entidade. Dos 120 pesquisados, 119 são favoráveis à regulamentação do lobby no país.Folha

PF investiga marqueteiro de Lula

Sob sigilo, PF investiga marqueteiro de Lula por movimentação suspeita

Em inquérito aberto após comunicação do Coaf, instituição analisa valores recebidos por empresa em 2004

João Santana, o marqueteiro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é investigado desde 2006 pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal por movimentações financeiras suspeitas durante a campanha eleitoral de 2004. Transações entre a Santana & Associados Marketing e Propaganda Ltda., o PT e a NDEC (Núcleo de Desenvolvimento Estratégico de Comunicação), uma produtora de vídeo envolvida em escândalos com governos petistas desde 2003, estão sendo esmiuçadas na Bahia, sob segredo de Justiça.

As investigações começaram após a comunicação feita pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que registrou em seu relatório "movimentação suspeita" em conta corrente da Santana & Associados. O órgão detectou o recebimento de R$ 950 mil do PT e R$ 600 mil da NDEC - em dois pagamentos, de R$ 300 mil -, em setembro e outubro de 2004, véspera do primeiro e segundo turnos das eleições.

As transações deram origem ao inquérito policial número 326/2006 para apurar crime de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos ou valores. Um laudo pericial feito pela PF, que faz parte do inquérito, é considerado peça fundamental para a defesa da Santana & Associados para provar que os recebimentos decorreram de serviços legalmente prestados a três campanhas eleitorais naquele ano e que tudo foi registrado contabilmente e informado à Receita Federal.

Enquanto não for concluído o inquérito, no entanto, a procuradoria considera que a empresa de Santana, o PT e a NDEC podem ter se envolvido em uma triangulação financeira para ocultar a movimentação de dinheiro não-declarado na campanha eleitoral de 2004. A investigação, ainda não relatada pela PF, pode virar uma denúncia criminal do Ministério Público Federal ou ser arquivada.

INQUÉRITO

O caminho do dinheiro que a PF e a procuradoria tentam refazer no inquérito parte de três campanhas eleitorais que a Santana & Associados fez para candidatos a prefeito apoiados pelo PT, dois anos antes de assumir oficialmente a campanha do presidente Lula, no lugar do publicitário Duda Mendonça - afastado em decorrência do escândalo do mensalão.

Foram feitas as campanhas de Gilberto Maggioni, em Ribeirão Preto, Vander Loubet, em Campo Grande (MS), ambos petistas, e do ex-deputado Hélio de Oliveira Santos (PDT), o Dr. Hélio, de Campinas - apoiado e patrocinado pelo Diretório Nacional do PT.

No inquérito, a defesa apresentou três notas fiscais "relativas a serviços de publicidade tidos por prestados", de números 001, 002 e 006. Mesmo assim, a procuradoria levantou suspeita sobre os negócios, por detectar problemas de discrepância de valores entre as notas emitidas e as declarações de gastos feitas à Justiça Eleitoral, movimentação financeira incompatível de uma das empresas envolvidas e numeração baixa das notas fiscais.

CAMPANHAS

No caso da campanha de Ribeirão Preto, a sócia de Santana, sua mulher Mônica Regina Cunha Moura, explicou no inquérito que uma nota de R$ 700 mil, em nome do PT, e outra de R$ 500 mil, em nome do próprio candidato, foram emitidas pelo serviço prestado ao candidato Gilberto Maggioni, em um total de R$ 1,2 milhão.

Registro das contas de campanha de 2004, disponível no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mostra que a Santana & Associados consta como prestadora de serviços do PT em Ribeirão, mas registra recebimento de R$ 500 mil, em três pagamentos (R$ 250 mil, R$ 150 mil e R$ 100 mil), todos do dia 23 de setembro. Chama atenção também o fato de a campanha ter informado gasto total de R$ 1,2 milhão, mesma quantia que a Santana & Associados diz ter recebido apenas para os serviços de propaganda.

No caso de Campinas, levantou suspeita o fato de a Santana & Associados ter recebido pelos serviços por intermédio da NDEC, uma produtora de vídeo criada em Campo Grande (MS), já envolvida em outros escândalos com o PT.

Lá, apesar de o candidato não ser petista, foi patrocinado pelo Diretório Nacional do PT, que efetuou três repasses para seu comitê, um total de R$ 207 mil. Há ainda, no caso, uma divergência entre os valores em nota e no balanço informado ao Tribunal Superior Eleitoral.

Para a PF, a Santana & Associados entregou nota de R$ 600 mil, pagos pela NDEC, referentes a serviços prestados para a campanha de Dr. Hélio.

No TSE, a "intermediária" aparece como contratada, mas recebendo dois pagamentos de R$ 85 mil e R$ 465 mil, em um total de R$ 550 mil, nos dias 28 e 29 de outubro.

Curiosamente, em Campo Grande, sede da NDEC, a Santana & Associados também recebeu recursos do PT referentes a serviços prestados para a campanha de Loubet, sobrinho do ex-governador Zeca do PT. Nova coincidência. O ex-governador e a NDEC têm fortes ligações. A produtora é acusada na Justiça por fornecer "notas frias" para o ex-governador entre 2005 e 2006 para ocultar desvios de recursos.

Em Campo Grande, a Santana & Associados informou ter recebido R$ 320 mil em dois pagamentos (R$ 250 mil e R$ 70 mil). Nesse caso, os valores batem com o declarado ao TSE. Estadão

28.11.08

Dilma nega crise na Petrobras!!!

A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, afirmou ontem serem ridículas as declarações de senadores do PSDB que levantaram dúvidas sobre a saúde financeira da Petrobras. A própria ministra, no entanto, reconheceu que o empréstimo de R$ 2 bilhões- concedido pela Caixa Econômica Federal à estatal do petróleo- se deve a um problema imediato de caixa.
As declarações foram concedidas após uma visita à quinta edição da Feira Nacional da Agricultura Familiar, que se realiza neste ano no Rio de Janeiro. Ao responder às perguntas sobre a Petrobras, a ministra perdeu o bom humor que ostentava durante a visita.
Essa é uma acusação ridícula sobre a Petrobras. A Petrobras é a maior empresa, não só de petróleo, mas a maior empresa nacional. Ela não está descapitalizada. Ela tinha um problema imediato de caixa para pagar impostos. Só isso, afirmou Dilma.
Em nota divulgada ontem, a Petrobras afirmou que precisa de captação média anual de US$ 4 bilhões e que, em virtude das condições atuais do mercado financeiro internacional, a empresa está utilizando com maior freqüência o mercado doméstico para suprir suas necessidades normais de financiamentos.
Anteontem, o governo federal liberou as empresas do grupo Petrobras para buscar financiamento no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e em outros bancos no Brasil, sem limite de endividamento.
Ainda segundo a nota, a Petrobras teve, no mês passado, maiores gastos com impostos e taxas, com o recolhimento de mais de R$ 11,4 bilhões. Parte desses pagamentos se deve a Imposto de Renda, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e participações especiais (que a estatal paga ao governo federal pela exploração e produção de petróleo).

Lobão
O ministro Edison Lobão (Minas e Energia) também disse que a Petrobras viveu uma dificuldade momentânea e por isso pegou R$ 2 bilhões emprestados com a Caixa.
O ministro defendeu a operação e disse que isso acontece com regularidade. Questionado sobre a saúde financeira da estatal, o ministro afirmou que a empresa está bem.
Ela [Petrobras] não está mal. Está como sempre esteve. Teve apenas dificuldades momentâneas em razão de impostos e compromissos que teve de pagar, mas é uma situação que se restabelece, disse o ministro. No balanço da Petrobras, o dinheiro tomado à Caixa está destinado a capital de giro, e não a pagamento de impostos ou tributos.

Situação natural
Questionada se, pelo fato de ser a maior empresa do país, com lucro acumulado de R$ 26,5 bilhões até o terceiro trimestre, a Petrobras precisaria recorrer a um empréstimo da Caixa para pagar impostos, Dilma afirmou que era uma situação natural.
Ela tinha que pagar uma determinada quantia dinheiro, fez um empréstimo, paga o empréstimo. Não tem mistério nenhum. Ela continua capitalizada, disse a ministra.
Ela minimizou o fato de o empréstimo ter sido feito por um banco federal e disse que a Petrobras faz essas operações com qualquer instituição. Acho que não tem problema algum. Todo banco sonha em emprestar para a Petrobras.
Folha

26.11.08

Greenhalgh pede busca e apreensão na casa de repórter

Ele quer documentos obtidos pelo "Estado" sobre guerrilha do Araguaia

O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh entrou com pedido na Justiça de recolhimento de documentos obtidos pelo Estado sobre a guerrilha do Araguaia. Greenhalgh pede a intimação do repórter Leonencio Nossa, da Sucursal de Brasília, para que forneça documentos repassados por militares que participaram dos combates entre as Forças Armadas e militantes do PC do B no Pará, nos anos 1970, sob pena de busca e apreensão na casa dele.

Greenhalgh é autor de um processo movido em 1982 em que pede esclarecimentos sobre a guerrilha. Fontes do Judiciário informaram que o pedido de busca e apreensão na casa do repórter chegou ontem à tarde à mesa de um juiz para o despacho. O procurador Rômulo Conrado deu parecer contrário ao pedido do advogado e ex-deputado federal, argumentando que o jornalista "não é parte integrante da lide, razão pela qual não pode figurar no pólo passivo do processo".

O pedido de Greenhalgh, feito no dia 25 de junho, causou surpresa em setores do Ministério Público que trabalham para abrir os arquivos oficiais sobre as mortes no Araguaia. Reconhecido pelo trabalho em defesa das famílias dos mortos no Araguaia, o ex-deputado federal pelo PT foi recriminado por representantes do partido e assessores diretos do presidente Lula, em 2006, por repassar para jornalistas de Brasília documentos militares que supostamente constrangeriam a conduta do atual deputado e ex-guerrilheiro José Genoino durante a guerrilha do Araguaia.

Não havia nada contra Genoino nos documentos, como concluíram jornalistas que tiveram acesso ao material. Um assessor do governo disse ao Estado que o objetivo de Greenhalgh, que em 2006 disputava uma cadeira na Câmara, era tirar votos do colega de partido. Genoino foi preso logo no início dos combates e sofreu tortura.

A investida judicial de Greenhalgh não é a única a atingir jornalistas em tempos recentes. O delegado Protógenes Queiroz, que comandou a Operação Satiagraha, chegou a pedir em julho a prisão temporária da repórter Andréa Michael, da Folha de S.Paulo, a quem acusou de favorecer o banqueiro Daniel Dantas, do grupo Opportunity. O pedido de prisão - com busca e apreensão na casa da jornalista - foi negado pela Justiça.

Em fevereiro de 2003, o Estado começou uma nova apuração sobre o Araguaia, que ainda está em andamento. De lá para cá, o jornal só decidiu publicar histórias que estavam confirmadas e documentadas. Foi o caso da confirmação da prisão e execução da guerrilheira Dinalva Oliveira Teixeira, morta em 1974. Neste período, o jornal fez uma série de 32 entrevistas com o ex-agente Sebastião Curió Rodrigues de Moura, todas gravadas. Também foram ouvidas dezenas de outras fontes, civis e militares. A polêmica trajetória militar e política de Curió e o destino dos guerrilheiros do Araguaia são os principais focos da pesquisa que está sendo feita.
Estadão

25.11.08

O calote do Equador!!!

Diante da inadimplência, Brasil deveria congelar negócios e projetos que mantenha com o governo de Rafael Correa

A DECISÃO do governo do Equador de recorrer à Corte Internacional de Arbitragem de Paris para suspender o pagamento de uma dívida de US$ 243 milhões com o BNDES não é surpreendente. O presidente Rafael Correa ameaçava, havia três meses, aplicar o calote no débito contraído para a construção da hidrelétrica de San Francisco, a cargo da brasileira Odebrecht, alegando defeitos na obra.
Correa encenou com a construtora brasileira um espetáculo chauvinista análogo ao que o presidente da Bolívia, Evo Morales, havia experimentado com a Petrobras. A ocupação militar de instalações da Odebrecht, a perseguição e a expulsão de seus diretores e as bravatas em nome da pátria não parecem ter outro objetivo, como no caso boliviano, que não o de angariar apoio interno para o projeto autoritário do presidente.
A novidade, no episódio do Equador, foi a mudança, para melhor, da atitude do governo brasileiro. A excessiva complacência com as provocações de Morales deu lugar, aos poucos, a uma reação mais enérgica -que culminou com a convocação do embaixador em Quito, um ato ostensivo de protesto no protocolo diplomático.
O presidente Lula, contudo, ainda empresta à política externa um tom pessoal e emotivo. O problema com Rafael Correa teria sido, segundo versões do Planalto, a falta de comunicação prévia sobre o calote, pois nações e presidentes amigos não se tratam desse modo. Muito mais que afinidades entre líderes ou países, ou que a vocação pela união dos povos sul-americanos, estão em jogo interesses, que aqui e ali se chocam.
O calote, e não o melindre de Lula por não ter sido avisado, é o problema a ser enfrentado. Como a quantia emprestada ao Equador pelo BNDES é garantida pelo Tesouro Nacional, o contribuinte brasileiro está ameaçado de bancar a bravata. A primeira providência do Brasil deveria ser denunciar o não-pagamento à Aladi, a Associação Latino-Americana de Integração.
Na Aladi está hospedado o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR), pacto de bancos centrais regionais que assegura a adimplência de empréstimos entre as nações signatárias. A denúncia constrangeria o BC do Equador a arcar com o débito, sob pena de o país ter bloqueado esse mecanismo de obtenção de crédito externo.
O Equador é o segundo destino na América do Sul das exportações de bens e serviços financiados pelo BNDES -21% do total. Entre 1997 e 2008, já foram liberados para o país US$ 693 milhões. Até a solução do impasse, compete ao governo brasileiro congelar todos os projetos de cooperação com aquele país.
Editorial Folha

Ascenção e queda da PF!!!

Alguns momentos da Polícia Federal desde o início do governo Lula:

2003
Convidado pelo ministro Márcio Thomaz Bastos, o delegado Paulo Lacerda toma posse como chefe da Polícia Federal e implementa um estilo próprio ao órgão: grandes operações policiais com o acompanhamento da mídia. Na primeira ação, a Anaconda, foi preso o juiz João Carlos da Rocha Mattos sob suspeita de ter vendido sentenças. É um dos poucos condenados decorrentes de ações da PF.

2004
A PF realiza duas grandes ações. A operação Vampiro, que prendeu 17 pessoas acusadas de fraudes em licitações e derivados de sangue; e a Chacal, que apurou uma suposta espionagem da Kroll, a pedido da Brasil Telecom, então controlada pelo grupo Opportunity de Daniel Dantas. Nessa operação, foi apreendido o disco rígido de Dantas, que posteriormente serviu de base para as investigações da Satiagraha.

2005
A PF teve uma ação discreta e ficou a reboque do escândalo do mensalão. Entretanto, em setembro, uma reportagem da revista VEJA com um dossiê atribuído a Daniel Dantas de que Paulo Lacerda e outras autoridades tinham contas no exterior.

2006
Em maio, a PF detona a operação Sanguessuga, que desbaratou um esquema de fraudes na compra de equipamentos de saúde. A ação teve repercussão no Congresso porque quase uma centena de parlamentares estavam implicados na máfia das ambulâncias.

Como desdobramento da operação, durante a campanha eleitoral, a PF apreendeu um dossiê fajuto que buscava envolver tucanos com a máfia das sanguessaugas. Tanto o material como os R$ 1,75 milhão estavam nas mãos de petistas ligados a campanha à reeleição de Lula e do senador Aloizio Mercadante ao governo paulista.

2007
Foi o ano das grandes ações policiais e ao mesmo tempo da mudança de comando. Em abril, a PF deflagrou a operação Furacão, que prendeu 25 sob suspeita de atuarem em favor da exploração de jogos ilegais.

Entre eles, o ministro Paulo Medina, do Superior Tribunal de Justiça. Um mês depois, veio a Navalha, que prendeu cerca de 40 pessoas acusadas de desviar recursos de obras públicas federais em vários estados. Foram detidos o ex-governador do Maranhão José Reinaldo, acusados de favorecimento à empreiteira Gautama, de Zuleido Veras.

Apesar de ter passado por crises para administrar as repercussões, a PF entrou numa briga autofágica no segundo semestre, quando Paulo Lacerda acenou deixar a instituição. Os diretores de Inteligência, Renato da Porciúncula, e executivo, Zulmar Pimentel, entraram numa briga de bastidores para comandar a polícia. Entretanto, a vaga foi para Luiz Fernando Corrêa, nomeado pelo novo ministro Tarso Genro.


2008
O estilo Corrêa gerou atritos internos. A brusca troca de delegados para cargos de chefia, em alguns casos com a entrada de novatos, e a saída do eixo das principais operações de Brasília trouxeram críticas a nova gestão. O modelo de discrição nas operações almejado por Corrêa foi implodido com a operação Satiagraha, deflagrada em julho.

A ação que prendeu o banqueiro Daniel Dantas expôs uma divisão interna da PF: o grupo do ex-diretor Lacerda, que deu suporte à operação comandada pelo delegado Protógenes Queiroz, e a atual gestão, que declara ter dado apoio à ação.

A operação serviu de mote para se questionar os métodos de investigação, calcados praticamente em grampos, o vazamento de informações sob sigilo e até mesmo o nome das operações. Não bastasse os problemas derivados da Satiagraha, uma ação da PF de Amapá prendeu em setembro o então número 2, Romero Lucena.

Gerações em choque

Correio Brasiliense
Reconhecida nos últimos cinco anos como a poderosa arma do governo Lula no combate à corrupção, a Polícia Federal está na berlinda. Depois de construir uma áurea de credibilidade por conta das centenas de megaoperações, que levaram à prisão quase 10 mil pessoas, a corporação imergiu em uma crise que deriva, em boa parte, pelo racha criado em torno das disputas internas de poder. De um lado, estão as mudanças adotadas pelo atual diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa, no cargo há um ano, e, do outro, a eminência parda do ex-chefe Paulo Lacerda, comandante da PF no primeiro mandato Lula.

A face mais exposta dessa crise apareceu em julho, desde que se revelou o efetivo apoio de servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), comandada por Lacerda, na Operação Satiagraha. Há suspeita até de que grampearam ilegalmente autoridades. A partir daí, passou-se a questionar desde os métodos de investigação da PF da era Lula, calcada praticamente em escutas telefônicas, até o nome das operações, consideradas pelos críticos como propagandas que podem impelir juízes a condenarem de antemão os suspeitos.

Ninguém fala no assunto em público. Reservadamente, porém, delegados experientes e novos ouvidos pelo Correio admitem um choque de gerações , promovido pelo atual diretor, que retirou a polícia do eixo criado na gestão Lacerda. Eles apontam que, há um ano, a situação começou a complicar no momento em que o então diretor de Inteligência, Renato da Porciúncula, e o ex-diretor-executivo Zulmar Pimentel entraram numa ferrenha briga de bastidores, até mesmo com dossiês, para substituir Lacerda. Os dois saíram do páreo, o que facilitou a ida de Corrêa para a chefia da instituição.

Indicado pelo atual ministro da Justiça, Tarso Genro, Corrêa tomou logo de início duas decisões drásticas: trocou 25 dos 27 superintendentes nos estados (faltam ser substituídos os do Paraná e Amapá), colocando delegados novos nos cargos e tirou das mãos das diretorias Executiva e de Inteligência Policial o comando das grandes operações. Com isso, conseguiu dar mais autonomia e poder para as superintendências, retirando do Máscara Negra, o edifício-sede da PF, o conhecimento absoluto das ações. Na gestão anterior, uma das raras investigações que não chegou à cúpula foi a do dossiê contra tucanos, em 2006. E em setembro passado, a instituição experimentou o sabor amargo da autonomia: a prisão de seu então número dois, Romero Menezes, que vinha sendo investigado pela Superintendência do Amapá, acusado de violação de sigilo por supostamente ter beneficiado um irmão.

Menezes continua afastado de suas funções, para a qual não deverá retornar. Cogitam-se vários nomes da própria cúpula que devem substituí-lo, com vantagem para Luiz Pontel de Souza, hoje responsável pela Diretoria de Gestão de Pessoal. Outra baixa na atual cúpula deverá acontecer em 2009, com a possível aposentadoria do atual diretor de Inteligência Policial, Daniel Lorenz. O delegado foi envolvido no furacão causado pela Operação Satiagraha. Ele teve seu nome citado como suspeito de vazar informações para jornalista. O delegado, que nega as acusações, é mais um desafeto de seu subordinado, Protógenes Queiroz, ex-comandante da Satiagraha.

Revelações
Lula não deve tirar Tarso e o ministro ri quando perguntado se vai trocar seu diretor-geral. Corrêa e Tarso negaram na semana passada a existência de uma crise na PF, especialmente por causa das desagradáveis revelações da Satiagraha. Mas a situação, afirmam delegados, não é de tranquilidade. A Polícia Federal, em si como instituição, não passa por uma crise. O que ocorre é uma crise de gestão administrativa , afirmou o presidente do Sindicato Nacional dos Delegados de Polícia Federal (Sindepol), Joel Mazo.

Na semana passada, um congresso reuniu na capital paulista delegados federais de todo o estado e a ausência dos convidados Tarso e Corrêa foi duramente criticada. Na ocasião, o presidente do sindicato da categoria, Amaury Portugal não escondeu seu descontentamento com a falta dos superiores. Talvez seja para evitar a polêmica (da crise institucional). Mas eles deveriam estar aqui defendendo a casa deles, por mais embaraçosas que sejam as perguntas , lamentou. Leia linha do tempo com as crises enfrentadas pela PF

17.11.08

A jogada de Tarso

Rafael SOBREVIVER

Sob a ameaça de perder o cargo, o ministro Tarso Genro tenta apagar a imagem de que o governo protege Daniel Dantas

No alto escalão da Esplanada dos Ministérios, o ministro da Justiça, Tarso Genro, é certamente quem está mais preocupado com seu futuro no governo. Recentemente, Tarso abriu várias frentes de combate que o desgastaram. A mais delicada está na Polícia Federal. Desde que assumiu a pasta e trocou o comando da corporação, viu a polícia ser dominada pela anarquia, concretizada numa disputa fratricida em torno da investigação sobre o banqueiro Daniel Dantas. O desgaste se estendeu recentemente para a frente política. Fortalecidos pela recente vitória eleitoral, dirigentes do PMDB passaram a disseminar a teoria de que a PF persegue o partido com investigações sobre seus principais líderes. Por isso, eles gostariam de remover Tarso e até de receber o comando da Justiça em troca da fidelidade ao governo Lula. Curiosamente, justamente a PF e seu trabalho sobre Dantas são hoje o principal trunfo de Tarso para tentar romper o cerco e sobreviver no governo.

Nas últimas duas semanas, Tarso tem falado com empolgação a interlocutores sobre o que seria uma nova fase da investigação sobre Dantas. Depois do barulhento afastamento do delegado Protógenes Queiroz, que comandou a investigação por quatro anos e deflagrou a Operação Satiagraha, a PF começou, na semana passada, a enviar à Justiça novos relatórios sobre suas apurações. Nos bastidores, ninguém nega que se trata de um esforço do ministro e da PF para mostrar serviço e tentar apagar a impressão de que o governo teria investido contra Protógenes para proteger Dantas. Vamos provar o contrário. Como peça judicial, o novo trabalho é muito mais contundente e efetivo?, afirma um diretor da PF.

O novo relatório foi feito por uma equipe de 25 policiais especialistas em crimes financeiros, que trabalharam com o delegado federal Ricardo Saadi para concluir a investigação de Protógenes. Essa força-tarefa se beneficiou de providências tomadas pelo próprio Protógenes – o material coletado nas operações de apreensão da Satiagraha e as informações recebidas de bancos, da Receita Federal e de instituições financeiras no exterior que só chegaram à PF depois da Satiagraha. Um primeiro relatório da PF sobre lavagem de dinheiro e gestão fraudulenta foi enviado ao juiz federal Fausto de Sanctis. É um trabalho exemplar, baseado em provas novas e consistentes?, afirma Tarso.

A comparação feita por Tarso e pela PF é exagerada. O novo relatório não traz muitas novidades em relação ao que foi produzido por Protógenes. Apenas é mais técnico, inclui novos documentos e tem uma redação diferente, mais bem organizada. Em vez de ouvir as mesmas pessoas já interrogadas por Protógenes e de recolher os mesmos documentos, o delegado Saadi usou depoimentos de doleiros, obtidos pela PF na Operação Farol da Colina, em que Dantas e o Opportunity eram citados, como indícios de gestão fraudulenta e evasão de divisas. Ele adotou essa estratégia para evitar as iniciativas da defesa de Dantas, que tem procurado anular na Justiça as provas obtidas por Protógenes. Assim, Saadi teria material sobre os mesmos supostos crimes para levar Dantas à prisão. A PF também teve acesso a movimentações financeiras das empresas de Dantas no exterior, inclusive em paraísos fiscais. Com base nessas informações, o governo brasileiro já conseguiu bloquear contas bancárias em alguns países, como a Inglaterra e a Suíça.

O novo relatório, com 243 páginas e cinco anexos, faz um resumo geral da trajetória financeira de Dantas e de seu banco, o Opportunity. O documento descreve os dois principais crimes que, segundo a PF, Dantas teria cometido: gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro. A PF afirma haver indícios claros de que o banqueiro burlou a lei ao enviar do Brasil dinheiro para um fundo de investimentos do Opportunity nas Ilhas Cayman, um paraíso fiscal. Esse tipo de aplicação só pode ser feita por estrangeiros ou brasileiros que vivem no exterior. De acordo com a PF, Dantas teria enviado dinheiro do Brasil para o fundo e trazido o lucro de volta. Para justificar a entrada do dinheiro – ou para lavá-lo?–, teria comprado gado para sua fazenda, a Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, no Pará. O esquema é conhecido. De acordo com especialistas, a negociação com gado é uma das mais conhecidas práticas de lavagem de dinheiro. Basta que o investidor simule o nascimento de bezerros e a venda deles. O dinheiro trazido do exterior fica registrado, então, como lucro obtido com a venda dos animais.

O esforço de Tarso e de dirigentes da PF para mostrar eficiência nesta nova etapa da investigação não encobre pelo menos um fiasco. Mais de quatro meses depois de terem sido apreendidos, na casa de Dantas, os discos rígidos encontrados atrás de uma parede falsa continuam um mistério para os federais. Até agora, eles não conseguiram descobrir os códigos de acesso ao conteúdo dos computadores. Segundo peritos, para cada senha haveria cerca de 1 bilhão de combinações possíveis. Se todas fossem testadas, uma por segundo, o processo poderia levar mais de 30 anos.

O desgaste de Tarso começou com sua decisão de trocar o diretor da PF. Saiu Paulo Lacerda e entrou Luiz Fernando Corrêa. De lá para cá, a PF está conflagrada (leia o quadro ao lado). O governo sente saudades do Márcio Thomas Bastos?, diz um ministro próximo a Lula, numa referência ao antecessor de Tarso. Tarso promoveu mudanças nos procedimentos, vistas como tentativas do governo de segurar as investigações contra Dantas. Ele só sabe detalhes da investigação sobre Dantas por conta de uma nova regra: todos os inquéritos passíveis de repercussão têm de ser submetidos a um crivo superior pelo menos 15 dias antes de serem enviados à Justiça. Cabe ao comando da PF fazer uma checagem para averiguar se os elementos coletados são suficientemente consistentes?, a ponto de deflagrar uma operação. O governo afirma que é um passo importante para a profissionalização? da polícia. É também uma tentativa de controlar o trabalho, no bom e no mau sentido.

A Abin já tem um suspeito de ter espalhado um suposto grampo contra o presidente do Supremo

Fernando MAIS BALAS
O banqueiro Daniel Dantas no momento de sua prisão, em julho.A PF está reunindo novas provas contra ele Tarso obteve o aval do Palácio do Planalto para trocar o comando da PF com o argumento de que, com a mudança, poria ordem na casa. Não conseguiu. A entrada de Corrêa no lugar de Lacerda abriu uma disputa interna que veio a público na Operação Satiagraha. Aliados de Corrêa e de Lacerda começaram a trocar farpas durante a investigação sobre Dantas. À frente da investigação com o apoio de Lacerda, Protógenes não confiava na nova direção da PF, a cargo de Corrêa. Paranóico, Protógenes escondia informações sobre seu trabalho. Ele acusou, ao Ministério Público Federal, a nova direção da PF de vazar informações a Dantas. Os novos diretores da PF reduziram sua equipe por não acreditar em seu trabalho. Foi então que Protógenes buscou a ajuda de Lacerda para fornecer espiões da Abin para ajudá-lo. Há duas semanas, a corregedoria da PF promoveu uma operação que apreendeu computadores, celulares e documentos de Protógenes. O motivo era uma investigação interna para saber se ele vazara informações da Satiagraha para a imprensa. Na mesma operação, a PF apreendeu computadores e documentos na Abin. Isso ampliou a crise e expôs outra chaga: o clima de anarquia impera também no serviço secreto, uma das áreas mais sensíveis do governo.

Na manhã da quinta-feira, os funcionários da Abin foram chamados ao auditório para ouvir o chefe, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Jorge Armando Felix. Felix deslocou-se do Palácio do Planalto até a Abin para falar a seus comandados sobre as providências adotadas na crise com a PF. Como se estivesse conversando com um confidente, pediu segredo à multidão de cerca de mil arapongas presentes e contou, em tom solene: Já descobrimos quem foi que passou?.

O que Jorge Felix disse saber é o nome de quem teria divulgado uma conversa entre o presidente do STF, Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), supostamente grampeada por gente da Abin. O episódio levou Gilmar a pedir ao presidente Lula o afastamento de Lacerda. A platéia reagiu com surpresa à fala do general. Até agora, não se sabia que as investigações em curso tinham chegado a algum resultado. A apuração da PF sobre o suposto grampo está praticamente na estaca zero. Dois meses e meio depois, a PF não sabe dizer nem sequer se houve grampo. Para o ministro Felix, saber quem passou a informação à imprensa é importante para elucidar o jogo de interesses por trás do escândalo.

A suspeita, que Felix trata como certeza, recai sobre Nery Kluwe de Aguiar Filho, presidente da Associação dos Servidores da Abin (Asbin), o sindicato dos arapongas. Kluwe dirige a associação desde que ela foi criada, em 2002. Gaúcho, de 55 anos, formado em Direito e Administração, ele é um espião experiente. Sua carreira na área começou ainda no Exército, onde serviu em regimentos de cavalaria. Depois, foi designado para o Serviço Nacional de Informações (SNI), o célebre serviço secreto do regime militar. Atualmente, Kluwe é funcionário de uma seção burocrática da agência. Passa a maior parte na Asbin, que funciona num anexo à área da Abin, em Brasília.

Kluwe e Felix são adversários. Não é de hoje que o araponga faz campanha para derrubar o general. No auge do escândalo dos cartões corporativos, Kluwe espalhou que as faturas de Felix continham despesas inexplicáveis, como pagamento de restaurantes caros em viagens particulares ao Rio de Janeiro. O troco veio recentemente, quando Kluwe passou a ser alvo de sindicâncias internas. Na semana passada, ele foi avisado da existência de duas novas. Numa delas, por faltas injustificadas ao serviço, Kluwe é acusado de abandono de emprego. Meses atrás, seus contracheques vieram praticamente zerados, porque a direção da Abin resolvera descontar as faltas. A outra apura as atividades extras do araponga. Além de espião e sindicalista, Kluwe exerce a advocacia. Num dos processos, no Supremo Tribunal Federal, Kluwe é o defensor do ex-deputado federal Nilton Capixaba, acusado de envolvimento com a máfia das ambulâncias. Comenta-se que há ainda mais dois processos instaurados em desfavor da minha pessoa?, diz Kluwe na página da Asbin na internet. Rogo a Deus que me ilumine e me dê sabedoria e serenidade para enfrentar mais essa vicissitude.?

Kluwe também teria aproveitado a crise gerada pelo suposto grampo em Gilmar para conspirar contra seu então chefe, Lacerda. De início, ele atribuiu as escutas a uma armação contra Lacerda. Estamos vivendo um complô contra um alvo determinado, o doutor Lacerda?, afirmou. Kluwe apoiava Lacerda por interesses corporativos. Só queremos aproveitar a boa relação dele (Lacerda) com o presidente para conseguir nosso plano de carreira. Depois damos um chute e mandamos ele de volta à polícia?, disse Kluwe em conversa testemunhada por um interlocutor.

Coincidência ou não, o plano de carreira saiu exatamente nos dias que antecederam a notícia que atribuía o suposto grampo à Abin. Naquele momento, Kluwe e seus companheiros sindicalistas já estavam insatisfeitos com a administração de Paulo Lacerda. A principal razão era o fato de Lacerda ter instalado uma corregedoria na Abin, chefiada por uma delegada da PF, Maria do Socorro Tinoco. Kluwe passou então a criticar a aliança da Abin com Protógenes na Operação Satiagraha e a defender a saída definitiva de Lacerda da Abin. Não dá para ficar mais nessa situação, ele (Lacerda) nos colocou numa enrascada?, disse na semana passada. Seja na Abin, seja na PF, os interesses do país foram submetidos aos interesses corporativos de uma meia dúzia.

Só falta sair tiro

Há meses, a facção do ex-diretor Paulo Lacerda e a do atual diretor, Luiz Fernando Corrêa, brigam dentro da Polícia Federal

AS FACÇÕES Luiz Fernando Corrêa Paulo Lacerda

Reprodução Reprodução

Sem acesso à investigação sobre Daniel Dantas, a nova direção da PF transfere o escritório do delegado Protógenes Queiroz de São Paulo para Brasília e reduz sua equipe Para contornar as limitações, Protógenes recorre a seu aliado Paulo Lacerda, diretor-geral da Abin, que autoriza arapongas a ajudar Protógenes A direção da PF afasta o delegado Protógenes Queiroz da investigação de Daniel Dantas dias depois da operação. O pretexto é um curso de especialização Protógenes acusa o diretor de inteligência da PF, Daniel Lorenz, de vazar informações sobre a operação para o jornal Folha de S.Paulo. No dia da Operação Satiagraha, Protógenes só avisa seus superiores sobre os alvos na última hora A PF passa a investigar Protógenes por suspeita de vazar informações da Satiagraha à imprensa e por um suposto grampo ilegal que teria sido feito para gravar conversas do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes Aliado de Paulo Lacerda, o delegado Anderson Oliveira comanda a Operação Toque de Midas e prende o diretor-executivo da Polícia Federal, Romero Menezes, segundo homem na hierarquia,
ligado ao diretor Luiz Fernando Corrêa A PF apreende computadores, celulares e documentos na casa de Protógenes, na de outros investigadores da Satiagraha e em escritórios da Abin O delegado Protógenes acusa seus chefes na PF de sabotagem e de vigiá-lo para repassar informações ao banqueiro Daniel Dantas.

Época

15.11.08

Jango é chamado de herói por Lula

Governo concede anistia política a João Goulart. Lula chama ex-presidente de herói

O ex-presidente João Goulart, deposto em 1964, foi anistiado neste sábado, por unanimidade, pela Comissão de Anistia. Sua viúva, Maria Tereza Goulart, também foi anistiada. Com a decisão, a família do ex-presidente vai receber uma indenização de R$ 650 mil, e a viúva, uma pensão de R$ 5.500. É a primeira vez que um ex-presidente é anistiado por perseguição política.

O neto de Jango, Christopher Goulart, filho de João Vicente e Stela Katz, representou a família e recebeu do ministro da Justiça, Tarso Genro, o documento anistiando Jango e Maria Tereza. A solenidade foi realizada durante o encerramento da XX Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Natal.

Jango defendia país mais igualitário, diz Lula

Em rara manifestação sobre os anos de chumbo no Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez elogios ao ex-presidente João Goulart e, em nome do Estado, pediu desculpas pelo golpe que o derrubou do poder. Em carta, lida por Tarso Genro, Lula afirmou que Jango representa como poucos o ideal de um Brasil mais justo.

Ele representa como poucos o ideal de um Brasil mais justo, mais igualitário e mais democrático

"O evento de hoje homenageia a um grande líder da nação. Nunca será demais destacar o papel heróico de Jango para o povo brasileiro, uma vez que ele representa como poucos o ideal de um Brasil mais justo, mais igualitário e mais democrático. Infatigável defensor da pátria e das reformas de base , Jango viu o ocaso do Estado de Direito no Brasil, que o obrigou ao exílio, do qual retornou sem vida, para ser sepultado em sua amada terra natal", afirmou Lula na mensagem.

Segundo o presidente, o ato deste sábado não apenas homenageia a memória de João Goulart, mas também marca o pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro, pela Comissão de Anistia, que "em nome do povo reconhece os erros do passado e pede desculpas a um homem que defendeu a nação e seu povo do qual jamais poderíamos ter prescindido".

Para Tarso, anistia é reparação do Estado a Jango.
Tarso afirmou, por sua vez, que a concessão da anistia política a João Goulart representa uma "reparação" do estado brasileiro.

Significa dizer à nação que ele foi injustiçado, que ele foi um grande brasileiro

João Goulart foi um homem injustamente cassado, perseguido e derrubado por meios ilegais, (perseguição política) significa dizer à nação que ele foi injustiçado, que ele foi um grande brasileiro - disse.

O ministro também lembrou os laços de sua família com Goulart, quando seu pai militou junto ao ex-presidente.

- Eu o conhecia pessoalmente. Sempre admirei seu jeito de fazer política olhando para o Brasil como um conjunto, olhando para as classes trabalhadoras e sempre procurando fazer concertações, acordos, dentro da ética e da democracia.

Neto de Jango diz que anistia é 'desagravo público'

Cristhofer Goulart afirmou que o ato representa um "desagravo público para um presidente constitucional que foi deposto por um golpe inconstitucional". Ele lembrou que seu avô foi o único presidente brasileiro a morrer no exílio.

- Que o Brasil preste uma homenagem àquele presidente que sequer teve luto oficial na data do seu falecimento. Morreu em 1976, e o silêncio foi a versão oficial do governo ditatorial que na época tinha medo da comoção popular pela morte daquele que era a personificação da queda da democracia brasileira - afirmou.

Jango foi eleito vice-presidente de Jânio Quadros em 1960. No ano seguinte, com a renúncia de Quadros, assumiu a presidência e foi deposto em 1964 pelos militares que então assumiram o poder. O ato marcou o início da ditadura militar no país.

O ex-presidente teve os direitos políticos cassados por dez anos e partiu para o exílio, onde permaneceu até sua morte, em 1976, na Argentina. Antes, viveu no Uruguai.
O Globo

O enigma de Zumbi

Estudos recentes sobre o herói da luta contra a escravidão mostram que ele próprio pode ter sido dono de escravos no quilombo dos Palmares


Leandro Narloch

Biblioteca Nacional

Idéia exótica
Negro retratado no Brasil do século XVII pelo pintor holandês Albert Eckhout: na época, o conceito de igualdade entre os homens não existia na África


Na próxima quinta-feira, 262 cidades brasileiras comemoram o Dia da Consciência Negra, data que evoca a morte de Zumbi dos Palmares. Último líder do maior dos quilombos, os povoados formados por negros fugidos do cativeiro no Brasil colonial, Zumbi foi morto em 20 de novembro de 1695, quase dois anos depois de as tropas do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho praticamente destruírem Palmares. Ao longo dos séculos, Zumbi se tornou uma figura mítica, festejado como o herói da luta contra a escravidão. O que realmente se sabe dele, como personagem histórico, é muito pouco. Seu nome aparece apenas em oito documentos da época, incluindo uma carta do governador de Pernambuco anunciando sua morte. Como ocorre com Tiradentes e outros heróis históricos que servem à celebração de uma causa, a figura de Zumbi que passou à posteridade é idealizada. Ao longo do século XX, principalmente nos anos 60 e 70, sob influência do pensamento marxista, Palmares foi retratada por muitos historiadores como uma sociedade igualitária, com uso livre da terra e poder de decisão compartilhado entre os habitantes dos povoados. Uma série de pesquisas elaboradas nos últimos anos mostra que a história de Zumbi e do quilombo dos Palmares ensinada nos livros didáticos tem muitas distorções. Muito do que se conta sobre sua atuação à frente do quilombo é incompatível com as circunstâncias históricas da época. O objetivo desses estudos não é colocar em xeque a figura simbólica de Zumbi, mas traçar um quadro realista, documentado, do homem e de seu tempo.

Os novos estudos sobre Palmares concluem que o quilombo, situado onde hoje é o estado de Alagoas, não era um paraíso de liberdade, não lutava contra o sistema de escravidão nem era tão isolado da sociedade colonial quanto se pensava. O retrato que emerge de Zumbi é o de um rei guerreiro que, como muitos líderes africanos do século XVII, tinha um séquito de escravos para uso próprio. "É uma mistificação dizer que havia igualdade em Palmares", afirma o historiador Ronaldo Vainfas, professor da Universidade Federal Fluminense e autor do Dicionário do Brasil Colonial. "Zumbi e os grandes generais do quilombo lutavam contra a escravidão de si próprios, mas também possuíam escravos", ele completa. Não faz muito sentido falar em igualdade e liberdade numa sociedade do século XVII porque, nessa época, esses conceitos não estavam consolidados entre os europeus. Nas culturas africanas, eram impensáveis. Desde a Antiguidade e principalmente depois da conquista árabe no norte da África, a partir do século VII, os africanos vendiam escravos em grandes caravanas que cruzavam o Deserto do Saara. Na época de Zumbi, a região do Congo e de Angola, de onde veio a maioria dos escravos de Palmares, tinha reis venerados como se fossem divinos. Muitos desses monarcas se aliavam aos portugueses e enriqueciam com a venda de súditos destinados à escravidão.

Reprodução/Biblioteca Nacional e Museu Paulista

A caça e o caçador
Zumbi e o bandeirante Domingos Jorge Velho, que destruiu Palmares: a escassez de documentos favoreceu versões romantizadas de como era a vida no quilombo

"Não se sabe a proporção de escravos que serviam os quilombolas, mas é muito natural que eles tenham existido, já que a escravidão era um costume fortíssimo na cultura da África", diz o historiador carioca Manolo Florentino, autor do livro Em Costas Negras, uma das primeiras obras a analisar a história do Brasil com base nos costumes africanos. Zumbi, segundo os novos estudos sobre Palmares, seria descendente de uma classe de guerreiros africanos que ora ajudava os portugueses na captura de escravos, ora os combatia. Quando enviados ao Brasil como escravos, os nobres africanos freqüentemente formavam sociedades próprias – uma delas pode ter sido Palmares. Para chegar a esse novo retrato de Zumbi e do quilombo, os historiadores analisaram as revoltas escravas partindo de modelos parecidos que ocorreram em outros lugares da América e da África. Também voltaram às cartas, relatos e documentos da época, mostrando como cada historiografia montou o quilombo que queria.

O principal historiador a reinterpretar o que ocorreu nos quilombos é o carioca Flávio dos Santos Gomes. Ele escreve no livro Histórias de Quilombolas: "Ao contrário de muitos estudos dos anos 1960 e 1970, as investigações mais recentes procuraram se aproximar do diálogo com a literatura internacional sobre o tema, ressaltando reflexões sobre cultura, família e protesto escravo no Caribe e no sul dos Estados Unidos". Atendo-se às fontes primárias e ao modo de pensar da época, os historiadores agora podem garimpar os mitos de Palmares que foram construídos no século XX.

O novo quilombo dos Palmares

Estudos recentes mudam a visão que predominou
no século XX sobre os povoados

O que se pensava
• O quilombo era uma sociedade igualitária, com uso livre da terra e poder de decisão compartilhado
• Zumbi lutava contra a escravidão
• Zumbi foi criado por um padre, recebeu o nome de Francisco e aprendeu latim
• Ganga-Zumba, líder que antecedeu Zumbi, traiu o quilombo ao fechar acordo com os portugueses

O que se pensa hoje
• Havia em Palmares uma hierarquia, com servos e reis tão poderosos quanto os da África
• Zumbi e outros chefes tinham seus próprios escravos
• As cartas em que um padre daria detalhes da infância de Zumbi provavelmente foram forjadas
• Ao romper o acordo com Portugal, Zumbi pode ter precipitado a destruição do quilombo

Conflito na fronteira

O Exército da Bolívia invade território brasileiro em busca de opositores de Evo Morales. Confrontos já provocaram a fuga de centenas de bolivianos pela fronteira do Acre


Otávio Cabral, de Cobija

Fotos Ana Araujo, Aizae Raldes/AFP e Juan Barreto/AFP
UM PAÍS RACHADO
Evo Morales dividiu a Bolívia entre opositores que se refugiaram no Acre e indígenas que lhe dão apoio. Para contornar a crise, enviou ao Brasil o ministro Rada (à direita)
O ginásio de esportes de Brasiléia, cidade de 20 000 habitantes no interior do Acre, transformou-se no cenário mais visível de uma crise política e humanitária que pode pôr em xeque as relações diplomáticas entre Brasil e Bolívia. Acampados em barracas, estão ali 120 dos mais de 1 000 bolivianos que fugiram para o Brasil após o acirramento da disputa entre os partidários do presidente Evo Morales e a oposição no departamento de Pando, o mais pobre do país. Em 11 de setembro, um confronto entre os dois grupos deixou dezoito mortos, setenta feridos e cinqüenta desaparecidos e deu início a um processo intenso de fuga através da fronteira. O Brasil é o destino de centenas de refugiados da guerrilha colombiana, entre ex-integrantes das Farc, ex-milicianos e simples trabalhadores que fogem da violência. Essa migração clandestina não produziu até agora um problema político mais grave entre Brasília e os governos vizinhos. No caso dos bolivianos, porém, a chegada dos fugitivos tem provocado a emissão de sucessivos alertas por parte do Exército, da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência para um provável incidente diplomático que pode explodir a qualquer momento. Em pelo menos duas ocasiões, agentes do governo do presidente Evo Morales invadiram o território brasileiro para tentar prender oposicionistas que cruzaram a fronteira.

O primeiro incidente ocorreu há um mês, quando agentes da Polícia Federal flagraram quatro bolivianos à paisana circulando pelas ruas de Brasiléia em uma caminhonete. Abordados, eles se identificaram como membros do Exército boliviano, mas disseram que estavam de folga no Brasil. Duas semanas depois, outros dois militares foram vistos rondando o ginásio da cidade e fotografando alguns refugiados. Abordados, também desconversaram. Os serviços de inteligência da PF e do Exército, porém, descobriram que os seis militares estavam em missão oficial. Tentavam localizar na cidade as lideranças do movimento de resistência da região de Pando, que, de acordo com os levantamentos feitos, realmente cruzaram a fronteira, mas estão escondidos em regiões próximas. Para evitar um incidente maior, o governo brasileiro decidiu devolver os militares à Bolívia, advertindo, entretanto, que não vai tolerar novas invasões. "O Brasil não vai admitir violação à sua soberania e às suas fronteiras", afirma Luiz Paulo Barreto, secretário executivo do Ministério da Justiça e presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). "Recebemos e protegemos os bolivianos, mas não vamos importar a crise do vizinho."

O Ministério da Defesa brasileiro estuda a realização de manobras militares na região. O Exército já enviou 300 homens e dois helicópteros a Epitaciolândia, cidade vizinha a Brasiléia. Os dois municípios ficam a 100 metros da boliviana Cobija, a capital de Pando, e são separados do país vizinho por duas pontes. A PF reforçou a fronteira com dez homens da inteligência. A ponte entre Brasiléia e Cobija foi fechada para carros pelo Brasil, para aumentar o controle sobre os bolivianos que entram no país. Para tentar serenar os ânimos, o ministro da Defesa da Bolívia, Walker San Miguel, já esteve duas vezes no Brasil e ouviu reclamações formais sobre a atuação de seus militares. Na semana passada, o assunto foi discutido em audiência entre Alfredo Rada, ministro do governo da Bolívia, e Tarso Genro, ministro da Justiça do Brasil. Rada levou na bagagem uma série de advertências a Evo Morales. Embora seja simpático ao governo boliviano, o Brasil avisou que terá de tomar uma atitude drástica caso os militares vizinhos continuem patrocinando ações clandestinas em território brasileiro.

A revolução bolivariana conduzida por Evo Morales e inspirada no presidente da Venezuela, Hugo Chávez, dividiu o país entre os "collas", indígenas e mestiços que dão suporte ao governo Morales, e os "cambas", brancos oposicionistas que lutam pela autonomia administrativa e orçamentária dos departamentos – equivalentes aos estados brasileiros. Em agosto, a divisão foi acirrada por um referendo que decidiu sobre a manutenção do mandato de Morales e dos governadores. Tanto o presidente como os oposicionistas conseguiram ficar no cargo. Os collas de Pando, porém, não se conformaram com a vitória do rival Leopoldo Fernández. No início de setembro, três colunas de camponeses, financiadas por dinheiro federal, saíram do interior de Pando rumo a Cobija para destituir Fernández. O governador soube do plano e ordenou que servidores cambas usassem máquinas públicas para cavar trincheiras e impedir a passagem dos rivais. Os dois grupos se encontraram em uma praça em Porvenir. Um engenheiro de Pando, Pedro Oshiro, morreu com um tiro na cabeça quando tentava mediar o conflito. Os autonomistas de Fernández reagiram e iniciaram o tiroteio. Ao final de uma hora de batalha, dezesseis camponeses ligados a Morales e dois autonomistas que apoiavam Fernández caíram mortos.

A chegada dos bolivianos ao Acre representa o maior fluxo de deslocados políticos da história do Brasil, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Somente no dia 15 de setembro, quando o Exército foi para as ruas, 400 bolivianos cruzaram a Ponte Wilson Pinheiro, inaugurada por Lula em 2004, e chegaram a Brasiléia, onde passaram a noite ao relento na praça central da cidade. Nos dias seguintes, mais 600 bolivianos chegaram ao Brasil pelas pontes, atravessando a nado o Rio Acre ou caminhando pela floresta. Hoje, o maior grupo de refugiados está abrigado no ginásio de esportes, apelidado pelos bolivianos de "coliseu". O restante se espalha por hotéis, pousadas, casas de amigos e sedes de sindicatos. Todos recebem alimento e assistência médica do governo do Acre e são protegidos pelo Exército brasileiro. Os cambas passam o dia sintonizados em rádios e TVs bolivianas em busca de notícias, principalmente sobre a situação de Leopoldo Fernández, que segue preso em um quartel do Exército em La Paz mesmo após a Suprema Corte ter concedido um habeas corpus para que fosse solto.

Ana Araujo
CENÁRIO DE GUERRA
Carros queimados ainda expostos na Praça de Porvenir dois meses após o confronto que provocou dezoito mortes

Há dois grupos de oposicionistas bolivianos em Brasiléia e Epitaciolândia. Em hotéis, casas alugadas e moradias de familiares, ficam profissionais liberais ligados diretamente a Fernández, que são dirigentes do partido de oposição a Morales. É o caso do advogado Carlos Soarez, amigo de infância de Leopoldo, que fechou seu escritório em Cobija, cruzou a ponte em uma caminhonete e se hospedou no melhor hotel da região. "Se eu cruzar a fronteira agora, durante o estado de sítio, serei preso. Temos de esperar o Exército sair das ruas e Leopoldo sair da cadeia para reorganizarmos a oposição ao ditador cocalero", brada Soarez na varanda do hotel, com jornais e revistas bolivianos sobre as pernas. Esse grupo, segundo informações da Polícia Federal, estaria usando fazendas em território brasileiro para organizar a resistência – o que também é ilegal. A polícia investiga até uma loja que estaria enviando armas da Bolívia para o Brasil. A informação foi repassada ao ministro Rada para que a Bolívia tome providências.

A principal liderança do grupo é Ana Melena de Suzuki, presidente do Comitê Cívico de Pando. Acusada formalmente pela polícia boliviana de responsável pelo massacre, ela também fugiu para Brasiléia. Mesmo em território brasileiro, foi perseguida por agentes bolivianos e pediu ajuda à PF, que a levou para longe da fronteira. Boa parte dos líderes autonomistas já pediu refúgio político ao Brasil. Temem ser perseguidos e presos pelo massacre se voltarem à Bolívia. O jornalista Jairo Vallejos, 24 anos, por exemplo, filmou um tiroteio entre militares e autonomistas no aeroporto de Cobija no dia seguinte ao massacre. Perseguido, fugiu para o Brasil com a mulher, grávida de nove meses, e teve sua primeira filha no hospital de Brasiléia. De acordo com o Conare, 46 bolivianos haviam pedido refúgio até a semana passada. Pelas próprias características do conflito boliviano, o perfil desses deslocados é atípico. Segundo o representante do Acnur no Brasil, Javier Lopez-Cifuentes, em geral os refugiados são camponeses pobres e moradores de periferias urbanas. "Aqui, são pessoas de classe média, com um padrão social maior", afirma Cifuentes.

O julgamento dos pedidos de refúgio pelo Conare deve ocorrer quando a situação na Bolívia se normalizar. A avaliação do governo brasileiro é que, com o fim do estado de sítio, boa parte dos bolivianos deve cruzar a fronteira de volta. Inicialmente, o estado de sítio vigorará até 12 de dezembro, podendo ser prorrogado por mais noventa dias. Evo Morales, porém, tem dado declarações contraditórias. Na segunda-feira passada, disse que defendia a prorrogação. Três dias depois, prometeu levantar o estado de exceção. Como se vê, é difícil prever o que acontecerá na Bolívia. Imaginando que a situação estivesse mais calma, na semana passada um grupo de asilados tentou voltar. Cinco deles foram presos pelo Exército e levados a La Paz. Assustada, uma nova leva de bolivianos cruzou a fronteira. Apenas na semana passada, vinte se registraram na Defesa Civil do Acre em busca de proteção. A oposição foge e tenta armar a resistência no Brasil. Os aliados de Evo se armam para sufocar os oposicionistas. A crise não tem perspectiva de acabar. Na porta de sua loja de bebidas e comidas importadas, em Cobija, órfão dos turistas brasileiros que fugiram da crise boliviana, o comerciante Angel Mena só lamenta: "Os dois lados se excederam, não há inocente nessa história. Agora ninguém sabe o que fazer para consertar essa situação". Muito menos Evo Morales, o homem que dividiu a Bolívia e exportou sua crise.

Fuga do hospital

Fotos Ana Araujo

"Eu estava em uma caminhonete com o engenheiro do governo de Pando que tentava negociar com os camponeses. Não teve conversa. Tiraram-nos do carro, atiraram nele e me jogaram no chão. Pedi para não morrer. Eles nem ouviram. Apanhei, levei uma machadada na mão, perdi parte de um dedo. Deram dois tiros na minha direção, eu me fingi de morto e consegui sobreviver. Fui internado e fugi do hospital porque soube que iriam me matar. Se eu voltar à Bolívia, os collas me matam."
Hugo Durán Salvatierra, 35 anos, motorista do governo de Pando

Longe da família

"Fui convocado pelo governador para cavar uma trincheira e impedir a passagem dos camponeses que marchavam para Cobija. Quando estourou a guerra, usei paus e pedras para atacar os inimigos. Levei um tiro na barriga e desmaiei. No hospital, os collas tentaram me pegar. Fugi com uma sonda na bexiga, andei pelo mato por dois dias e cheguei ao Brasil. O grande feito de Evo Morales foi dividir a Bolívia. Estou aqui vivendo em barraca, fora do meu país, longe de minha mulher e de meus filhos."
Rafael Segovia, 54 anos, tratorista do governo de Pando

Com Evo Morales

"Vivemos uma luta de classes na Bolívia. O governador Leopoldo está ao lado dos latifundiários que tomam as terras e exploram os pobres. Então, a reação dos camponeses é justa. Sou marcado pelos cambas por ser primo de Evo Morales. Por isso, queimaram minha loja quando fugiram. Mas não há perseguição política pelo Exército. Eles fogem porque são bandidos e covardes. Mataram inocentes e agora estão com medo da Justiça. Eles sabem que, se voltarem do Brasil, haverá vingança."
Filemon Condori, 37 anos, comerciante e dirigente do MAS

A nova Bolívia

"Não houve enfrentamento entre camponeses e autonomistas. Houve um massacre promovido pelo governador Leopoldo com a ajuda de pistoleiros brasileiros. Organizei a marcha que ia a Cobija depor o governador. Levei dois tiros, fui encaminhado a La Paz e tratado por médicos cubanos que salvaram minha vida. Leopoldo é corrupto, elitista, ligado à ditadura e aos latifundiários. Não há mais espaço para essa gente na nova Bolívia de Evo. Se ele sair da cadeia, não vamos deixá-lo reassumir o governo."
Aladino Cardozo, 54 anos, sindicalista e dirigente do MAS em Pando

Medo do retorno

"Estava cavando uma trincheira para impedir a passagem dos caminhões dos golpistas do MAS quando eles chegaram e me tomaram como refém. Fui amarrado, amordaçado e apanhei. A polícia me libertou e eu corri para o mato. Na fuga, levei dois tiros por trás, que atingiram minhas pernas. Fui internado na Bolívia, vi amigos ser resgatados do hospital e fugi para o Brasil. Minha mulher continua em Cobija. Sonho em voltar para casa, mas sei que serei preso se cruzar a fronteira."
Edgar Peña, 40 anos, funcionário do governo de Pando