Sob a ameaça de perder o cargo, o ministro Tarso Genro tenta apagar a imagem de que o governo protege Daniel Dantas
No alto escalão da Esplanada dos Ministérios, o ministro da Justiça, Tarso Genro, é certamente quem está mais preocupado com seu futuro no governo. Recentemente, Tarso abriu várias frentes de combate que o desgastaram. A mais delicada está na Polícia Federal. Desde que assumiu a pasta e trocou o comando da corporação, viu a polícia ser dominada pela anarquia, concretizada numa disputa fratricida em torno da investigação sobre o banqueiro Daniel Dantas. O desgaste se estendeu recentemente para a frente política. Fortalecidos pela recente vitória eleitoral, dirigentes do PMDB passaram a disseminar a teoria de que a PF persegue o partido com investigações sobre seus principais líderes. Por isso, eles gostariam de remover Tarso e até de receber o comando da Justiça em troca da fidelidade ao governo Lula. Curiosamente, justamente a PF e seu trabalho sobre Dantas são hoje o principal trunfo de Tarso para tentar romper o cerco e sobreviver no governo.
Nas últimas duas semanas, Tarso tem falado com empolgação a interlocutores sobre o que seria uma nova fase da investigação sobre Dantas. Depois do barulhento afastamento do delegado Protógenes Queiroz, que comandou a investigação por quatro anos e deflagrou a Operação Satiagraha, a PF começou, na semana passada, a enviar à Justiça novos relatórios sobre suas apurações. Nos bastidores, ninguém nega que se trata de um esforço do ministro e da PF para mostrar serviço e tentar apagar a impressão de que o governo teria investido contra Protógenes para proteger Dantas. Vamos provar o contrário. Como peça judicial, o novo trabalho é muito mais contundente e efetivo?, afirma um diretor da PF.
O novo relatório foi feito por uma equipe de 25 policiais especialistas em crimes financeiros, que trabalharam com o delegado federal Ricardo Saadi para concluir a investigação de Protógenes. Essa força-tarefa se beneficiou de providências tomadas pelo próprio Protógenes – o material coletado nas operações de apreensão da Satiagraha e as informações recebidas de bancos, da Receita Federal e de instituições financeiras no exterior que só chegaram à PF depois da Satiagraha. Um primeiro relatório da PF sobre lavagem de dinheiro e gestão fraudulenta foi enviado ao juiz federal Fausto de Sanctis. É um trabalho exemplar, baseado em provas novas e consistentes?, afirma Tarso.
A comparação feita por Tarso e pela PF é exagerada. O novo relatório não traz muitas novidades em relação ao que foi produzido por Protógenes. Apenas é mais técnico, inclui novos documentos e tem uma redação diferente, mais bem organizada. Em vez de ouvir as mesmas pessoas já interrogadas por Protógenes e de recolher os mesmos documentos, o delegado Saadi usou depoimentos de doleiros, obtidos pela PF na Operação Farol da Colina, em que Dantas e o Opportunity eram citados, como indícios de gestão fraudulenta e evasão de divisas. Ele adotou essa estratégia para evitar as iniciativas da defesa de Dantas, que tem procurado anular na Justiça as provas obtidas por Protógenes. Assim, Saadi teria material sobre os mesmos supostos crimes para levar Dantas à prisão. A PF também teve acesso a movimentações financeiras das empresas de Dantas no exterior, inclusive em paraísos fiscais. Com base nessas informações, o governo brasileiro já conseguiu bloquear contas bancárias em alguns países, como a Inglaterra e a Suíça.
O novo relatório, com 243 páginas e cinco anexos, faz um resumo geral da trajetória financeira de Dantas e de seu banco, o Opportunity. O documento descreve os dois principais crimes que, segundo a PF, Dantas teria cometido: gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro. A PF afirma haver indícios claros de que o banqueiro burlou a lei ao enviar do Brasil dinheiro para um fundo de investimentos do Opportunity nas Ilhas Cayman, um paraíso fiscal. Esse tipo de aplicação só pode ser feita por estrangeiros ou brasileiros que vivem no exterior. De acordo com a PF, Dantas teria enviado dinheiro do Brasil para o fundo e trazido o lucro de volta. Para justificar a entrada do dinheiro – ou para lavá-lo?–, teria comprado gado para sua fazenda, a Agropecuária Santa Bárbara Xinguara, no Pará. O esquema é conhecido. De acordo com especialistas, a negociação com gado é uma das mais conhecidas práticas de lavagem de dinheiro. Basta que o investidor simule o nascimento de bezerros e a venda deles. O dinheiro trazido do exterior fica registrado, então, como lucro obtido com a venda dos animais.
O esforço de Tarso e de dirigentes da PF para mostrar eficiência nesta nova etapa da investigação não encobre pelo menos um fiasco. Mais de quatro meses depois de terem sido apreendidos, na casa de Dantas, os discos rígidos encontrados atrás de uma parede falsa continuam um mistério para os federais. Até agora, eles não conseguiram descobrir os códigos de acesso ao conteúdo dos computadores. Segundo peritos, para cada senha haveria cerca de 1 bilhão de combinações possíveis. Se todas fossem testadas, uma por segundo, o processo poderia levar mais de 30 anos.
O desgaste de Tarso começou com sua decisão de trocar o diretor da PF. Saiu Paulo Lacerda e entrou Luiz Fernando Corrêa. De lá para cá, a PF está conflagrada (leia o quadro ao lado). O governo sente saudades do Márcio Thomas Bastos?, diz um ministro próximo a Lula, numa referência ao antecessor de Tarso. Tarso promoveu mudanças nos procedimentos, vistas como tentativas do governo de segurar as investigações contra Dantas. Ele só sabe detalhes da investigação sobre Dantas por conta de uma nova regra: todos os inquéritos passíveis de repercussão têm de ser submetidos a um crivo superior pelo menos 15 dias antes de serem enviados à Justiça. Cabe ao comando da PF fazer uma checagem para averiguar se os elementos coletados são suficientemente consistentes?, a ponto de deflagrar uma operação. O governo afirma que é um passo importante para a profissionalização? da polícia. É também uma tentativa de controlar o trabalho, no bom e no mau sentido.
A Abin já tem um suspeito de ter espalhado um suposto grampo contra o presidente do Supremo
MAIS BALAS
O banqueiro Daniel Dantas no momento de sua prisão, em julho.A PF está reunindo novas provas contra ele Tarso obteve o aval do Palácio do Planalto para trocar o comando da PF com o argumento de que, com a mudança, poria ordem na casa. Não conseguiu. A entrada de Corrêa no lugar de Lacerda abriu uma disputa interna que veio a público na Operação Satiagraha. Aliados de Corrêa e de Lacerda começaram a trocar farpas durante a investigação sobre Dantas. À frente da investigação com o apoio de Lacerda, Protógenes não confiava na nova direção da PF, a cargo de Corrêa. Paranóico, Protógenes escondia informações sobre seu trabalho. Ele acusou, ao Ministério Público Federal, a nova direção da PF de vazar informações a Dantas. Os novos diretores da PF reduziram sua equipe por não acreditar em seu trabalho. Foi então que Protógenes buscou a ajuda de Lacerda para fornecer espiões da Abin para ajudá-lo. Há duas semanas, a corregedoria da PF promoveu uma operação que apreendeu computadores, celulares e documentos de Protógenes. O motivo era uma investigação interna para saber se ele vazara informações da Satiagraha para a imprensa. Na mesma operação, a PF apreendeu computadores e documentos na Abin. Isso ampliou a crise e expôs outra chaga: o clima de anarquia impera também no serviço secreto, uma das áreas mais sensíveis do governo.
Na manhã da quinta-feira, os funcionários da Abin foram chamados ao auditório para ouvir o chefe, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Jorge Armando Felix. Felix deslocou-se do Palácio do Planalto até a Abin para falar a seus comandados sobre as providências adotadas na crise com a PF. Como se estivesse conversando com um confidente, pediu segredo à multidão de cerca de mil arapongas presentes e contou, em tom solene: Já descobrimos quem foi que passou?.
O que Jorge Felix disse saber é o nome de quem teria divulgado uma conversa entre o presidente do STF, Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), supostamente grampeada por gente da Abin. O episódio levou Gilmar a pedir ao presidente Lula o afastamento de Lacerda. A platéia reagiu com surpresa à fala do general. Até agora, não se sabia que as investigações em curso tinham chegado a algum resultado. A apuração da PF sobre o suposto grampo está praticamente na estaca zero. Dois meses e meio depois, a PF não sabe dizer nem sequer se houve grampo. Para o ministro Felix, saber quem passou a informação à imprensa é importante para elucidar o jogo de interesses por trás do escândalo.
A suspeita, que Felix trata como certeza, recai sobre Nery Kluwe de Aguiar Filho, presidente da Associação dos Servidores da Abin (Asbin), o sindicato dos arapongas. Kluwe dirige a associação desde que ela foi criada, em 2002. Gaúcho, de 55 anos, formado em Direito e Administração, ele é um espião experiente. Sua carreira na área começou ainda no Exército, onde serviu em regimentos de cavalaria. Depois, foi designado para o Serviço Nacional de Informações (SNI), o célebre serviço secreto do regime militar. Atualmente, Kluwe é funcionário de uma seção burocrática da agência. Passa a maior parte na Asbin, que funciona num anexo à área da Abin, em Brasília.
Kluwe e Felix são adversários. Não é de hoje que o araponga faz campanha para derrubar o general. No auge do escândalo dos cartões corporativos, Kluwe espalhou que as faturas de Felix continham despesas inexplicáveis, como pagamento de restaurantes caros em viagens particulares ao Rio de Janeiro. O troco veio recentemente, quando Kluwe passou a ser alvo de sindicâncias internas. Na semana passada, ele foi avisado da existência de duas novas. Numa delas, por faltas injustificadas ao serviço, Kluwe é acusado de abandono de emprego. Meses atrás, seus contracheques vieram praticamente zerados, porque a direção da Abin resolvera descontar as faltas. A outra apura as atividades extras do araponga. Além de espião e sindicalista, Kluwe exerce a advocacia. Num dos processos, no Supremo Tribunal Federal, Kluwe é o defensor do ex-deputado federal Nilton Capixaba, acusado de envolvimento com a máfia das ambulâncias. Comenta-se que há ainda mais dois processos instaurados em desfavor da minha pessoa?, diz Kluwe na página da Asbin na internet. Rogo a Deus que me ilumine e me dê sabedoria e serenidade para enfrentar mais essa vicissitude.?
Kluwe também teria aproveitado a crise gerada pelo suposto grampo em Gilmar para conspirar contra seu então chefe, Lacerda. De início, ele atribuiu as escutas a uma armação contra Lacerda. Estamos vivendo um complô contra um alvo determinado, o doutor Lacerda?, afirmou. Kluwe apoiava Lacerda por interesses corporativos. Só queremos aproveitar a boa relação dele (Lacerda) com o presidente para conseguir nosso plano de carreira. Depois damos um chute e mandamos ele de volta à polícia?, disse Kluwe em conversa testemunhada por um interlocutor.
Coincidência ou não, o plano de carreira saiu exatamente nos dias que antecederam a notícia que atribuía o suposto grampo à Abin. Naquele momento, Kluwe e seus companheiros sindicalistas já estavam insatisfeitos com a administração de Paulo Lacerda. A principal razão era o fato de Lacerda ter instalado uma corregedoria na Abin, chefiada por uma delegada da PF, Maria do Socorro Tinoco. Kluwe passou então a criticar a aliança da Abin com Protógenes na Operação Satiagraha e a defender a saída definitiva de Lacerda da Abin. Não dá para ficar mais nessa situação, ele (Lacerda) nos colocou numa enrascada?, disse na semana passada. Seja na Abin, seja na PF, os interesses do país foram submetidos aos interesses corporativos de uma meia dúzia.
Só falta sair tiroHá meses, a facção do ex-diretor Paulo Lacerda e a do atual diretor, Luiz Fernando Corrêa, brigam dentro da Polícia Federal
AS FACÇÕES Luiz Fernando Corrêa Paulo Lacerda
Sem acesso à investigação sobre Daniel Dantas, a nova direção da PF transfere o escritório do delegado Protógenes Queiroz de São Paulo para Brasília e reduz sua equipe Para contornar as limitações, Protógenes recorre a seu aliado Paulo Lacerda, diretor-geral da Abin, que autoriza arapongas a ajudar Protógenes A direção da PF afasta o delegado Protógenes Queiroz da investigação de Daniel Dantas dias depois da operação. O pretexto é um curso de especialização Protógenes acusa o diretor de inteligência da PF, Daniel Lorenz, de vazar informações sobre a operação para o jornal Folha de S.Paulo. No dia da Operação Satiagraha, Protógenes só avisa seus superiores sobre os alvos na última hora A PF passa a investigar Protógenes por suspeita de vazar informações da Satiagraha à imprensa e por um suposto grampo ilegal que teria sido feito para gravar conversas do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes Aliado de Paulo Lacerda, o delegado Anderson Oliveira comanda a Operação Toque de Midas e prende o diretor-executivo da Polícia Federal, Romero Menezes, segundo homem na hierarquia,
ligado ao diretor Luiz Fernando Corrêa A PF apreende computadores, celulares e documentos na casa de Protógenes, na de outros investigadores da Satiagraha e em escritórios da Abin O delegado Protógenes acusa seus chefes na PF de sabotagem e de vigiá-lo para repassar informações ao banqueiro Daniel Dantas.
Época
Um comentário:
que confusão da p...
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