31.8.08

Luciana Genro fica com doação da Gerdau

A candidata do PSOL à Prefeitura de Porto Alegre, Luciana Genro, não vai devolver os R$ 100 mil recebidos como doação da Gerdau, a maior produtora de aços longos das Américas, para sua campanha política, contrariando a sugestão dada na quinta-feira pelo candidato do partido à Prefeitura do Rio, Chico Alencar, durante sabatina promovida pelo Grupo Estado."A empresa não pede nada em troca; se eu não aceitar, eu sou burra", explicou Luciana ontem. "Todas as doações que recebemos são legais e transparentes. Não há nada a ser cobrado do PSOL em relação a isso."Apesar das justificativas, Luciana viu-se envolvida em fogo amigo e inimigo, que pode durar até o final da campanha. Na sabatina, Chico Alencar disse que a PSOL de Porto Alegre não deveria receber a doação e, se já tivesse recebido, deveria devolvê-la. Na propaganda eleitoral de televisão, a candidata do PSTU, Vera Guasso, criticou Luciana por aceitar dinheiro de uma grande empresa.Em conversas reservadas, outros adversários já indicaram que podem explorar o mesmo flanco, tentando expor a captação de recursos feita pelo PSOL como uma contradição. O estatuto do partido proíbe que seus filiados recebam doações de multinacionais estrangeiras, de empresas do setor financeiro e de concessionárias de serviços públicos. Luciana alega que a vedação não atinge a Gerdau, que é uma empresa brasileira com atuação em diversos países.Procurando minimizar a polêmica, Luciana disse que já conversou com Chico Alencar e recebeu apoio do candidato, que, na mesma sabatina, qualificou-a de "combativa, autêntica, seriíssima e incorruptível". "Ele sabe que a disputa em Porto Alegre é séria e que estamos nela para ganhar e não apenas para marcar posição."A previsão de gastos com a campanha de Luciana, feita pelo PSOL, é de R$ 700 mil. Até a primeira prestação de contas, no início de agosto, o partido havia arrecadado R$ 47.630,00, dos quais apenas R$ 5 mil de pessoas jurídicas.A Gerdau confirmou que fez doações iguais, de R$ 100 mil, na forma da lei, a todos os candidatos que solicitaram contribuições da empresa para a campanha eleitoral de Porto Alegre. Os recursos devem aparecer na prestação de contas dos candidatos no início de setembro.
LIGHT
Além de aceitar recursos de uma grande empresa, Luciana mudou a imagem e o discurso para a campanha. Por sugestão de um fotógrafo, alisou o cabelo. E mesmo sem contar com um marqueteiro, contratou uma assessoria, da jornalista Mauren Motta, para produzir seus programas de televisão. Em alguns deles chegou a mostrar o convívio familiar harmônico com um adversário político, seu pai, o ministro da Justiça, Tarso Genro, que apóia a concorrente Maria do Rosário (PT).Tanto na propaganda quanto nos debates a candidata vem explicando que não é raivosa, como dizem seus adversários, mas firme em suas posições."Eu sou conhecida pelas brigas que compro, pelas denúncias e pelas exigências que faço de quem está no poder", admite Luciana. "Mas esse é um perfil específico de quem está no parlamento. Quero mostrar que sou capaz, à frente do Executivo, de fazer o que cobro dos outros, com muito diálogo, inclusive com quem pensa diferente de mim."
Estado de São Paulo

Petropopulismo

Editorial Folha

TIRAMOS um "bilhete premiado", afirmou o presidente Lula, na última quinta-feira, a respeito da descoberta de um novo manancial de petróleo em águas ultraprofundas. Não é por isso, acrescentou, que devemos "nos deslumbrar e sair por aí gastando o que ainda não temos".
A frase presidencial reflete um espírito de prudência que tem sido raro nos círculos oficiais, a começar do próprio Lula. Ainda assim, não é esclarecedora quanto ao modo com que "gastaremos" os recursos, quando eles finalmente estiverem à disposição -a produção nas novas jazidas, dizem os especialistas, só começará a ser relevante para o país por volta de 2014.
O evento de quinta-feira passada, voltado a uma platéia de empresários, acadêmicos e políticos, destinava-se a divulgar o ambicioso plano de investimentos do BNDES para os próximos quatro anos.
Nesse ambiente, Lula temperou arroubos retóricos com a correta disposição de encarar com "cautela" a descoberta do recurso energético abaixo da camada de sal. Insistiu, por exemplo, na importância de que o país não se transforme em mero exportador de óleo bruto, investindo na produção de derivados.
Não tem sido essa, contudo, a tônica dos discursos presidenciais em ocasiões mais festivas. Predomina a propaganda de que a descoberta petrolífera cairá como um maná redentor sobre a população brasileira -uma dádiva capaz de corrigir com rapidez a desigualdade social e a péssima qualidade do ensino público.
A preocupação em destinar os novos recursos para desenvolver o país e sua população pode parecer consensual. Sob a camada de obviedade, entretanto, é que se depositam os aspectos mais complexos da questão.
Após o retumbante sucesso eleitoral do Bolsa Família -que continua a render frutos aos candidatos a prefeito associados ao presidente no Nordeste-, difundiu-se nos meios políticos brasileiros a idéia de que transferir renda diretamente aos mais pobres é a política social "par excellence". Nada mais perigoso do que aplicar esse princípio, de resto cômodo, às receitas oriundas do petróleo -no caso, obviamente, de o Brasil tornar-se grande exportador.
Na Venezuela, que optou pelo petroassistencialismo, a população se acostumou a esperar do governo inchado e da estatal petrolífera compensações pecuniárias, alimentares e empreguistas. É restrita, naquele país, a capacidade de geração de postos de trabalho e de renda fora da indústria do petróleo -fora do Estado, portanto. Se o modelo permanecer, quando o petróleo acabar, no futuro, os venezuelanos estarão entregues à própria sorte.
A nação sul-americana é apenas um entre vários exemplos de países que não conseguem explorar sua extraordinária riqueza natural de forma a assegurar a prosperidade das gerações futuras. O "bilhete premiado", como às vezes acontece com pessoas despreparadas que de repente recebem uma fortuna, pode esconder uma maldição.

30.8.08

A Abin gravou o ministro

Diálogo comprova que espiões do governo grampearam o presidente do Supremo Tribunal Federal. Autoridades federais e do Congresso também foram vigiadas.
Policarpo Junior e Expedito Filho


Antônio Cruz/ABR e Alan Marques/Folha Imagem
NA SOMBRA
Paulo Lacerda, diretor da Abin, está no epicentro do escândalo. Além de coordenar secretamente uma operação policial que nem o diretor da PF, Luiz Fernando Corrêa (à dir.), conhecia, a agência que ele dirige grampeou ilegalmente os telefones do presidente do Supremo Tribunal Federal, de ministros do governo Lula e de parlamentares

Há três semanas, VEJA publicou reportagem revelando que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, foi espionado por agentes a serviço da Agência Brasileira de Inteligência. O diretor da Abin, Paulo Lacerda, foi ao Congresso e negou com veemência a possibilidade de seus comandados estarem envolvidos em atividades clandestinas. Sabe-se, agora, que os arapongas federais não só bisbilhotaram o gabinete do ministro como grampearam todos os seus telefones no STF. VEJA teve acesso a um conjunto de informações e documentos que não deixam dúvida sobre a ação criminosa da agência. O principal deles é um diálogo telefônico de pouco mais de dois minutos entre o ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), gravado no fim da tarde do dia 15 de julho passado. A conversa, reproduzida na página anterior, não tem nenhuma relevância temática, mas é a prova cabal de que espiões do governo, ao invadir a privacidade de um magistrado da mais alta corte de Justiça do país e, por conseqüência, a de um senador da República, não só estão afrontando a lei como promovem um perigoso desafio à democracia.

O diálogo entre o senador e o ministro foi repassado à revista por um servidor da própria Abin sob a condição de se manter anônimo. O relato do araponga é estarrecedor. Segundo ele, a escuta clandestina feita contra o ministro Gilmar Mendes, longe de ser uma ação isolada, é quase uma rotina em Brasília. Os alvos, como são chamadas as vítimas de espionagem no jargão dos arapongas, quase sempre ocupam postos importantes. Somente neste ano, de acordo com o funcionário, apenas em seu setor de trabalho já passaram interceptações telefônicas de conversas do chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, e de mais dois ministros que despacham no Palácio do Planalto – Dilma Rousseff, da Casa Civil, e José Múcio, das Relações Institucionais. No Congresso, a lista é ainda maior. Segundo o araponga, foram grampeados os telefones do presidente do Senado, Garibaldi Alves, do PMDB, e dos senadores Arthur Virgílio, Alvaro Dias e Tasso Jereissati, todos do PSDB, e também do petista Tião Viana. Esse último, conforme o araponga, foi alvo da interceptação mais recente, que teve o objetivo "de acompanhar como ele está articulando sua candidatura à presidência do Senado". No STF, além de Gilmar Mendes, o ministro Marco Aurélio Mello também teve os telefones grampeados.

As gravações ilegais feitas pela Abin servem de base para a elaboração de relatórios que têm o presidente da República como destinatário final. Isso não quer dizer que Lula necessariamente tenha conhecimento de que seus principais assessores estejam grampeados ou que avalize a operação. Os agentes produzem as informações a partir do que ouvem, mas sem identificar a origem. Por serem ilegais, depois de filtradas, as gravações são destruídas. A do ministro Gilmar Mendes foi preservada porque, ao contrário das demais, ela foi produzida durante uma parceria feita entre a Abin e a Polícia Federal na operação que resultou na prisão do banqueiro Daniel Dantas, no início de julho. Os investigadores desconfiavam de uma suposta influência do banqueiro no STF e decidiram vigiar o presidente da corte. Gilmar Mendes já havia sido informado de que alguns comentários que ele fez com assessores no interior do gabinete tinham chegado ao conhecimento de outras pessoas – uma evidência de que suas conversas estavam sendo ouvidas. Desconfiado, solicitou à segurança do tribunal que providenciasse uma varredura. Os técnicos constataram a presença de sinais característicos de escutas ambientais, provavelmente de aparelhos instalados do lado de fora da corte. Não era só isso. O presidente do STF também tinha os telefonemas de seu gabinete gravados ininterruptamente. A Abin recebia e analisava, por dia, mais de duas dezenas de ligações do ministro. Foi para provar o que dizia que o funcionário mostrou uma delas.


Ana Araújo, Murilo Clareto e Fabio Motta/AE
INIMIGOS ÍNTIMOS
O ex-ministro José Dirceu teve seu escritório arrombado em São Paulo. Os ladrões só levaram a CPU do computador, embora houvesse outros objetos de valor. Dirceu aponta os espiões do governo como responsáveis pela invasão e acusa o ministro da Justiça, Tarso Genro, e a Abin de estarem por trás das ações clandestinas. A suspeita, gravíssima, já foi informada por Dirceu ao presidente Lula. O ex-ministro diz que foi advertido sobre a perseguição, que incluía grampos clandestinos em seus telefones e nos de seus familiares

De acordo com os registros, o senador Demóstenes Torres ligou para o ministro Gilmar Mendes às 18h29 para tratar de um problema relacionado à CPI da Pedofilia. Na ocasião, Mendes não pôde atender porque estava a caminho do Palácio do Planalto para uma audiência com o presidente Lula. Três minutos depois, às 18h32, a secretária retornou a ligação para o gabinete do senador e a transferiu para o celular do ministro. A conversa foi rápida. O presidente do Supremo agradeceu a Torres pelo pronunciamento no qual havia criticado o pedido de impeachment protocolado contra ele no Congresso. Na semana anterior, Mendes havia mandado soltar o banqueiro Daniel Dantas, o que provocou, além do pedido de impeachment, uma barulhenta reação da polícia e do Ministério Público. As entidades enxergaram na decisão do ministro – polêmica, mas felizmente tomada sob inspiração das leis vigentes – uma tentativa de impedir a punição dos corruptos. A Polícia Federal e a Abin interpretaram a decisão como uma confirmação de que alguma coisa errada se passava no gabinete do ministro e decidiram intensificar as ações ilegais. A partir daí, o presidente do Supremo e seus assessores mais próximos passaram a ser ouvidos, grampeados e seguidos pelos arapongas.

O diálogo em poder da Abin foi apresentado ao ministro Gilmar Mendes e ao senador Demóstenes Torres. Ambos confirmaram o teor da conversa, a data em que ela aconteceu e reagiram com indignação. "Não há mais como descer na escala da degradação institucional. Gravar clandestinamente os telefonemas do presidente do Supremo Tribunal Federal é coisa de regime totalitário. É deplorável. É ofensivo. É indigno", disse o ministro, anunciando que vai pedir providências diretamente ao presidente Lula. "Não acredito que a ação da Abin ou da Polícia Federal seja oficial, com o conhecimento do governo, mas cabe ao presidente da República punir os responsáveis por essa agressão", acrescentou Mendes. O senador Demóstenes Torres também protestou: "Essa gravação mostra que há um monstro, um grupo de bandoleiros atuando dentro do governo. É um escândalo que coloca em risco a harmonia entre os poderes". O parlamentar informou que vai cobrar uma posição institucional do presidente do Congresso, Garibaldi Alves, sobre o episódio, além de solicitar a convocação imediata da Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso para analisar o caso. "O governo precisa mostrar que não tem nada a ver e nem é conivente com esse crime contra a democracia."

A atuação descontrolada dos arapongas oficiais está provocando crises dentro do próprio governo. Em conversas reservadas com assessores, Gilberto Carvalho, o chefe de gabinete do presidente Lula, que também foi vítima de espionagem clandestina, suspeita de uma conspiração em andamento para criar dificuldades ao governo. A teoria ganhou um reforço de um peso pesado do petismo. O ex-ministro José Dirceu, acostumado a freqüentar o noticiário como suspeito de alguma coisa, tem contado a amigos que é vítima de uma intensa perseguição de arapongas. A mais explícita, segundo ele, aconteceu em março passado. Um advogado, muito amigo do ex-ministro, recebeu a informação de que os telefones de Dirceu, de seus advogados e de alguns familiares estariam clandestinamente grampeados. Além disso, o escritório de Dirceu em São Paulo sofreria uma "entrada" – no jargão dos arapongas isso significa uma invasão clandestina disfarçada de roubo. O alerta, segundo o advogado, foi feito por um policial. Dias depois, o escritório do ex-ministro foi invadido. De acordo com o boletim de ocorrência registrado na delegacia, eram ladrões diferenciados, pois não se interessaram em levar uma televisão de plasma, uma cafeteira italiana, celulares e objetos de valor. Furtaram apenas a CPU do computador. Os "ladrões" também não deixaram marcas nas portas nem impressões digitais. A polícia paulista informou que o crime provavelmente foi praticado por uma gangue de catadores de papel.

No fim de junho, José Dirceu avisou o presidente Lula que estava sendo vítima de operações ilegais e que suspeitava da ação conjunta da Polícia Federal e da Abin. Em público, o ministro não faz acusações diretas contra ninguém, mas, para o presidente, ele foi explícito: Dirceu acusa o atual diretor da Abin, Paulo Lacerda, e o ministro da Justiça, Tarso Genro, de estarem por trás de um complô para prejudicá-lo, recorrendo a supostas ações ilegais contra ele, inclusive a invasão do escritório. "Mandei também avisar o presidente que estava sendo escutado ilegalmente", disse o ex-ministro a um interlocutor na semana passada. Dirceu considera Tarso Genro, que é do PT, mas de uma corrente interna diferente da sua, como desafeto político. O ministro da Justiça estaria usando o aparato policial contra Dirceu para tentar minar sua influência no partido. Paranóia? Talvez. O fato é que a ação clandestina dos arapongas, sejam eles da Abin ou ligados à Polícia Federal, está criando entre políticos, magistrados e autoridades em Brasília um clima que não se percebia desde os tempos do velho SNI, o serviço de inteligência criado no regime militar, que serviu, por mais de duas décadas, como instrumento de perseguição de adversários. Havia mais de um ano que o ministro Gilmar Mendes suspeitava que seus telefones estavam sendo grampeados. Parecia paranóia.

O diálogo


Fotos Filipe Araújo/AE, Orlando Brito/Obritonews
GILMAR MENDES
"Gravar clandestinamente os telefones do presidente do STF é coisa de regime totalitário. É deplorável. É ofensivo. É indigno"
DEMÓSTENES TORRES
"Há um grupo de bandoleiros atuando dentro do governo. É um escândalo que coloca em risco a harmonia entre os poderes"

Gilmar Mendes – Oi, Demóstenes, tudo bem? Muito obrigado pelas suas declarações.

Demóstenes Torres – Que é isso, Gilmar. Esse pessoal está maluco. Impeachment? Isso é coisa para bandido, não para presidente do Supremo. Podem até discordar do julgado, mas impeachment...

Gilmar – Querem fazer tudo contra a lei, Demóstenes, só pelo gosto...

Demóstenes – A segunda decisão foi uma afronta à sua, só pra te constranger, mas, felizmente, não tem ninguém aqui que embarcou nessa "porra-louquice". Se houver mesmo esse pedido, não anda um milímetro. Não tem sentido.

Gilmar – Obrigado.

Demóstenes – Gilmar, obrigado pelo retorno, eu te liguei porque tem um caso aqui que vou precisar de você. É o seguinte: eu sou o relator da CPI da Pedofilia aqui no Senado e acabo de ser comunicado pelo pessoal do Ministério da Justiça que um juiz estadual de Roraima mandou uma decisão dele para o programa de proteção de vítimas ameaçadas para que uma pessoa protegida não seja ouvida pela CPI antes do juiz.

Gilmar – Como é que é?

Demóstenes – É isso mesmo! Dois promotores entraram com o pedido e o juiz estadual interferiu na agenda da CPI. Tem cabimento?

Gilmar – É grave.

Demóstenes – É uma vítima menor que foi molestada por um monte de autoridades de lá e parece que até por um deputado federal. É por isso que nós queremos ouvi-la, mas o juiz lá não tem qualquer noção de competência.

Gilmar – O que você quer fazer?

Demóstenes – Eu estou pensando em ligar para o procurador-geral de Justiça e ver se ele mostra para os promotores que eles não podem intervir em CPI federal, que aqui só pode chegar ordem do Supremo. Se eles resolverem lá, tudo bem. Se não, vou pedir ao advogado-geral da Casa para preparar alguma medida judicial para você restabelecer o direito.

Gilmar – Está demais, não é, Demóstenes?

Demóstenes – Burrice também devia ter limites, não é, Gilmar? Isso é caso até de Conselhão.

(risos)

Gilmar – Então está bom.

Demóstenes – Se eu não resolver até amanhã, eu te procuro com uma ação para você analisar. Está bom?

Gilmar – Está bom. Um abraço, e obrigado de novo.

Demóstenes – Um abração, Gilmar. Até logo.

29.8.08

Reserva abriga 26 áreas de garimpo ilegal de diamante

Falta de regulamentação de artigo da Constituição impede exploração em terra indígena

Projeto de lei em fase final de tramitação prevê repasse de ao menos 4% da receita de atividades de mineração a comunidades indígenas

Área marcada pelo embate entre produtores de arroz e índios, a terra indígena Raposa/ Serra do Sol (RR) esconde outras riquezas, que atualmente não podem ser exploradas devido a um impedimento legal -que pode ser extinto em breve, com o apoio do governo.
Segundo mapas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) produzidos em 2005, existem, dentro dos limites da terra, 26 áreas ativas de garimpo de diamante. Todas essas áreas são ilegais -a exploração mineral em terras indígenas não é permitida, por falta de regulamentação do artigo 231 da Constituição, que condiciona a pesquisa mineral em áreas indígenas à autorização do Congresso Nacional.
A Coordenação de Recursos Naturais e Estudos Ambientais do IBGE disse que os dados foram repassados pelo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) e que não foram mais atualizados.
Sem citar números, o chefe do DNPM em Roraima, Eugênio Tavares, disse à Folha que sabe da existência de garimpos, em atividade no local ainda hoje, conduzidos por índios. Tavares afirmou que não pode precisar nem a quantidade de garimpos e envolvidos nem a localização exata das áreas.
Segundo ele, a extração ilegal de que tem conhecimento fica na região do rio Maú, fronteira com a Guiana, na área da Raposa. Tavares afirmou que a Superintendência da Polícia Federal em Boa Vista sobrevoou a região no primeiro semestre deste ano e constatou a presença de índios num garimpo.
As atividades de fiscalização na região viraram "brincadeira de gato e rato", segundo o chefe do DNPM no Estado. Tavares diz que, quando as autoridades se aproximam da região, os índios cruzam a fronteira.
"Quando se sentem prejudicados, os índios ficam pressionando a Funai. Agora, como são eles, não falam nada."
A Funai confirmou, por meio de nota, a existência de garimpos na região, mas não deixou claro se os responsáveis pela extração são índios ou brancos.
O potencial minerário da região -que envolve, além de diamantes, reservas não quantificadas de ouro e outros minérios- está prestes a se abrir para a exploração de empresas, através de licitações. Projeto de lei substitutivo ao apresentado em 1996 pelo senador Romero Jucá (PMDB-RR), atual líder do governo no Senado, está em fase final de tramitação.
Em julho, o projeto, que prevê repasse de ao menos 4% da receita proveniente de atividades de mineração a comunidades indígenas, recebeu parecer favorável do deputado Eduardo Valverde (PT-RO), relator de comissão especial criada em 2005 para tratar do tema.
Como a posição da comissão especial tem caráter conclusivo, o relator diz que pretende encaminhar o projeto de volta ao Senado ainda neste ano.
A intenção dele é aguardar o desfecho do julgamento sobre a terra no Supremo Tribunal Federal, interrompido anteontem após pedido de vista do ministro Carlos Alberto Direito.
O projeto substitutivo foi apresentado pelo governo.
Tavares diz haver cerca de 800 processos de requisição de autorização de pesquisa de minérios em terrenos da região parados, no aguardo de uma eventual mudança na lei.
Folha

28.8.08

Protestos na Bolívia obrigam Morales a usar aeroporto do Brasil!!!

O presidente da Bolívia, Evo Morales, foi forçado na quarta-feira a utilizar um aeroporto em um município de Rondônia para fugir de grupos radicais opositores, em um novo episódio do conflito político boliviano, informaram fontes do governo nesta quinta-feira.

Grupos de choque ligados aos governadores que se opõem a Morales tomaram os aeroportos das cidades amazônicas de Riberalta e Guayaramerín, a cerca de mil quilômetros de La Paz, impedindo o reabastecimento do helicóptero que Morales usava para voltar a La Paz, segundo as fontes.

O presidente boliviano, que viajava à região, vizinha ao Brasil, para assinar um contrato de estudo de um grande projeto hidroelétrico, teve que ir por terra até a cidade de Guajará-Mirim, em Rondônia, onde entrou em um avião militar boliviano quase à meia-noite.

A prefeitura de Guajará-Mirim confirmou o vôo. A cidade fronteiriça, a 347 km de Porto Velho, tem um aeroporto com destacamento da Aeronáutica, pista asfaltada, mas sem torre de controle de vôo.

"Foi a melhor solução ir por terra até Guajará-Mirim, porque ali havia um aeroporto que dava todas as seguranças técnicas, com pista asfaltada e iluminação", disse na quinta-feira à rádio Erbol o ministro de Hidrocarbonetos e Energia, Carlos Villegas, que acompanhava Morales.

Os ativistas da região boliviana chegaram inclusive a apedrejar o helicóptero presidencial, mas Morales não estava a bordo no momento, segundo Villegas.

O incidente impediu que Morales assistisse a uma reunião com municípios rurais, programada para a noite de quarta-feira em La Paz. Na ocasião, o vice-presidente Alvaro García disse apenas que o presidente havia tido "problemas para a coordenação de horários".

Os grupos opositores já impediram Morales de chegar a outras três cidades.

No referendo revogatório de mandatos, feito no dia 10 de agosto, Morales manteve o cargo, com mais de 67 por cento dos votos.

Para viajar pelo território boliviano, o que Morales faz frequentemente, o presidente usa tanto pequenos aviões militares quanto helicópteros concedidos por Hugo Chávez, presidente da Venezuela.
Reuters

27.8.08

Contra a demarcação

Contra a demarcação: Coronel vê risco de surgir "nação étnica" na fronteira

Gélio Fregapani, 72, diz conhecer como poucos o Estado de Roraima, onde pisou pela primeira vez no início dos anos 1960. Coronel reformado do Exército, foi um dos fundadores do Cigs (Centro de Instrução de Guerra na Selva), trabalhou por dez anos na Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Diz que o Exército é "fervorosamente contra" a demarcação contínua da reserva.

Apontado pela PF como um dos responsáveis por municiar os arrozeiros que atacaram índios, disse que, se isso tivesse ocorrido, a PF não estaria mais na região. "Esse pessoal não pode competir comigo."

FOLHA - Por que a Raposa/Serra do Sol deve ser demarcada em ilhas?
GÉLIO FREGAPANI - A demarcação contínua de uma grande área indígena, com diferentes etnias e culturas, provoca a criação de algo parecido com o Curdistão, uma nova nação étnica separada dos países. Se for em ilhas, não tem problema nenhum.

FOLHA - Há pressão internacional para formar uma nova nação?
FREGAPANI - Sim. Essa história de índios nômades é falácia. Claro que existe possibilidade de migrações, mas os índios não são nômades. Não é necessária uma área do tamanho de Portugal para isso tudo. Na fronteira é o perigo.

FOLHA - O sr. defende que os índios não levem em conta sua cultura e se considerem apenas brasileiros?
FREGAPANI - Sim. Se nós [fizermos isso], damos [permissão] à criação de nações dentro do Brasil, estamos contribuindo para desagregar o país. Os EUA desejam isso, a Inglaterra, a Alemanha. Porque querem aquelas jazidas que têm lá e querem lidar com um governo mais dócil, não com o governo brasileiro. Se o Brasil ganhar a Raposa, haverá condições de contestarmos outras [terras].

FOLHA - O governo diz que pode entrar a qualquer tempo nas terras.
FREGAPANI - O governo está dividido. Há uma parcela de traidores no governo. Além do mais, o Exército é fervorosamente contra essa reserva, a ponto de poder haver motins se a demarcação for contínua.

FOLHA - Quem são os traidores?
FREGAPANI - Não vou citar. Há um esforço para dividir o Brasil. Chega um momento em que nem o Exército consegue entrar. Nenhuma fronteira é sagrada. Só ficam razoavelmente definidas quando habitadas. Fala-se da floresta, mas é para desviar o assunto. Querem é a serra que separa o Brasil da Venezuela e das Guianas, por causa do potencial mineral.

FOLHA - Os índios não têm direito?
FREGAPANI - Eles têm toda a terra de que precisam. Aquilo é grande. É terra demais e os índios não estão ligados a isso. Isso é coisa de estrangeiro.

FOLHA - A PF o acusa de ajudar os arrozeiros com táticas de guerrilha.
FREGAPANI - Se tivesse ensinado táticas de guerrilha não tinha um policial federal lá. E quem afirmou isso estaria morto. Esse pessoal não pode competir comigo. Agora, quando a região se declarar independente, aí sim vou fazer guerrilhas.

26.8.08

Ibama, Incra e Funai são "tridente do diabo", diz líder dos arrozeiros

Carolina Juliano- Enviada especial do UOL

Em Pacaraima (Roraima)

"A nossa vida estará sendo julgada amanhã, em Brasília", diz Paulo César Quartiero à reportagem do UOL minutos antes de embarcar para a capital do país a fim de acompanhar de perto o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que pode decidir pela demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e pela conseqüente retirada dos não-indígenas daqueles terras.

  • Arte UOL

    Infográfico: entenda o conflito na Raposa/Serra do Sol e saiba quem são os envolvidos

"Quartiero é prefeito e candidato à reeleição em Pacaraima, cidade a 250 km da capital de Roraima, Boa Vista. Dono de duas das maiores fazendas de produção de arroz do Estado, o prefeito e empresário tem liderado a resistência à demarcação contínua. "O Supremo tem nas mãos uma decisão que não afeta só a mim, afeta toda uma cidade. O município de Pacaraima desaparece porque fará parte da área demarcada", diz ele.

Das 33 ações que serão julgadas amanhã pelo STF, "muitas" são da parte de Quartiero. Sem especificar quantas são, o empresário diz que são todas procedentes e que tem confiança na Justiça. "O laudo que determinou a demarcação da Raposa é uma fraude e eu confio no patriotismo dos nossos representantes em Brasília pra que o Brasil não seja entregue nas mãos de ONGs estrageiras."

O fazendeiro defende que os índios organizados no Conselho Indígena de Roraima (CIR) estão "a serviço" e são "instrumentos" de organizações não-governamentais estrangeiras que querem facilitar o acesso ao país pela fronteira com a Venezuela e com a Guiana. Segundo ele, a demarcação de toda aquela área como Terra Indígena dificulta a fiscalização do Exército Brasileiro.

"Eu não tenho problema nenhum com os índios. Eles são meus eleitores, me elegeram prefeito e trabalham para mim", diz Quartiero. "Os que conflitam comigo são uns poucos representados pela CIR."

"Conseqüências imprevisíveis"
Paulo César Quartiero diz que vai acatar e cumprir a decisão do STF, mas alerta que as conseqüências de uma possível decisão pela demarcação contínua serão "imprevisíveis". "Para começar, isso acaba com toda a esperança de um povo", diz ele. "O nosso Estado já é pobre e tem o pior índice de segurança alimentar do Brasil. A produção de arroz está diretamente relacionada com o desenvolvimento de Roraima."

  • Marcello Casal Jr/ABr

    Paulo César Quartiero, prefeito de Pacaraima, diz que município desaparecerá com área demarcada

O empresário lembra que está na região do Rio Surumu (que hoje faz parte da área de reserva) há mais de 20 anos. "Mas eu comprei isso de outro fazendeiro que desenvolvia ali a pecuária. E a fazenda data de muito antes disso, é de 1922", sustenta. "Só ali, a minha empresa de agro-pecuária emprega 200 pessoas. E nunca houve índio naquele lugar. Eles apareceram agora, como instrumentos dessas ONGs."

"As hastes do tridente do diabo"
Quem está "criando problema" na região, de acordo com Quartiero, é o governo federal, por meio principalmente do Ministério da justiça. "O senhor Tarso Genro mandou a sua polícia aqui para nos expulsar e criou essa confusão toda. Quem está criando problema em Roraima é essa haste do tridente do diabo, formado por Ibama, Incra e Funai", diz ele.

  • Arte/UOL
Setores do governo teriam sido "cooptados", segundo Quartiero, por instituições que defendem interesses internacionais. "Além desse tridente, há gente má intencionada dentro do Ministério Público Federal e principalmente do Ministério da Justiça".

Até por isso que o empresário não esconde de ninguém que desaprova a permanência da Polícia Federal e de guardas da Força Nacional na região de Pacaraima. E ele manifestou isso com uma faixa afixada bem diante dos agentes federais que fazem plantão na entrada da reserva, no Distrito de Surumu. "Não à Polícia Federal. Sim ao Exército Brasileiro".

Paulo César Quartiero viajou para Brasília nesta terça-feira e deve voltar ao Estado de Roraima somente na sexta-feira, "depois que pensarmos como contornar as possíveis conseqüências do julgamento do STF", diz. "Na sexta-feira eu terei motivos para comemorar ou uma grande dor de cabeça."


SANGRIA NA SAÚDE

Renato Weil/EM/D.A Press

O dinheiro que deveria melhorar as condições de saúde dos brasileiros, literalmente, escorre pelo ralo. De banheiros. Na segunda reportagem da série, o Estado de Minas mostra que, de acordo com dados oficiais da Controladoria-Geral da União, há irregularidades na aplicação de R$ 74,8 milhões na construção dos módulos sanitários, que vão de fraudes em licitações a pagamentos para obras inacabadas. É o caso, por exemplo, do banheiro em Acopiara, que custou R$ 2.088 e não passa de um esqueleto de tijolos (foto) .
SEGUNDA, 25/08/2008
Desvio de R$ 74,8 milhões em obras de banheiros


Projetos abandonados e compras pela metade lideram ranking de problemas com verbas
Alana Rizzo, Thiago herdy e Paulo Rebêlo
Raimundo Santana/Esp. EM/D.A Press
O lavrador Diolindo da Silva, de Jordânia (Norte de Minas), improvisou sanitário atrás das bananeiras e usa panos como porta

A pompa dada pelo poder público para definir um dos itens mais básicos de saúde, o banheiro, não se mantém na hora de controlar e fiscalizar os milionários repasses para os “módulos sanitários domiciliares”. Na segunda reportagem da série sobre a sangria com o dinheiro da saúde, o Estado de Minas mostra que dos R$ 1,6 bilhão destinados à área, fiscalizados pela Controladoria-Geral da União (CGU), pelo menos R$ 74,8 milhões sumiram em banheiros por todo o Brasil. Foram identificadas obras inacabadas, inutilizadas, problemas nas licitações e despesas com os convênios sem qualquer tipo de comprovação.

A CGU encontrou também banheiros construídos em bares, igrejas, estabelecimentos comerciais e em casas de pessoas de classe média ou que já tinham um banheiro funcionando. O preço de cada módulo varia entre R$ 800 e R$ 2,5 mil.
SEGUNDA, 25/08/2008
Atrás da moita

Daniel Antunes
O município de Jordânia, no Vale do Jequitinhonha, recebeu, só para construção de banheiros domiciliares, R$ 351,5 mil para famílias de baixa renda, segundo relatório da Controladoria-Geral da União (CGU). Mas o desempregado Eudimar dos Santos, de 42 anos, por exemplo, que mora em casa de pau-a-pique na periferia da cidade, usa o quintal como banheiro. “Prometeram construir um sanitário para atender as necessidades da minha família, mas ninguém nunca veio aqui depois da promessa”, desabafa. Ele não tem condições de construí-lo com recursos próprios e atualmente mora sozinho, em situação precária, desde que a mulher o abandonou.

Recursos para construção de banheiros domiciliares não foram usados, segundo a CGU. Em Estrela, na zona rural de Jordânia, famílias carentes afirmam que viveram uma ilusão, quando foi anunciado que receberiam, por meio da verba do governo federal, espaços para sanitários.

O lavrador Diolindo da Silva Gusmão, de 50 anos, mora com seis filhos numa casa simples de dois quartos. Segundo ele, a construção de um banheiro era certa, mas a promessa nunca saiu do papel. Para fazer as necessidades fisiológicas, os filhos precisam ir até o quintal. E como forma de garantir a privacidade da família, Diolindo plantou milho e mandioca na horta. “Assim as pessoas que passarem na rua, não vão nos ver”, disse, revoltado com a situação. Para a filha de 16 anos, o cuidado teve de ser maior. Ele improvisou um ‘banheiro’ entre quatro pés de banana. “Cerquei as bananeiras com pedaços de pano para ninguém vê-la”, afirmou.

As adaptações na casa do lavrador não param por aí. O chuveiro da casa é uma torneira, que também fica no quintal. De tanto esperar, há dois meses o lavrador deu início à construção de um banheiro. Mas como o salário que recebe retirando leite nas fazendas da região é pouco, cerca de R$ 480 por mês, as obras estão paralisadas. Falta dinheiro para comprar cimento para o reboco e o material elétrico. “Preciso tirar da boca dos meus filhos para fazer uma obra que o governo tinha mandado verba”, lamentou Diolindo, revelando que outras famílias do distrito vivem a mesma situação.

SUSPENSAS Muitas famílias também sofrem com a falta de banheiros em casa no distrito de Ribeira do Capim Açu, também na zona rural de Jordânia. Algumas obras chegaram a ser iniciadas, mas os recursos foram suspensos pela prefeitura. O braçal José de Souza da Silva, de 55 anos, diz que precisou fazer seu próprio banheiro. Há cerca de seis anos, funcionários da prefeitura estiveram em sua casa escolhendo o local onde seria realizada a obra com a verba pública, mas nunca mais voltaram. “Chegou até a levantar as paredes, mas as obras foram paralisadas, sem explicações. Tenho de usar o quintal para as necessidades”, disse.
SEGUNDA, 25/08/2008
Dura realidade no interior

Renato Weil/EM/D.A Press
Izeumar Teixeira, de Acopiara (CE), terminou projeto com dinheiro próprio
Fortaleza – A marca está nas paredes. Cada família da Vila Esperança, em Acopiara, no sertão cearense, que deveria receber um banheiro tem indicado, do lado de fora de casa, a sigla BN e um número. Quando a obra é completada, a marca é apagada. Percorrendo as ruas do bairro, a sensação que se tem, então, é a de que nada foi feito. A reportagem encontrou banheiros inacabados e até mesmo os que nem começaram a ser construídos. O dinheiro chegou à prefeitura, que o repassou à construtora. Mas as melhorias não foram feitas. Na cidade, todo mundo tem ou conhece alguém com um banheiro inacabado ou prometido. Foram mais de R$ 750 mil para a construção de banheiros. Só o convênio 1527/2005, analisado pela CGU, prevê despesas de R$ 319.590 para a construção de 153 banheiros na vila. Cada um custaria R$ 2.088.

Na casa de Joana Dark da Silva, o esqueleto do banheiro virou casinha para a neta Maiara Pereira Santos, de 4 anos, brincar. Sem utilidade alguma, o espaço é bom, segundo Maiara, porque fica só para ela. Os potinhos vazios, organizados um ao lado do outro, fazem parte da brincadeira. “O que incomoda mesmo são os buracos. Vieram aqui no ano passado e deixaram essa fossa aberta”, reclama a avó.

O banheiro de Izeumar Teixeira, de 25, funciona. Só que foi ela e o marido que colocaram a pia, a porta e a caixa de descarga. “Tivemos que gastar do nosso dinheiro. Porque eles entregaram só a casinha e a fossa”. A Funasa aprovou projeto e liberou a verba para a construção completa do banheiro, incluindo até mesmo saboneteiras e suporte para o papel higiênico. Na casa dela, a empresa também usou um recurso comum em diversos convênios analisados pela CGU. O material comprado é para construir as quatro paredes do banheiro, mas a empresa aproveita uma das paredes da casa.

AGRESTE A 31 km do Centro de Iati, no Agreste Pernambucano, a 286 km da capital Recife, em pista de barro, encontra-se o povoado de Santa Rosa. Chegar à comunidade, porém, não é uma tarefa fácil. Não somente pela estrada precária, mas sobretudo por causa de uma ponte cuja construção parou na metade: há pelo menos 10 anos.

Na pequena Rua da Palha, a moradora Josileide de Miranda Bastos, de 25, aponta a tampa do bueiro em frente a sua casa e faz questão de abrir. “O mau cheiro é insuportável, tivemos de colocar um saco plástico na saída do cano para conter o fedor”, explica. A tubulação por baixo da terra em Santa Rosa até existe, mas não funciona. As verbas foram liberadas pelo Ministério da Saúde há bastante tempo, mas as obras apenas tiveram início, nunca fim.

Geraldo Cavalcante, de 33, uma espécie de líder comunitário do povoado, apressa-se em garantir que tudo estará pronto ainda este ano. Curiosamente, a família dele foi uma das 35 que ganharam um banheiro de verdade, a partir de recursos de um programa do Ministério da Saúde. O sanitário é novinho em folha e foi construído há apenas três meses, mas não pode ser utilizado, pois a rede de esgoto nunca foi concluída. São apenas 30 banheiros erguidos, com bastante atraso desde a liberação de recursos, sem uso. A rua e buracos cavados na terra são as únicas saídas, como de costume na região.

SEGUNDA, 25/08/2008
Contas que não fecham


Projetos abandonados e compras pela metade lideram ranking de problemas com verbas
Alana Rizzo e Thiago Herdy
Renato Weil/EM/D.A Press
Posto de saúde em Acopiara (CE) foi construído em área do departamento de estradas e embargado há um ano

A esperança de melhorias nas condições de saúde de milhões de brasileiros se desfez nas mãos de prefeitos que receberam recursos federais para obras e compra de equipamentos, iniciaram os projetos, mas não os levaram até o fim. Objetos de convênios inacabados representam a maior fatia dos R$ 426,4 milhões da saúde que desapareceram no submundo da política e da má gestão nos últimos cinco anos, segundo os 1.341 relatórios da Controladoria-Geral da União (CGU) analisados pelo Estado de Minas. Foram R$ 74,8 milhões, quase 20% do total.

Os documentos de fiscalização produzidos pelos auditores são ilustrados com centenas de imagens que dão a dimensão exata do dano ao Estado e citam exemplos de diversas naturezas. São José do Divino, na Região do Rio Doce, em Minas Gerais, recebeu R$ 209 mil para furar seis poços artesianos, mas concluiu apenas dois. Em Abadiânia, em Goiás, os recursos eram para a construção de um aterro sanitário, mas a obra ficou incompleta e o lixão ainda é usado na cidade. Esqueletos de concreto e tubos sem função foi o que encontraram os técnicos da CGU ao visitarem as obras do sistema de esgoto de Alegre, no Espírito Santo. As obras do posto de saúde da rodoviária de Acopiara, no sertão do Ceará, estão paradas há um ano.

O segundo lugar no ranking de irregularidades no uso da verba federal da saúde ficou com as despesas realizadas em desacordo com as determinações de portarias do Ministério da Saúde ou usadas para cobrir buracos da administração municipal. Foram R$ 70,1 milhões gastos em ações com objetivos diferentes do combinado – desde cobertura de folhas de pagamento de servidores de secretarias diversas, aluguel, tarifas bancárias e contas de consumo a despesas inimagináveis, como eletroeletrônicos, acessórios femininos, cosméticos, salgadinhos e enfeites natalinos.

RADIOGRAFIA DA CORRUPÇÃO

Gastos sem comprovação representaram 14,3% do total de recurso usado irregularmente. As prefeituras não conseguiram comprovar aos técnicos da CGU como usaram R$ 60,8 milhões transferidos aos cofres municipais. Problemas de toda ordem relacionados a processos de licitação foram responsáveis por um prejuízo de R$ 52,9 milhões, ou 12,4% do total. São relatados casos como o de Itaberaba, na Bahia, em que a empresa do irmão do prefeito apresentou uma proposta maior que a do concorrente e mesmo assim ganhou o certame. Ou então Érico Cardoso, também na Bahia, onde todas as obras fiscalizadas pela CGU foram licitadas e vencidas por empresas ligadas ao prefeito e executadas por operários da administração municipal. A repetição dos mesmos erros de português em propostas de concorrentes foi um dos elementos que ajudaram os auditores a descobrir que o processo de licitação fora forjado em Acaraú, no Ceará.

Pelo menos R$ 51,7 milhões do Ministério da Saúde foram desperdiçados em obras e equipamentos que não trouxeram melhorias para a população, porque desapareceram, porque não são usados, ou porque foram comprados em volumes maiores que o previsto. Nos relatórios são citados milhares de equipamentos que permanecem nas embalagens originais em unidades de saúde e depósitos, seja por falta de profissional preparado para manuseá-los, ou seja má vontade política. Em Ji-Paraná, em Rondônia, R$ 382,5 mil foram gastos para comprar berço aquecido, incubadora, equipamento de ultra-som e uma unidade móvel de urgência, mas nada é usado pela população.

MALANDRAGEM

Obrigados a pagar e comprovar o pagamento de contrapartida em convênios realizados com o Ministério da Saúde, os prefeitos mais engenhosos não pensam duas vezes quando há indisponibilidade de caixa: usam recursos de outros programas para simular o pagamento da contrapartida. A esperteza foi detectada pelos auditores da CGU em Rio Preto, na Região da Zona da Mata, e Iapu, na Região do Rio Doce, ambos em Minas Gerais, onde os prefeitos usaram verba do Piso de Atenção Básica (PAB) para efetivar a contrapartida do Programa de Assistência Farmacêutica. Valores das malandragens: R$ 3,9 mil e R$ 1,1 mil, respectivamente.
SEGUNDA, 25/08/2008
Lixo e entulho em vez de aterro

Lilian Tahan
Daniel Ferreira/CB/D.A Press
Local onde deveria funcionar centro de tratamento de rejeitos em Abadiânia (GO): moradores se revezam em lixão a céu aberto para recolher alimentos

Abadiânia (GO) – Todos os dias, um caminhão da Prefeitura de Abadiânia, município goiano do Entorno do Distrito Federal, despeja duas caçambas do lixo produzido na cidade de 12,1 mil habitantes numa vala afastada 1,5 quilômetro do Centro. Um carregamento chega às 9h e outro às 16h. As sobras são disputadas por moscas e catadores, que vivem da venda a quilo de restos de plástico, cobre e alumínio. A rotina só é quebrada quando os dejetos atingem muita altura. Aí, um trator vai até o local e empurra a montanha de sujeira para os lados.

A precariedade com o tratamento do lixo persiste, apesar de, em 2004 o município ter conseguido recursos federais para a construção de um aterro sanitário. Por meio do Convênio 296 de 2003, assinado com a Fundação Nacional de Saúde, Abadiânia recebeu R$ 206,7 mil. Com o dinheiro em caixa, a prefeitura do lugar abriu licitação e contratou a empresa AM Engenharia, de Goiânia, para realizar a obra que daria destinação adequada aos detritos da cidade. Quatro anos depois do procedimento, a firma alega ter concluído 81% do projeto e a prefeitura diz que desembolsou mais da metade do dinheiro para o aterro. Mas relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) atesta que a construção ficou inacabada e que há itens previstos no contrato, como o dreno para o chorume – permite o tratamento e escoamento de resíduos líquidos –, não cumpridos.

O parecer é condizente com o que se vê no local: quatro buracos cavados para abrigar o lixo depositado a céu aberto. E só. A conclusão de auditores da CGU sobre o aterro de Abadiânia é reforçada por investigação do Ministério Público. A promotoria de Justiça da cidade move dois processos contra os responsáveis pela conduta na construção do aterro sanitário. Em um deles, o MP ajuizou ação de improbidade administrativa contra a ex-prefeita do município, Francisca de Oliveira Leda Almada. O contrato para a execução do aterro sanitário foi assinado durante a atuação da ex-gestora. Mas não é só ela que responde pelo tema na Justiça. Outro processo, esse movido contra a atual administração, tramita no fórum da cidade. A prefeitura é responsabilizada em uma ação civil pública por danos causados ao meio ambiente. Nesse caso, a promotoria pediu a concessão de medida liminar para obrigar o Poder Executivo local a terminar o aterro sanitário.

MULTA A Justiça atendeu o pedido do MP e determinou em 24 de setembro do ano passado a retomada da construção do aterro sanitário, sob pena de multa diária de R$ 800. A decisão da juíza de direito Rosângela Rodrigues Santos levou em conta, entre outros documentos, um laudo técnico realizado pela Agência de Meio Ambiente de Goiânia em maio de 2007. Segundo o relatório a que a reportagem teve acesso, após a vistoria ficou constatado “o lançamento de resíduos fora das trincheiras, a presença de animais, de catadores, o espalhamento de resíduos leves como papel e plásticos e de lixo sem a devida impermeabilização, além do lançamento do chorume em lagoa de contenção sem as medidas de proteção do solo.”

De camionete, com um índio, percorrendo a Raposa/Serra do Sol: sinais de provocação e conflito

Carolina Juliano - Enviada especial do UOL - No Distrito de Surumu (Roraima)
Tive sorte ao pegar no telefone em Boa Vista, capital de Roraima, e tentar contatar Dionito José de Souza, o líder indígena que está mais por dentro da situação da homologação da Raposa/Serra do Sol. "Dionito, estou pensando em ir para Pacaraima para acompanhar mais de perto as coisas uma vez que lá é mais próximo da entrada da reserva, vocês têm alguém lá que eu possa fazer contato?", perguntei. "Estou indo agora para aquela região, vou para a reserva." Depois de uma pequena insistência da minha parte, ele concordou em me levar de carona. Só pediu que eu contribuísse com alguma quantia para pagar o combustível porque para me deixar depois em Pacaraima teriam que desviar o caminho e percorrer mais 60 quilômetros. Aceitei sem pensar.

  • Arte UOL

    Infográfico: entenda o conflito na Raposa/Serra do Sol e saiba quem são os envolvidos

A Mitsubishi cabine dupla que nos levaria é do cunhado de Dionito. A caminhonete do Conselho Indígena de Roraima (CIR) estava quebrada, sendo arrumada em um mecânico. A minha mala foi colocada na caçamba, junto com sacos de mantimentos que seriam levados para a sede do CIR em Surumu. E foi tudo empacotado com um plástico preto para proteger da chuva que cai insistentemente na região nesse final de inverno.

A caçamba levava ainda um galão grande com óleo diesel. Não há postos de abastecimento para aqueles lados e para percorrer grandes distâncias é preciso levar na mala combustível extra.

Partimos pela BR-174. A Mitsubishi levava ainda, além de Dionito e do motorista, o biólogo André, paranaense de Curitiba, que há quatro anos trabalha em um projeto de educação ambiental da prefeitura de Boa Vista; e o índio macuxi Sobral, que também é de uma comunidade que está dentro da reserva Raposa/Serra do Sol, mas há oito anos trabalha com educação indígena junto ao governo.

Além de saber como as coisas andam em Surumu, principal porta de entrada para a reserva Raposa/Serra do Sol, o que os levava lá hoje era uma reunião na escola de formação profissional que lá existe. Dionito está tranqüilo quanto ao julgamento da próxima quarta-feira, em Brasília.

  • Arte/UOL
Tento puxar conversa sobre o assunto, saber o que será feito no dia e ele limita-se a dizer: "Nada, vamos aguardar. Quem vai julgar é o STF, a nós só nos resta esperar". Mas depois ele admite que tem gente do CIR em Brasília, acompanhando tudo de perto.

A BR-174 vem de Manaus e chega até e Venezuela, na fronteira de Pacaraima. É bem asfaltada e corta um cerrado vazio, paisagem que só se modifica quando alguma ação do homem interfere. "Essa área toda de árvores é de um suíço", conta o biólogo. "Ele veio para cá plantar acácias para fazer papel. Mas o solo aqui não é bom para isso porque só tem água em grande profundidade. As acácias não crescem."

Segundo ele, o investimento para se irrigar uma plantação dessas não vale a pena e o suíço agora pretende vender as terras, com as acácias todas dentro, para outro grupo europeu que também não deve fazer nada com aquilo. "Isso só pode ser lavagem de dinheiro", comenta.

Depois de meia hora de viagem, uma parada para "merendar qualquer coisa", anuncia Dionito. Dali a Surumu ainda haveria mais uma hora de viagem. Em um quiosque na beira da estrada, eles comem coxinha com guaraná antártica e eu tento sinal no celular. "Esquece", diz líder indígena. "Aqui não tem sinal de nada. Mais para frente pegamos sinal da Vivo, mas é só."

Após 170 km percorridos na BR-174, pegamos uma vicinal à esquerda. A placa indica 30km para o Distrito de Surumu. Ali acabou o asfalto. Aliás, segundo meus companheiros de viagem, além da 174 há apenas mais uma rodovia estadual que é asfaltada, as demais são todas de terra.

  • Carolina Juliano/UOL

    O líder indígena Dionito de Souza

Quase só caminhonetes são vistas transitando na região. Vez ou outra se avista um carro pequeno de algum taxista acostumado a percorrer a região para levar pesquisadores e até mesmo jornalistas à entrada da Raposa/Serra do Sol. No geral, o chão de terra é bom, mas em alguns trechos é difícil imaginar como qualquer carro que não seja 4x4 atravessa.

Além das picapes das lideranças indígenas, do Ibama e dos policiais da Força Nacional, que estão na região desde os conflitos de abril deste ano, pela mesma estrada passam também com freqüência Paulo César Quartiero, o prefeito de Pacaraima e líder dos arrozeiros, e seus funcionários. A estrada dá acesso a uma de suas fazendas de produção de arroz.

"Essa é a ponte que foi queimada pelos arrozeiros", mostra Dionito. "Imagine o transtorno que nos causou. Nessa época de cheia, não temos desvio para chegar a Surumu. Ficamos isolados, sem mantimentos e sem remédios." A ponte de madeira já está de pé de novo. Foi reconstruída pelo governo do Estado de Roraima.

Cerca de 20 minutos depois de sacolejar pela vicinal de terra avistamos uma enorme bandeira do Brasil sobre outra ponte e os primeiros sinais de zona habitada. No meio de vários quiosques de sapé, uma casa branca destoa. "Prefeitura de Pacaraima", lê-se na placa. "Pátria ou Morte. Venceremos" e "Não à Polícia Federal. Sim ao Exército Brasileiro", dizem duas faixas colocadas nas grades desta casa.

Estamos em Surumu. "Tudo provocação do Paulo César", diz Dionito. "Ele como prefeito de Pacaraima construiu essa casa e mantém aí funcionários. Mas aqui já é terra indígena."

Logo na chegada, três pick-ups e meia dúzia de homens da polícia federal e da Força Nacional dividem uma sombra com dois ou três fiscais do Ibama. "Está vendo? Olha a confusão que estamos vivendo. É Ibama, polícia federal, força nacional, mídia, tudo atrapalhando o nosso dia-a-dia", desabafa Dionito. "E isso por quê? Porque não cumpriram a lei, que o próprio presidente da República decretou."

A Mitsubishi pára entre uma pequena igreja e uma maloca onde índias cortam carne de caça e logo desembarcam os mantimentos que foram trazidos por nós. Tudo é armazenado em um pequeno depósito, onde está também a farinha, o feijão e o beiju que eles mesmo produzem, além das bananas que plantam.

Ao descer, Dionito é recebido pelo seu povo com beijos e abraços. Logo lhe jogam nos braços a pequena Mônica, sua filha de menos de um ano de idade, que vive em Surumu. "Vamos merendar qualquer coisa e depois seguir para a escola de formação. Mas você pode ficar por aqui, se quiser, e conversar com o povo."

Eu aproveito, então, para conversar com aquela gente. Há ali índios de diversas comunidades, mobilizados pelo CIR à espera do julgamento desta quarta-feira. O macuxi Martinho ("não dou sobrenome porque não estou dando entrevista", avisa logo), me faz as honras da casa, mostra-me as instalações e dá conta das informações. Diz ele que há cerca de 400 índios vivendo em Surumu atualmente.

Eles não gostam muito de jornalistas. Dizem que nunca reportamos o que eles realmente dizem e que, geralmente, nos posicionamos contra os índios. Mas mesmo assim são amáveis e fazem questão de deixar claro que não querem nada, além do que é deles por direito.

Nossa conversa é interrompida por um fiscal do Ibama, que quer saber se eu tenho licença para estar ali, na reserva indígena. "Ué, arrozeiro não precisa de licença para entrar e jornalista precisa?", questiono. Willen recua e diz que não está me impedindo de trabalhar, mas que o Ibama vai emitir licenças para os próximos dias para saber quem estará na região por "questões de segurança".

Quase duas horas depois, Dionito volta e me chama para "ver uma coisa que ainda ninguém viu". Subo de novo na Mitsubishi e seguimos reserva a dentro por cerca de 7 km. Na margem esquerda da estrada, um grupo de 15 ou 20 indígenas ocupa a recém-criada Maloca dos Dez irmãos. "Ocupamos essa área no dia 5 de maio, depois que os homens do Paulo César balearam dez dos nossos irmãos", conta ele. Ali Dionito encontra a sua mulher, que permanecerá no local supervisionando o movimento até passar o julgamento.

"Agora já podemos ir embora", diz Dionito. Voltamos pela mesma estrada de terra até a BR-174. Onde a Mitsubishi deveria pegar a esquerda para voltar a Boa Vista, ela torna para o sentido contrário só para me levar a Pacaraima. "Eu prometi que e deixava lá, vamos em frente."

Dali a Pacaraima são mais 60 km e a estrada já não é tão boa. O asfalto esburacado obriga a reduzir a velocidade. Vinte minutos depois a paisagem muda. Estamos diante de uma serra e antes de começarmos a subi-la, Dionito pede para parar, o motorista retira da caçamba o galão de combustível.e guarda-o na casa de um conhecido à beira da estrada.

Logo adiante passaríamos pela fiscalização aduaneira brasileira. "Eles nos tomam o galão porque há muito problema de contrabando de combustível da Venezuela para cá", explica o líder indígena. "Deixamos aqui e pegamos na volta."

Mais 10 minutos e estamos em Pacaraima, que nada mais é do que um amontoado de pequenas casas em um povoado que cresceu na fronteira. A Mitsubishi pára diante da rodoviária, no Hotel Pacaraima. Cerca de 10 homens da Força Nacional dividem um banco em frente ao hotel "É contra minha vontade que você fica aqui", diz Dionito. "Em Pacaraima não há condições para você trabalhar e eu nem sabia que havia esse hotel."

Atencioso, o coordenador do Conselho Indígena de Roraima me fornece os seus telefones e me diz para ligar se tiver qualquer problema. Dou a ele R$ 50, a minha colaboração para o combustível, que havia prometido. Ele aceita meio sem jeito, dá meia volta e entra na pick-up. "Qualquer problema me procure, não se esqueça". Palavra de índio.

Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas

Rubens Barbosa

A demarcação de reservas indígenas em Roraima faz voltar ao debate público a controvertida decisão do atual governo de ratificar a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. O referido documento, negociado nas Nações Unidas em 1993, levou quase 15 anos para ser aprovado, com 4 votos contra e 11 abstenções. Canadá, EUA, Austrália e Nova Zelândia, com populações indígenas significativas, votaram contra. O Brasil, nas mesmas condições, votou a favor (Celso Amorim, como ministro das Relações Exteriores, assinou a Declaração em 1993 e a ratificou em setembro de 2007).

O governo australiano, para justificar seu voto negativo, afirmou enfaticamente que a Declaração outorga direitos às populações indígenas que conflitam com o restante da população e com o marco constitucional dos países democráticos. A Austrália expressou sua oposição, em especial, pelo emprego do termo autodeterminação, por poder pôr em perigo a integridade territorial do país.

A demarcação das terras indígenas, de forma contígua, no norte de Roraima, em região fronteira à Venezuela, suscita, entre outras, duas questões que têm relação direta com a referida Declaração: a questão de soberania na faixa de fronteira e a possibilidade de criação de uma nação indígena (ianomâmi) nos dois lados da fronteira.

Levando em conta o disposto no artigo 22 da Constituição federal de 1988, segundo o qual compete privativamente à União legislar sobre os povos indígenas, a primeira dúvida que surge é quanto à compatibilidade da Declaração com os preceitos constitucionais vigentes.

Embora registre expressamente que nenhum de seus dispositivos autoriza ou fomenta qualquer ação visando a violar ou reduzir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes (artigo 46), a Declaração trata os povos indígenas como entidades políticas independentes dos Estados.

Com a prerrogativa de autodeterminação, os povos indígenas podem decidir livremente a sua condição política, com direito à autonomia e ao autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, assim como em relação aos meios para financiar suas funções autônomas (artigos 3 e 4). Toda pessoa indígena tem direito a uma nacionalidade (artigo 6), que se presume possa ser diferente da brasileira.

Não se desenvolverão atividades militares nas terras ou nos territórios dos povos indígenas, a menos que uma razão de interesse público pertinente as justifique, ou que os povos indígenas interessados as aceitem ou solicitem livremente. Os Estados terão de consultar os povos indígenas interessados antes da utilização de suas terras ou de seus territórios para atividades militares (artigo 30).

Segundo a Declaração, os povos indígenas têm o direito de desenvolver contatos, relações e cooperação, inclusive políticos, com outros povos indígenas além-fronteiras (artigo 36, 1) e de manter e desenvolver atividades de caráter político, espiritual, cultural, econômico e social, com seus próprios membros, assim como outros povos através das fronteiras. Os Estados, em consulta e cooperação com os povos indígenas, terão de adotar medidas eficazes para facilitar o exercício e garantir a aplicação desse direito (artigo 36, 2).

O território da reserva indígena em Roraima, demarcada pelo governo federal, é contíguo a outra, em território venezuelano. As duas, somadas e fundidas em uma só, sem solução de continuidade, poderiam formar um enclave entre os dois países, com foros de Estado independente, que poderia dispor de instituições políticas (artigo 5), ter seus próprios meios de informação nos respectivos idiomas e acessar todos os demais meios de informação não-indígenas sem discriminação alguma (artigo 16).

A Constituição brasileira corretamente reconhece aos índios a sua organização social, seus costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (artigo 231). As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente e as utilizadas para suas atividades produtivas, são definidas como imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar, bem como as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Essas terras se destinam à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Os direitos assegurados pela Constituição não estão, portanto, em discussão.

Fala-se muito da internacionalização da Amazônia. O relator da ONU para Direitos Indígenas acaba de visitar Roraima. A Declaração pode ser vista como um prenúncio indireto dessa internacionalização, ao estabelecer, com o apoio da comunidade internacional - inclusive do governo brasileiro -, que os direitos dos povos indígenas são objeto de preocupação e responsabilidade internacionais.

Os temas do controle territorial e da perspectiva de criação de uma nação indígena independente dentro do Estado brasileiro adquirem, assim, um caráter grave que tem de ser examinado sob a ótica da segurança nacional. O Congresso, que aprovou a Constituição de 88 e ratificou a Declaração da ONU, e o Supremo Tribunal Federal, que está julgando a questão da demarcação das terras no norte de Roraima, deveriam reexaminar com cuidado essa questão.

Do ponto de vista do interesse nacional, a defesa da integridade territorial e da nacionalidade aconselha uma atitude firme do governo. A delimitação de áreas indígenas talvez devesse avançar apenas até a faixa de fronteira. Com isso se atenderia às duas preocupações, quanto à integridade territorial e a da nacionalidade.

Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp

Projeto prevê o confisco de terras griladas

Mangabeira defende retomada pela União de área da Amazônia equivalente à região Sudeste do Brasil

Projeto para apressar a regularização de terras na Amazônia, em estudo no Planalto, prevê o "confisco" de terras públicas com mais de 2.500 hectares (ou 25 km2) ocupadas por grileiros ou posseiros, adiantou à Folha o ministro Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos). Estima-se que uma área equivalente aos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos possa ser retomada pela União.
Mangabeira apresentou seus planos na quinta-feira passada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A proposta inclui a criação de uma autarquia vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos para cuidar exclusivamente da regularização fundiária, com "ampla liberdade" para contratar técnicos em caráter temporário, que se somariam a funcionários do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para trabalhar em coordenação com órgãos estaduais.
Lula deu à ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) a tarefa de coordenar os trabalhos com o grupo de quatro ministros: Guilherme Cassel (Desenvolvimento Agrário), Carlos Minc (Meio Ambiente), Reinhold Stephanes (Agricultura) e o próprio Unger, coordenador do PAS (Plano Amazônia Sustentável). O prazo para a conclusão dos estudos é de dois meses.
"A Amazônia é um quarto escuro, ninguém sabe quem tem o quê lá", diz Mangabeira, que estabeleceu a regularização como prioridade para a Amazônia. "Acelerar a regularização fundiária significa acabar com o reino da grilagem e da desordem, uma confusão vasta, numa escala planetária. Estamos lidando com áreas maiores que vários países europeus."
Excluindo uma fatia de só 4% dos 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia, correspondente a propriedades privadas cujos cadastros foram validados pelo Incra, o restante da Amazônia viveria estado de insegurança jurídica, segundo ele. Nem as unidades de conservação e as terras indígenas -quase metade da região- escapam da ação de grileiros (que forjam documentos) e posseiros (que ocupam a terra pública sem documentos). "Em princípio, quase tudo é irregular."
Atualmente, a legislação já prevê a venda de terras públicas entre 100 hectares (1 km2) e 1.500 hectares (ou 15 módulos rurais). Esses terrenos podem ser vendidos aos ocupantes com dispensa de licitação e preço de mercado, de acordo com lei recentemente sancionada. Entre 1.500 hectares e 2.500 hectares, os terrenos só podem ser vendidos por licitação e pelo preço de mercado.
Acima desse limite, segundo Mangabeira Unger, a venda só poderia ocorrer mediante expressa autorização do Congresso, e a proposta é "confiscar" essas terras. "Uma das muitas conseqüências do processo de regularização é o viés democratizante da distribuição de propriedade", afirmou ele, que defende mudanças de regras para estabelecer um "caminho largo e acelerado" da posse insegura para a propriedade plena de terras na Amazônia.
O ministro defende mecanismos que evitem a contestação na Justiça de processos administrativos de cancelamento de registros ilegais feitos por grileiros de terras.
Por meio de liminares, o processo de regularização pode se arrastar por décadas. Além da redução de exigências técnicas do georreferenciamento de propriedades, o ministro também defende "varreduras" do território da Amazônia para averiguação e negociação com os atuais ocupantes.
De acordo com Mangabeira, a dimensão das terras públicas sujeitas ao que chamou de "confisco" -ou retomada por parte da União- é incerta. "Só vamos poder descobrir averiguando", afirmou ele.
Folha

23.8.08

Prevendo conflito, governo reforça a segurança em RR

Segundo serviço de inteligência, proximidade de julgamento de demarcação de reserva pelo STF deve acirrar conflito na região

Arrozeiros são acusados de preparar ataque contra índios; eles negam; governo reforça efetivo de policiais e já tem 300 homens na área


A proximidade do julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) da demarcação da Raposa/Serra do Sol, previsto para a próxima quarta, levou o governo a reforçar o efetivo policial na região já prevendo o acirramento de ânimos entre índios e não-índios.
Mesmo que o Supremo adie o julgamento, caso ocorra um pedido de vista, órgãos como o Ministério da Justiça, por exemplo, trabalham com a hipótese de confronto.
Segundo informações do serviço de inteligência, teriam chegado na região nos últimos dias jagunços vindos de Boa Vista e de outros Estados do Norte. Eles estariam circulando pela área da terra indígena em cerca de cem motocicletas.
A pasta do ministro Tarso Genro (Justiça) trabalha com a informação de que eles estariam monitorando os índios favoráveis à demarcação contínua, como deseja o governo, e estudando possíveis alvos de ataque. O objetivo, segundo a Folha apurou, seria o de também proteger as fazendas produtoras de arroz cravadas dentro da área indígena contra qualquer ameaça de invasão por parte dos índios.
O governo montou uma sala de situação, que se reuniu anteontem, para acompanhar a situação na área. Ela é formada por membros dos ministérios da Justiça, Defesa, Casa Civil, GSI (Gabinete de Segurança Institucional), além da Funai (Fundação Nacional do Índio), Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e Polícia Federal.
Membros do governo ficaram preocupados com a situação exposta. Pessoas ligadas aos arrozeiros estariam até espalhando bombas caseiras em pontos da reserva já pensando em tática de resistência.
Os arrozeiros negam. Segundo Paulo César Quartiero (DEM), prefeito de Pacaraima e líder dos rizicultores, não haverá resistência ou ataque por parte dos produtores.
Segundo acusam a PF e o governo, o responsável por municiar os arrozeiros é o coronel reformado do Exército Gélio Fregapani, que atuou por mais de dez anos na Abin, foi secretário de segurança pública no Estado, além de um dos fundadores do Cigs (Centro de Instrução de Guerra na Selva).
Em maio, quando houve conflito na região com ataques aos índios, a um posto da PF e até a destruição de pontes, Fregapani foi apontado pela PF como o estrategista da ação.
Ele nega. "Se eu tivesse ensinado táticas de guerrilha, não tinha um policial federal lá. E quem afirmou isso com certeza estaria morto. Sou um dos fundadores do Cigs, esse pessoal não pode competir comigo."
Policiais da Força Nacional de Segurança e da PF estão na região desde abril, quando foi deflagrada a Operação Upatakon 3, para retirar da reserva os não-índios. Com o reforço recebido nos últimos dias, há hoje um efetivo de 300 homens na região, mas o governo poderá mobilizar mais policiais, além de um helicóptero de apoio.
Folha

O novo operador do orçamento

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O secretário nacional do PT, Romênio Pereira, é acusado de participar de quadrilha que desviou mais de R$ 700 milhões dos cofres públicos

ALAN RODRIGUES E RUDOLFO LAGO

"O REI DO GROTÃO" Encarregado de fazer a ponte entre prefeitos do PT e o governo, Romênio teve os sigilos telefônico, fiscal e bancário quebrados

Em abril passado, Romênio Pereira, secretário nacional do PT, articulou uma reunião de mais de 300 prefeitos do partido com os ministros Dilma Rousseff, da Casa Civil, e Paulo Bernardo, do Planejamento. No Hotel Nacional, em Brasília, eles foram informados sobre a melhor maneira de obter recursos do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, para seus municípios. Até a semana passada, deveria caber a ele repetir a cena quando a eleição deste ano chegasse ao fim. Mas antes mesmo que o PT possa contar o número de novos prefeitos, Romênio Pereira vai ter de responder por uma encrenca das grossas.

No próximo mês, o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, apresentará ao Supremo Tribunal Federal (STF) o resultado de uma investigação que atinge diretamente o secretário nacional do PT e vários deputados. Trata-se do resultado da petição 3683, que tem como apenso a petição avulsa 53976, que investiga a ação criminosa de deputados federais, lobistas, funcionários públicos e prefeitos que se locupletavam comercializando emendas parlamentares ao Orçamento da União. Segundo o Ministério Público, essa quadrilha teria desviado mais de R$ 700 milhões. É uma espécie de nova máfia do Orçamento, à semelhança do caso que há 15 anos resultou em acusações contra 15 parlamentares. Desses, seis foram cassados e quatro renunciaram. Detalhe: na antiga denúncia, apontou- se um desvio de R$ 101 milhões.

Com mais de dez mil páginas, 20 volumes, 80 gigas de memória em arquivos, o inquérito revela a radiografia de um sofisticado esquema criminoso que envolve 23 construtoras e 119 prefeituras espalhadas pelos Estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. Nas investigações, ficou comprovado que a quadrilha desviou verbas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e montou uma rede de informações privilegiadas, com participação de funcionários do Ministério das Cidades, Integração Nacional, Saúde e até do Tesouro Nacional.

A denúncia, que tramita em segredo de Justiça, é demolidora: "A execução do esquema delituoso passou a ser feita por grupos organizados nos moldes de verdadeiras organizações criminosas (...), unidos para a consecução do objetivo comum de promover o desvio de recursos públicos federais destinados aos municípios para o financiamento de obras públicas". A quadrilha, ainda segundo o inquérito, agia sob as ordens do lobista João Carlos de Carvalho, um empresário mineiro que ficou milionário com o esquema que funcionava há pelo menos sete anos na Esplanada dos Ministérios. No Congresso, seu principal elo era o deputado João Magalhães (PMDB-MG). No documento, obtido com exclusividade por ISTOÉ, aparecem os nomes de sete parlamentares. Além deles, o procurador também aponta o dedo para Romênio Pereira, como o suposto elo entre lobistas, prefeituras e o governo.

A escalada de Romênio Pereira no PT sempre deixou intrigada uma boa parte dos dirigentes históricos do partido. Afinal, ele nunca foi nenhum ideólogo, não teve participação nos movimentos sociais e muito menos militou na área sindical. Apesar dessa carência de credenciais, Romênio é um dos 12 integrantes da cúpula nacional. Era vice-presidente do partido até o ano passado. Se não tivesse havido intervenção no partido após a renúncia de José Genoino, durante a crise do Mensalão, há três anos, ele teria se tornado presidente do PT. Agora, como um dos nove secretários nacionais, tem a missão de facilitar o trânsito dos prefeitos do partido com os diversos ministérios, em busca de projetos e programas que melhorem a vida nos municípios. "O secretário de Relações Institucionais cuida da relação do partido com os prefeitos", diz Romênio. "Eu sou chamado no PT de Rei dos Grotões", emenda.



GRAMPEADO O prefeito Wanderley Souza foi pego pela PF com a boca na propina

Ao monitorar João Carlos de Carvalho, a PF descobriu que ele conversava seguidamente com Romênio. Entre os dias 13 de junho e 19 de novembro de 2007, período do monitoramento, foram sete encontros. "Primeiro, os encontros são sempre regulares, com espaço médio de 20 dias entre eles; segundo, sempre acontecem em locais seguros, na casa de João Carlos ou no gabinete de Romênio; terceiro, nunca é tratado no telefone o motivo desses encontros, o que indica a adoção de cautelas contra eventual escuta telefônica; quarto, há sempre referência nas conversas a "aquele amigo" ou "aquele meu amigo", a "acerto", técnicas de diá-logo utilizadas por quem quer ocultar eventual ilicitude dos seus atos", diz o documento do Ministério Público Federal. Procurado por ISTOÉ, Romênio diz nada saber sobre as referências a "um amigo", "aquele meu amigo" ou "acerto", captadas nas escutas telefônicas.

"A suspeita é de que ele atue politicamente para viabilizar, perante os ministérios e outros órgãos do governo federal, a rápida destinação dos recursos aos municípios e a celebração dos convênios", escreve o procurador-geral, na página 13 do documento. "Não fiz pedido a nenhum ministério para atender a qualquer demanda específica do João Carlos", rebate o dirigente do PT. Noutro trecho, Antônio Fernando de Souza é ainda mais contundente. "Não há razão lícita aparente que justifique os 'negócios' entre os dois interlocutores. João Carlos atua na área de construção civil, comandando um suposto esquema de fraudes em licitações com desvio de recursos públicos federais, enquanto Romênio é um articulador político do Partido dos Trabalhadores", escreveu o procurador, que continua: "Uma investigação mais apurada desse suspeito relacionamento entre o lobista João Carlos de Carvalho e o secretário nacional de Assuntos Institucionais do Partido dos Trabalhadores Romênio Pereira permitirá esclarecer as razões dos freqüentes encontros e se de fato Romênio Pereira seria a pessoa que proporciona a João Carlos os contatos necessários para viabilizar as fraudes investigadas." João Carlos não foi encontrado pela reportagem para comentar a denúncia.

Dentro da burocracia partidária, Romênio chama a atenção por uma característica peculiar: ele não usa computador e só escreve a lápis. Assim como o ex-tesoureiro Delúbio Soares e o exsecretário- geral Sílvio Pereira, defenestrados do partido depois do escândalo do Mensalão, Romênio construiu sua carreira partidária à sombra do poder. Mineiro de Patos de Minas, ele é irmão do deputado federal Geraldo Magela (PT-DF). Pragmático, o secretário nacional se declara um dos petistas mais abertos a ampliar alianças. Na cúpula, foi o único que apoiou abertamente a união do PT com o PSDB mineiro em apoio ao candidato do PSB, Márcio Lacerda, à Prefeitura de Belo Horizonte.

ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA Relatório do procurador-geral da República acusa parlamentares, prefeitos e funcionários públicos de fraudar obras públicas

A ISTOÉ, Romênio não negou a relação com o lobista João Carlos de Carvalho. "Eu só não sabia que ele era lobista." Romênio diz que conhece Carvalho há cinco anos. Foi apresentado a ele no aeroporto de Belo Horizonte, antes de um vôo para Brasília, pelo ex-prefeito de Governador Valadares João Fassarella, morto em 2006. "Ele nos viu conversando e se aproximou. A partir daí, começou a procurar ter encontros comigo", diz. Segundo Romênio, depois do terceiro encontro, ele perguntou o que, afinal, Carvalho queria com ele. "Sou um pequeno empresário na área de projetos. Quero que você me apresente a prefeitos", disse o lobista, de acordo com o relato de Romênio. Nesse caso, Carvalho tinha ido ao endereço certo. "Mas eu não me lembro de ter indicado qualquer prefeitura para favorecer o João Carlos", defende-se Romênio.

Como, então, explicar tantos encontros, até com o convite, aceito, para que Romênio almoçasse em Belo Horizonte na casa de Carvalho, num apartamento avaliado em quase R$ 2 milhões? "Ele parecia um homem simples, simpático. Estabeleceu- se uma boa relação, uma relação de um quadro político com um pequeno empresário", diz Romênio. De qualquer modo, numa das conversas grampeadas, Carvalho reclama que o diretor de produção habitacional do Ministério das Cidades, Daniel Vidal Nolasco, "não está ajudando nada". Romênio dá uma explicação: "Ele, de fato, uma vez me perguntou se eu conhecia alguém no Ministério, eu conhecia o Daniel". Em outra conversa captada, a PF diz que Romênio disse a Carvalho que Nolasco queria falar com ele. "Não me lembro disso", defende-se Romênio. "De tudo, porém, estou seguro de que não há nada que me comprometa com esse rapaz", diz o dirigente, referindo- se a Carvalho.

A etapa inicial da investigação sobre esse novo escândalo do Orçamento resultou na Operação João-de-Barro, que promoveu a prisão de prefeitos, empreiteiros e lobistas de Minas Gerais e apontou o envolvimento direto dos deputados mineiros João Magalhães (PMDB) e Ademir Camilo (PDT). Ambos estão sendo investigados pela Corregedoria da Câmara dos Deputados, em processos que podem resultar na cassação dos seus mandatos. As prisões e outras providências pedidas no dia 11 de junho pelo procurador- geral da República, Antônio Fernando de Souza, ampliaram as informações obtidas pela Polícia Federal. O que vai surgir agora concentra- se principalmente nas investigações que resultaram dos "Autos Apartados em Petição 3683", em que Antônio Fernando de Souza encaminha ao Supremo detalhes das investigações que estão em curso. O relatório identifica o nome de outros três parlamentares mineiros, além de Magalhães e Camilo, que apareceram nas escutas telefônicas: José Santana de Vasconcelos Moreira (PR), Jaime Martins Filho (PR) e José Miguel Martini (PHS). E menciona outros dois, também de Minas, cujas emendas orçamentárias teriam sido usadas pelo esquema: Leonardo Monteiro (PT) e Carlos William (PTC).

MENTOR Magalhães é acusado de ser o líder da quadrilha

Segundo a denúncia do procuradorgeral da República, o esquema funcionava da seguinte forma: primeiro, o deputado indicava os municípios e os valores para a liberação de verbas, utilizando emendas do Orçamento de sua autoria ou de terceiros. Feito isso, a quadrilha passava para a segunda etapa do crime, que é a assinatura dos convênios. Nesse momento, a elaboração dos projetos ficava a cargo do lobista, que também se encarregava de acompanhar sua aprovação. Quando o empenho (a garantia da futura liberação do dinheiro) era assinado, o prefeito pagava um percentual (entre 10% e 12%) para Carvalho. Caso se recusasse a pagar, Carvalho tinha o poder de conseguir o direcionamento da verba para um outro município.

Um caso emblemático é narrado nos documentos obtidos por ISTOÉ. Em um deles, o prefeito petista da cidade mineira de São Félix de Minas, Wanderley Vieira de Souza, conversa com a assessora de Magalhães, Mary Lanes, sobre como deveria fazer para pagar a propina. A assessora oferece a sua própria conta bancária para que o prefeito faça o depósito:

- Deixa eu te falar, você não me ajeita uma conta para fazer a transferência daquele dinheiro, não? - pergunta o prefeito.

- Transfere para a minha conta, então - sugere Mary Lanes.

Numa conversa posterior, Mary Lanes indica a Wanderley uma conta num banco.

- Beleza! Vem cá, eu coloco é 39 ou 40 mil? - pergunta o prefeito.

- Quarenta. Fechado - responde Mary.

- Então, é 11%, né, danada? - completa Wanderley.

No depoimento que prestou à comissão de sindicância criada pelo corregedor- geral da Câmara, Inocêncio Oliveira (PMDB-PE), para investigar seu caso, o deputado Magalhães indicou que novos nomes apareceriam na investigação da complexa trama que o esquema de desvio de verbas criou. "Ele, que teve acesso a todo o processo, nos disse que há vários envolvidos e que a conclusão da investigação iria demorar", disse à ISTOÉ um dos assessores da comissão de sindicância. Encontrar os demais envolvidos e as suas conexões é a tarefa em que se debruçam agora a PF e o Ministério Público Federal. No caso específico de Romênio, para tanto, o ministro do STF, Cezar Peluso, responsável pelo inquérito no Supremo, autorizou as quebras dos seus sigilos telefônico, bancário e fiscal, já que "foram, ademais, captados, nas interceptações, diálogos que comprovariam o envolvimento, no esquema, de Romênio, sob a suspeita de que atuaria politicamente para viabilizar, perante os Ministérios e outros órgãos federais, a rápida assinatura de convênios e a destinação dos recursos aos municípios...". Procurado por ISTOÉ, o deputado Magalhães disse que estava impedido por seus advogados de falar. "Eu só posso dizer que não tenho nada com isso e vou mostrar que sou inocente", disse.

DEPUTADO ACUSADO DE ROUBAR DEPUTADO
Os novos anões do Orçamento não perdoam nem os colegas

USADO "Eu sou vítima", diz Monteiro

Vem de um procurador ouvido por ISTOÉ a mais curiosa revelação do esquema dos novos "Anões do Orçamento". "Apuramos que um deputado roubou dinheiro de outro deputado", revela ele, que participou das investigações. Essa ação inusitada foi possível porque o esquema mantinha um monitoramento constante da execução orçamentária. Assim, sabia qual deputado solicitara verba para tal cidade. A rede montada pelo esquema agia, então, para acelerar a liberação, e acertava o convênio com o prefeito, muitas vezes sem que o deputado autor da emenda soubesse o que estava acontecendo. Na página 29, do volume 14, a transcrição de um grampo telefônico deixa clara essa estratégia. Tratase de uma conversa, no dia 14 de julho de 2007, entre o deputado João Magalhães e sua assessora Mary Lanes: "A gente belisca nas outras... Aqui, o negócio do Leonardo é só nós dois, ninguém sabe não, tá? O negócio do Leonardo, os 10% dele é meu e seu, ninguém sabe disso não", diz Magalhães.

Segundo um dos procuradores que trabalham na investigação, Leonardo no caso é o deputado federal Leonardo Monteiro, do PT. "Eu não sei se o Leonardo que o João Magalhães cita sou eu mesmo, mas isso tudo aí é muito estranho", defende-se Leonardo. "Se isso aconteceu de fato, então eu sou vítima." O deputado José Miguel Martini (PHS), também citado no relatório, é mais incisivo. "Eu fui usado por esse esquema", reclama. No caso, João Carlos de Carvalho telefonou para o gabinete de Martini na Câmara e converconversou com um assessor do deputado, Cláudio de Faria Maciel. Depois de um entendimento prévio, Carvalho indicou ao assessor que apresentasse uma emenda ao Ministério das Cidades, para calçamento de ruas, no município mineiro de Dom Joaquim.

"Esse sujeito procurou o gabinete dizendo que tinha espaço político e poderia ajudar a liberar emendas. Eu não o conhecia. Então, para iniciar uma relação, eu orientei meu assessor a indicar uma emenda de valor baixo, apenas para ver o que acontecia", explica Martini. "Eu pessoalmente não falei com ele, não conheço o sujeito, não sabia que era lobista. A gente recebe ligação de um monte de gente sem saber quem é. Eu não tenho bola de cristal", defende-se. Martini afirma que, depois que Carvalho foi preso na Operação João-de-Barro, ele solicitou aos Ministérios que cancelassem todas as suas emendas orçamentárias.

A Polícia Federal suspeitava que a emenda de outro deputado também tivesse sido usada da mesma forma pelo esquema. No caso, o deputado Carlos William. Mas ele mesmo deu à ISTOÉ outra explicação. "O pessoal do meu gabinete não tem muita experiência com orçamento. Então, como eles têm amizade com o pessoal do gabinete do João Magalhães, pedem para eles acompanharem a execução das nossas emendas", disse William. Com a conclusão da PF e do Ministério Público de que Magalhães era um dos comandantes do esquema, foi como pedir à raposa que tomasse conta do galinheiro.

IstoÉ