9.8.08

Entrevista Tarso Genro - Estadão

''Não estamos sob tutela militar''
Ministro afirma que opinião de general da reserva a respeito de sua conduta não faz a menor diferença

Enquadrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Justiça, Tarso Genro, tentou jogar água na fervura da crise com os militares após defender a punição aos torturadores da ditadura, mas não conseguiu segurar o protesto dos quartéis. Na tentativa de demonstrar tranqüilidade, Tarso disse que a divulgação de sua ficha política, por parte de generais da reserva reunidos no Clube Militar, no Rio, não tem a mínima importância.

"Não estamos sob tutela militar", afirmou, ao saber que houve quem pedisse sua cabeça no encontro de quinta-feira.

Conhecido por seu estilo irônico, língua afiada e capacidade de atrair polêmicas, Tarso não deixou por menos: apesar de sublinhar o respeito pelas Forças Armadas, lembrou que, se a crítica ocorresse nos anos de chumbo, o manifestante poderia ser cassado e preso.

O ministro confirmou ao Estado que Lula pediu a ele, antes de viajar para Buenos Aires e Pequim, que não deixasse o embate com os militares prosperar. "De minha parte, a crise terminou", insistiu. "Quando a polêmica alcança uma determinada temperatura, o presidente Lula orienta sua condução para que fique menos tensa ou não produza dissensos políticos." Ao longo da semana, Tarso seguiu o script combinado com o Palácio do Planalto e repetiu que o governo não pretende revogar a Lei de Anistia, de 1979, embora ele e o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi, tenham deixado essa impressão. O episódio desgastou o ministro, que alfinetou os militares logo após divergir do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, sobre o uso de algemas na Operação Satiagraha, e de trombar com a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

Ex-guerrilheira, Dilma é a candidata favorita de Lula ao Planalto e se desentendeu com Tarso depois que ele, de olho na cadeira presidencial, disse que a colega não tinha militância partidária. "Sou suficientemente realista para saber que os rumos que o PT vai dar para a sucessão de 2010 são associados à direção do presidente Lula."

O sr. se desgastou nessa polêmica com os militares, quando defendeu a punição dos torturadores da ditadura. Por que resolveu comprar essa briga?

Eu creio que não me desgastei porque não vivemos num país tutelado pelos militares. O que houve foi uma polêmica em torno de um comentário que fiz, numa audiência pública da Comissão de Anistia, de que tortura não é crime político. Isso é claro em todos os tratados de direito internacional que tratam do assunto. Houve uma tensão porque minha posição foi divulgada como se eu pedisse a revisão da Lei de Anistia. Mas isso não partiu de mim.

O sr. diz que não está pregando a revogação da Lei de Anistia. Mas, para que militares torturadores sejam punidos, a lei tem de ser revista. Ou há outro caminho?

Eu nem sequer mencionei os militares na audiência pública. Falei de agentes públicos do Estado que estavam a serviço de estruturas paralelas à instituição militar. Essa polêmica com as Forças Armadas é porque certamente ocorreu alguma preocupação originária de militares que participaram desses atos e passaram a envolver a reserva da corporação no assunto.

O que o sr. achou das reações no Clube Militar, no Rio? Uma nota conjunta assinada por Exército, Marinha e Aeronáutica diz que o sr. e o ministro Paulo Vannucchi prestaram um desserviço ao Brasil e ao governo. Além disso, o general da reserva Sérgio Coutinho chegou a divulgar sua ficha, afirmando que o sr. pertenceu à ala vermelha do PCB...

Nunca participei de nenhum ato violento durante a resistência ao regime militar porque entendia, mesmo numa organização clandestina, que as ações violentas só multiplicam a violência que vem de um Estado de exceção. A opinião do general da reserva a respeito da minha conduta não faz a menor diferença para mim. A visão que ele tem da minha ficha é absolutamente irrelevante. Tenho militância política antiga, tenho respeito pela instituição das Forças Armadas, pela ordem política brasileira e acho que o militar tem o direito de manifestar opinião a respeito da minha conduta, Mas, para mim, sinceramente, ela não é importante. Não estamos sob tutela militar.

O ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Waldemar Zveiter elevou o tom e disse que o sr. deveria deixar o cargo. Chegou a chamá-lo de golpista e afirmou que os militares podem tirá-lo do poder. Isso não o abala?

Não. Ele pode dizer isso com toda liberdade e tranqüilidade porque não estamos no regime militar. Estamos no regime democrático. Se ele fizesse isso no regime militar poderia ser cassado e preso. Da minha parte considero essa polêmica terminada, porque até agora ninguém defendeu nenhum ponto de vista contrário ao meu, de que crime de tortura não é crime político. É crime de lesa-humanidade.

Mas se o sr. não defende a revogação da Lei de Anistia essa discussão é inócua, não? É possível produzir outra lei tipificando a tortura como crime comum?

Isso já está internalizado no sistema jurídico. O Brasil, desde 1910, associa-se a todos os tratados que condenam a tortura e tornam o crime de tortura imprescritível. Compete ao Judiciário se manifestar sobre o assunto nas diversas ações que estão tramitando, inclusive porque tribunais podem interpretar que a Lei de Anistia também contempla esses crimes como comuns. Não é da competência do Ministério da Justiça indicar nenhum caminho, mas devemos, sim, manifestar nossa posição perante um público que se reporta à Comissão de Anistia: há associação de mães, pessoas que sofreram os efeitos da tortura, famílias que foram destroçadas e estão buscando seus direitos. Isso é uma coisa normal da democracia, assim como é normal os militares da reserva não gostarem do assunto.

A posição que o sr. adotou na audiência pública da semana passada sobre possibilidades de responsabilização jurídica dos agentes violadores dos direitos humanos é sua ou do governo Lula?

É uma posição minha, manifestada no âmbito do Ministério da Justiça. O governo não deve ter opinião sobre isso nem interferir nesse processo. Agora, seria absolutamente inaceitável que o ministro da Justiça de um país democrático não tivesse opinião sobre a questão da tortura. Aí, sim, seria de estranhar. Seria até depreciativo para o País.

No governo e no PT há quem diga que suas posições escondem a intenção de se contrapor à ministra Dilma Rousseff e angariar a simpatia da esquerda para eventual disputa com ela à Presidência ou ao governo gaúcho, em 2010. Como o sr. responde a esse comentário?

Só uma mentalidade muito pequena poderia pensar que a gente trataria de um assunto como esse a partir de uma disputa política. Em primeiro lugar porque não estou disputando politicamente nada com a ministra Dilma. Pelo contrário. Tenho admiração por ela, que é uma das pessoas que sofreram os efeitos da tortura na luta que travou contra o regime militar. Em segundo lugar porque essa questão é conduzida pelo presidente Lula, não por mim. Em terceiro lugar porque eu já manifestei diversas vezes - mas parece não adiantar - que não sou candidato a presidente. Não vou me apresentar e creio que é prematuro discutir esse assunto.

O sr. disse que o presidente Lula não o tem como candidato à Presidência. Isso não significa, porém, que o sr. não almeje concorrer e não faça uma disputa política...

Os meus vínculos com o governo são totais. Enquanto eu for ministro do presidente Lula, sigo a orientação dele em todos os aspectos e ele sabe disso. Minha corrente no PT (Mensagem ao Partido) não tem maioria expressiva para interferir nessa questão de maneira a mudar os rumos que o presidente queira dar. Sou suficientemente realista para saber que os rumos que o PT vai dar para a sucessão de 2010 são associados à direção do presidente Lula. Acho correto. O presidente é muito mais forte do que o partido.

Seu estilo de provocar polêmicas e administrar conflitos muitas vezes causa contrariedade no Planalto: o sr. já divergiu do presidente do STF, Gilmar Mendes, em relação à prisão de Daniel Dantas, já deu estocada na ministra Dilma, já defendeu a refundação do PT. Não teme ficar isolado?

Não. Eu não sou um buscador de polêmicas. É que sob a minha competência político-administrativa aparecem assuntos polêmicos. Desde a época, por exemplo, do ProUni. Eu estava no Ministério da Educação e nós estruturamos o ProUni, que deu uma violenta polêmica na sociedade e hoje está aí funcionando. Depois veio a polêmica do Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica), que extravasou o governo, de setores contra recursos vinculados para a educação. Poderia citar outros fatos, como a legislação da alcoolemia (Lei Seca), muito combatida e com bons efeitos. O único assunto pacífico que tratei até agora e não deu polêmica foi o dos call center (risos).

Quer dizer que as polêmicas é que perseguem o sr.?

Em nenhum momento eu tive polêmica com o ministro Gilmar Mendes...

Ah, ministro... Como não?

A intervenção do ministro Nélson Jobim (Defesa) naquele momento foi feita para facilitar a aproximação de uma posição com o presidente da República a respeito da segunda rodada de reformas (para impedir o abuso de autoridade). Inclusive está aí agora a decisão do Supremo sobre o uso de algemas.

O que o sr. achou dessa decisão? Durante a Operação Satiagraha o sr. chegou a dizer que se pobres são algemados os ricos também podem ser.

Essa decisão do Supremo atende à formulação que eu fiz e concordo integralmente com seu conteúdo. Delega ao agente a verificação da necessidade ou não do uso de algemas, sem humilhar as pessoas. Não tenho nenhuma divergência de fundo com o ministro Gilmar Mendes. O que houve foi uma tensão produzida num momento de avaliação da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, onde se cruzaram opiniões diferentes sobre a natureza da ação.

O sr. tem o apoio do presidente Lula nessas polêmicas?

O presidente não trata dessas questões de maneira pormenorizada com seus ministros. O que ocorre, em certas circunstâncias, é que quando a polêmica alcança determinada temperatura o presidente orienta a condução para que ela fique menos tensa ou não produza dissensos políticos no governo.

Que foi o que aconteceu agora...

Apenas recebi uma avaliação do presidente, antes da viagem dele, de que a polarização sobre esse assunto não deve se transformar numa questão de Estado, do Executivo, porque é para ser tratada pelo Judiciário. Aliás, é uma afirmação que eu mesmo fiz naquela audiência pública que causou essa polêmica.

A crise está perto do fim? Foi artificial?

Da minha parte a crise já terminou. Não acho que tenha sido artificial. Essa é uma questão encravada e não resolvida na sociedade: há feridas abertas, que não cicatrizaram. Há debates que não foram feitos. Mas não creio que esse seja um tema que produza instabilidade política. Uma sociedade como a nossa tem de enfrentar os debates de maneira aberta e não escondê-los no porão para que fiquem formando um subconsciente doentio do processo democrático. Sonegar um debate como esse seria uma covardia.

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