26.8.08

Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas

Rubens Barbosa

A demarcação de reservas indígenas em Roraima faz voltar ao debate público a controvertida decisão do atual governo de ratificar a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. O referido documento, negociado nas Nações Unidas em 1993, levou quase 15 anos para ser aprovado, com 4 votos contra e 11 abstenções. Canadá, EUA, Austrália e Nova Zelândia, com populações indígenas significativas, votaram contra. O Brasil, nas mesmas condições, votou a favor (Celso Amorim, como ministro das Relações Exteriores, assinou a Declaração em 1993 e a ratificou em setembro de 2007).

O governo australiano, para justificar seu voto negativo, afirmou enfaticamente que a Declaração outorga direitos às populações indígenas que conflitam com o restante da população e com o marco constitucional dos países democráticos. A Austrália expressou sua oposição, em especial, pelo emprego do termo autodeterminação, por poder pôr em perigo a integridade territorial do país.

A demarcação das terras indígenas, de forma contígua, no norte de Roraima, em região fronteira à Venezuela, suscita, entre outras, duas questões que têm relação direta com a referida Declaração: a questão de soberania na faixa de fronteira e a possibilidade de criação de uma nação indígena (ianomâmi) nos dois lados da fronteira.

Levando em conta o disposto no artigo 22 da Constituição federal de 1988, segundo o qual compete privativamente à União legislar sobre os povos indígenas, a primeira dúvida que surge é quanto à compatibilidade da Declaração com os preceitos constitucionais vigentes.

Embora registre expressamente que nenhum de seus dispositivos autoriza ou fomenta qualquer ação visando a violar ou reduzir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes (artigo 46), a Declaração trata os povos indígenas como entidades políticas independentes dos Estados.

Com a prerrogativa de autodeterminação, os povos indígenas podem decidir livremente a sua condição política, com direito à autonomia e ao autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, assim como em relação aos meios para financiar suas funções autônomas (artigos 3 e 4). Toda pessoa indígena tem direito a uma nacionalidade (artigo 6), que se presume possa ser diferente da brasileira.

Não se desenvolverão atividades militares nas terras ou nos territórios dos povos indígenas, a menos que uma razão de interesse público pertinente as justifique, ou que os povos indígenas interessados as aceitem ou solicitem livremente. Os Estados terão de consultar os povos indígenas interessados antes da utilização de suas terras ou de seus territórios para atividades militares (artigo 30).

Segundo a Declaração, os povos indígenas têm o direito de desenvolver contatos, relações e cooperação, inclusive políticos, com outros povos indígenas além-fronteiras (artigo 36, 1) e de manter e desenvolver atividades de caráter político, espiritual, cultural, econômico e social, com seus próprios membros, assim como outros povos através das fronteiras. Os Estados, em consulta e cooperação com os povos indígenas, terão de adotar medidas eficazes para facilitar o exercício e garantir a aplicação desse direito (artigo 36, 2).

O território da reserva indígena em Roraima, demarcada pelo governo federal, é contíguo a outra, em território venezuelano. As duas, somadas e fundidas em uma só, sem solução de continuidade, poderiam formar um enclave entre os dois países, com foros de Estado independente, que poderia dispor de instituições políticas (artigo 5), ter seus próprios meios de informação nos respectivos idiomas e acessar todos os demais meios de informação não-indígenas sem discriminação alguma (artigo 16).

A Constituição brasileira corretamente reconhece aos índios a sua organização social, seus costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (artigo 231). As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente e as utilizadas para suas atividades produtivas, são definidas como imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar, bem como as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Essas terras se destinam à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Os direitos assegurados pela Constituição não estão, portanto, em discussão.

Fala-se muito da internacionalização da Amazônia. O relator da ONU para Direitos Indígenas acaba de visitar Roraima. A Declaração pode ser vista como um prenúncio indireto dessa internacionalização, ao estabelecer, com o apoio da comunidade internacional - inclusive do governo brasileiro -, que os direitos dos povos indígenas são objeto de preocupação e responsabilidade internacionais.

Os temas do controle territorial e da perspectiva de criação de uma nação indígena independente dentro do Estado brasileiro adquirem, assim, um caráter grave que tem de ser examinado sob a ótica da segurança nacional. O Congresso, que aprovou a Constituição de 88 e ratificou a Declaração da ONU, e o Supremo Tribunal Federal, que está julgando a questão da demarcação das terras no norte de Roraima, deveriam reexaminar com cuidado essa questão.

Do ponto de vista do interesse nacional, a defesa da integridade territorial e da nacionalidade aconselha uma atitude firme do governo. A delimitação de áreas indígenas talvez devesse avançar apenas até a faixa de fronteira. Com isso se atenderia às duas preocupações, quanto à integridade territorial e a da nacionalidade.

Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp

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