Como se fosse a coisa mais natural do mundo, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, estará presente à reunião de hoje em Puerto Iguazu entre os dirigentes dos países diretamente envolvidos na questão do setor boliviano de gás e petróleo, cujas operações foram estatizadas pelo presidente Evo Morales - além dele, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o argentino Néstor Kirchner. A reunião foi acertada às pressas, na terça-feira, por iniciativa de Lula. Chávez governa um país cujos interesses econômicos não foram afetados pelo ato do seu homólogo boliviano. A participação do coronel no encontro como que institucionaliza a sua condição de mentor de Morales, o qual, por sua vez, assume papel equivalente ao de menor relativamente incapaz, na terminologia jurídica brasileira.
Já de si, a transformação da Bolívia em satélite da Venezuela, sacramentada na reunião dos seus presidentes, mais o ditador Fidel Castro, em Havana, dois dias antes de Morales assinar o decreto da nacionalização, representa um problema de vulto para a estabilidade das relações entre os países sul-americanos. Pior ainda, porém, é a passividade do governo brasileiro diante do novo e preocupante cenário regional. Decerto não passou pela cabeça de ninguém com poder de decisão, no Planalto ou no Itamaraty, a idéia de propor que se restringisse a Lula, Morales e Kirchner, como seria lógico e pertinente, o elenco do encontro de Puerto Iguazu. Isso não surpreende. A mansidão do governo brasileiro ficou muito mais escancarada na reação - ou falta dela - à decisão de Morales.
Um dia, quando o Brasil for o país amadurecido dos sonhos dos brasileiros, será estudada no Instituto Rio Branco, onde se formam os quadros do Itamaraty, como exemplo de um tempo felizmente superado, a nota emitida pelo Planalto anteontem, ao cabo de uma jornada inteira de reuniões sobre a crise boliviana. À luz do texto, uma perda de tempo. A nota proclama solenemente que o Brasil reconhece que a nacionalização foi um ato inerente à soberania do governo de La Paz - como se pudesse pairar a menor dúvida a respeito. E promete que o Planalto agirá "com firmeza e tranqüilidade em todos os foros, no sentido de preservar os interesses da Petrobrás". Ou seja, no plano diplomático, Brasília anunciou sua capitulação perante o que seria um fato consumado.
A nota não registra nem sequer estranheza ante a ocupação militar de um campo explorado pela Petrobrás e o fato de seu autoproclamado "irmão mais moço" não ter tido a cortesia de avisá-lo do decreto iminente. O ponto a que chegou o presidente brasileiro pode ser também avaliado pelas informações segundo as quais ele gostou de ouvir de Morales, na conversa telefônica em que combinaram se falar hoje, que a nacionalização "não foi um ato de hostilidade contra o Brasil". Mais ainda, Lula ficou satisfeito em saber que "não haverá interrupção no fornecimento de gás para o Brasil e que os preços serão negociados daqui para a frente". Ah, bom - como se diz.
Não foi por falta de aviso. A imprensa registra que o presidente foi aconselhado a mostrar firmeza, publicamente, até para não passar a impressão de que, negócios energéticos à parte, endossou a anacrônica coreografia nacionalista do vizinho, como se a insegurança jurídica disso decorrente fosse aceitável na ordem econômica mundial da atualidade. Lula, como se viu, preferiu manter a crista baixa, a pretexto de que Morales não pode deixar de vender gás ao Brasil e, assim, tudo entrará nos eixos. A questão é outra. Nenhum outro país que queira ser respeitado na cena global deixaria de enfatizar que a soberania das nações com as quais se relaciona termina onde começam as obrigações livremente assumidas que asseguram os direitos dos seus parceiros. Esse ponto foi devidamente destacado pelos governos da Espanha (segundo país mais atingido por Morales), Chile e ainda pela União Européia.
Todos empregaram a palavra desterrada de Brasília por uma tibieza próxima da pusilanimidade - "preocupação". Resta ver se, "passado esse período de atordoamento", como declarou ontem ao Estado o ex-diretor-geral da Agência Nacional de Petróleo (ANP) David Zylbersztajn, o Brasil usará "todos os mecanismos de resistência" caso, na hora da negociação, a Bolívia adote uma "posição de força". Dado o retrospecto da diplomacia lulista, não convém apostar nisso.
Estadão
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