1.5.06

Quando os gringos somos nós

Ditadores e líderes populistas têm muita coisa em comum. Ambos precisam de inimigos externos para justificar as mazelas nacionais. Ameaças estrangeiras também servem para buscar unidades patrióticas e justificar restrições à liberdade dos locais. Os estrangeiros são os culpados, mas são os nacionais que perdem liberdades. Dessas ideologias e práticas resultam mitos conhecidos: a América Latina sofre de atraso histórico por causa dos Estados Unidos e é preciso livrar-se dos gringos para se desenvolver. Por isso, por exemplo, acordos de livre comércio com os Estados Unidos são como se atirar na boca do tigre imperialista.

Ditadores e líderes populistas também precisam de patriotismo. Isso se consegue de várias maneiras, inclusive com uma guerra. Como é custosa, porém, e sempre há o risco de perdê-la, felizmente poucos a tentam. Mas o futebol pode ajudar nisso, um astronauta ou megaprojetos, algo que seja o maior do mundo.

É o caso, por exemplo, do projeto desse gasoduto que vem lá da Venezuela e vai parar em Buenos Aires, depois de passar pelo Brasil inteiro, incluída a Amazônia, e pelo Uruguai. A coisa não resiste à mais simples análise econômica - mas não se trata de economia, trata-se da independência bolivariana da América do Sul, como disse em São Paulo o presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

Mas, mesmo que projetos patrióticos saíssem de graça, uma rápida olhada pela América do Sul de hoje mostra que os problemas e os adversários estão aqui mesmo. A Bolívia do companheiro Evo Morales ameaça empresas brasileiras lá instaladas e, de maneira sintomática, levanta dúvidas sobre o cumprimento do contrato de fornecimento de gás para o Brasil e para a Argentina. O governo venezuelano acaba de romper contratos e impor perdas à Petrobrás, que trabalha lá. O governo argentino tenta bloquear a construção de duas fábricas de papel e celulose na margem uruguaia do Rio Uruguai.

O presidente do Uruguai, Tabaré Vásquez, diz no México que o Mercosul não serve aos interesses de seu país. E pede a entrada dos mexicanos no bloco para equilibrar a adesão da Venezuela.

Mas a Venezuela está entrando no Mercosul e rompendo com a Comunidade Andina porque dois países desta última, Colômbia e Peru, firmaram acordo de livre comércio com os Estados Unidos, coisa que o México já tem há muitos anos. Ou seja, o que Vásquez sugere não faz o menor sentido: Venezuela e México não cabem no mesmo bloco, não por incompatibilidade econômica, mas por desencontros políticos. Vásquez sabe disso e levanta o assunto justamente para mostrar as divergências.

Ainda assim, os presidentes Lula, Chávez e Nestor Kirchner, da Argentina, resolveram enviar cartas formais aos colegas da América do Sul, convidando todos para que se integrem ao grande gasoduto bolivariano. Gasoduto, aliás, que autoridades bolivianas consideraram uma palhaçada. Têm razão no aspecto técnico e econômico - o projeto não passa no primeiro teste -, mas a preocupação dos bolivianos é mesmo com a ameaça de concorrência.

Nesse ambiente, os três presidentes estão convidando os demais para que sejam todos dependentes do gás da Venezuela e que Chávez promete entregar a preço de banana pelo resto da vida.

Eis aí, é de lascar a gente ter de tratar a sério essa história. Os três presidentes falam de integração num momento de briga, disputas e desconfianças generalizadas.

A diplomacia brasileira, então, não se sabe se é para rir ou chorar! O presidente Lula continua dizendo que pretende unir a América do Sul para tratar com os Estados Unidos cara a cara e continua acreditando que está liderando esse processo. E ainda acha que deve tratar os demais países como filhos ou irmãos menores que precisam de ajuda.

Por isso, o governo brasileiro se apressa em atender às reivindicações argentinas de proteção contra a importação de produtos brasileiros. Uma Argentina industrializada é do interesse brasileiro, dizem em Brasília. Faz sentido, mas à custa de prejuízos para a indústria brasileira?

Lula também diz que não vai brigar com Evo Morales. Mas é ele que está ameaçando confiscar propriedades brasileiras. Não tem problema, disse Lula na sexta-feira, a gente conversa. Só que os bolivianos já bloquearam uma siderúrgica brasileira e agora ameaçam expropriá-la, enquanto a diplomacia brasileira procurava "entender" as intenções dos hermanos. Só não entendeu que lá "os gringos somos nós" - conforme a boa sacada de Miriam Leitão.

Assim vai a ciranda bolivariana. Enquanto Lula e Chávez embarcam no populismo sul-americano, os países vão tocando seus negócios, alguns, e suas patriotadas, outros.

O Chile é o maior exemplo de bom senso: não se mete em briga nem em discursos patrióticos e simplesmente trata de estabelecer relações comerciais com todos os blocos. É sócio do Mercosul e tem acordo de livre comércio com os Estados Unidos, o México, a Europa e os países asiáticos. Em vez de pôr a culpa nos outros, aplica políticas internas e diplomacias comerciais que permitem forte crescimento há muitos anos.

Países da América Central também fazem acordos de livre comércio com os gringos norte-americanos, como começam a fazer os sul-americanos. Não tem importância, diz o chanceler brasileiro, Celso Amorim, são apenas "acordinhos". Já o nosso acordão do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana vai muito bem, não é mesmo?

É difícil imaginar fracasso maior.


Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.www.sardenberg.com.br