O que mais se temia desde o início do debate sobre a adoção de cotas raciais no ensino superior - a intolerância e o radicalismo dos defensores dessa medida - infelizmente já está ocorrendo. A audiência pública realizada nesta semana pela Câmara dos Deputados para discutir os projetos que criam o Estatuto da Igualdade Racial e cotas nas universidades terminou em confusão. Estudantes ligados à ONG Educafro tentaram invadir o plenário e os expositores tiveram dificuldades para apresentar suas idéias - uma das mais conceituadas especialistas em educação do País, a professora Eunice Duhran, quase não pôde falar.
No evento, representantes do Executivo mais uma vez repetiram a ladainha da ação afirmativa. "A introdução das cotas é uma política de inclusão de estudantes que não tiveram as mesmas oportunidades que os outros", disse a secretária de Igualdade Racial, Matilde Ribeiro. O problema da desigualdade está na má qualidade do ensino básico, refutou Eunice Duhran, após propor a criação de cursinhos pré-universitários para alunos de escolas públicas e de menor renda, a fim de que possam superar suas deficiências de formação. "Não dá para pensar que vamos resolver o problema só no fim do processo", afirmou, em meio a vaias.
Influenciada pelo debate americano dos anos 60 sobre políticas de ação afirmativa, a discussão sobre cotas chegou ao Brasil ideologicamente enviesada e foi encampada pelo governo Lula com propósitos demagógicos. O Executivo parte da idéia de que o Brasil é um país marcado pela discriminação racial, sendo o princípio jurídico da igualdade uma simples cortina de fumaça concebida para ocultar preconceitos e diferenças. Daí a necessidade de se reconhecer os direitos dos discriminados e de substituir a cultura erudita dos brancos pela cultura popular dos negros, no currículo escolar.
O problema dessa idéia é que, ao tentar justificar medidas de inclusão social com base na premissa de que a raça de uma pessoa define seus interesses, ela dissemina o racismo e cria confusões jurídicas. Um dos dispositivos do Estatuto, por exemplo, cria uma nova categoria de cidadão, os "afro-brasileiros", definindo-os como "pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga" e concedendo-lhes direitos especiais. Mas, se a Constituição considera crime a discriminação das pessoas por critérios de raça, que validade legal pode ter um estatuto concebido a partir de critérios raciais?
A confusão jurídica é ainda maior com o dispositivo que assegura reparações supostamente devidas a esses "afro-brasileiros" por "perdas do passado". Se a discriminação racial não é admitida pela Carta, como o estatuto pode exigir que cidadãos brancos, inclusive os pobres e os filhos de imigrantes recentes, sejam considerados coletivamente culpados por discriminações ocorridas no passado, sobre as quais não têm nenhuma responsabilidade individual?
Por fim, se a definição de uma raça "negra" já foi há muito tempo desmentida pela ciência, ao obrigar as pessoas a se classificarem pela cor nos documentos oficiais e ao atribuir às universidades a criação de comissões para atestar a veracidade das informações, os projetos do governo levam ao advento de tribunais de pureza racial, o que também conflita com a Constituição.
Na realidade, o problema da desigualdade no Brasil não está na cor da pele. Entre outros fatores, ele decorre da concentração de renda e da má qualidade do ensino, que nega às novas gerações a formação para que possam se emancipar intelectual e socialmente. Dito de outro modo, o problema está na falta de escola de boa qualidade para a população pobre de todas as cores. A inclusão social e o combate à exclusão econômica, como mostram os países que conseguiram vencer esse desafio, são processos que só se tornam eficazes quando as escolas são capazes de fornecer uma educação básica eficiente. Insistir em critérios de culpa e em expiação, para tentar reduzir disparidades sociais, é apenas uma forma irresponsável de disseminar a intolerância, da qual os incidentes ocorridos na Câmara são uma manifestação premonitória.
Estadão
Um comentário:
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