O governo brasileiro e a Petrobras erraram redondamente na Bolívia. A estatal acreditava que, por ser grande demais, não seria atingida; o presidente Lula achou que controlava o “companheiro” Evo Morales. Era previsível que Morales faria o que fez. Na estatal e no governo, prevaleceu um misto de arrogância com ingenuidade. A Petrobras está agora num impasse: o presidente da empresa disse que a ela não interessava ser prestadora de serviços. Mas terá que se contentar com esse papel. O ministro boliviano da área veio ao Brasil há quinze dias, falou grosso e avisou que os preços do gás vão subir.
O ministro boliviano de Hidrocarbonetos, Soliz Rada, deixou claro que o conflito iria se agravar. Da reunião, participaram, pelo Brasil, o ministro Silas Rondeau, o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, e o diretor da estatal Ildo Sauer. Os bolivianos disseram que o decreto que estava para sair teria um caráter radical e nacionalista. Gabrielli respondeu que o governo boliviano teria de respeitar os contratos. Soliz Rada disse então que não aceitaria mais vender o gás por US$ 3,6 por milhão/BTU, valor baixo para mercado internacional. Mas o gás é uma commodity diferente, o transporte é caro demais e exige usinas para transformá-lo em líquido, depois em gás. O Brasil hoje paga mais que a Argentina. Os termos do contrato são muito rigorosos; o Brasil paga compre ou não. Os bolivianos vão usar a atual radicalização para exigir um preço muito mais alto. O Brasil, ao construir o gasoduto, deu à Bolívia a chance de ter mercado para o seu produto. A Petrobras, ao investir pesadamente no país, conseguiu quadruplicar o tamanho das reservas de gás lá. O governo brasileiro achava que, por isso, seria bem tratado.
A ocupação populista e espalhafatosa dos campos de gás e das refinarias controlados por empresas estrangeiras, feita ontem por Morales, cria uma série de problemas para o Brasil. O primeiro é a perda de ativos da Petrobras; o segundo, a insegurança sobre o fornecimento de gás; o terceiro, a incerteza sobre o futuro do gás na nossa matriz energética; o quarto, o aumento da tensão política na região.
Foram vários os erros do governo e da Petrobras no trato da questão boliviana.
Para começar: a política externa do trio de chanceleres Marco Aurélio Garcia-Celso Amorim-Samuel Pinheiro Guimarães mostrou-se absolutamente errada. Há duas semanas, Samuel Pinheiro Guimarães passou dias na Bolívia tentando negociar uma forma amistosa de resolver o assunto e deu no que deu. O erro dos diplomatas brasileiros é elementar: eles “compreendem” o outro lado; justificam a posição alheia, em vez de defender os interesses do Brasil. O Itamaraty se deixou enganar pela conversa de Evo Morales e acreditou na miragem de que seríamos tratados diferentemente até ser tarde demais para uma ação preventiva.
Segundo: ouvi do presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, que não havia a menor possibilidade de acontecer o que aconteceu ontem. Ele achava que a Petrobras estava protegida pelo seu tamanho e pela importância do mercado brasileiro. Ela controla 50% da produção de gás e 100% do refino. Gabrielli está convencido de que, se os técnicos brasileiros saírem, os bolivianos não saberão operar a refinaria. Está convencido de que, se o Brasil parar de comprar gás da Bolívia, ela não terá para quem vender. É verdade, mas não podemos hoje ficar sem os 27 milhões de metros cúbicos que compramos da Bolívia. Isso é 50% do que o Brasil consome; 75% do consumo de São Paulo e 100% do consumido no Sul. A intenção era dobrar as compras do gás da Bolívia até 2010 e, para isso, a Petrobras estava aumentando seus investimentos lá. Um dos argumentos de Gabrielli para garantir que nada aconteceria era que “a Petrobras tem com a Bolívia contratos até 2019”. Ontem o que se viu foi o país vizinho rasgando os contratos e dando a todas as empresas seis meses para aceitar as novas condições ou saírem do país.
O nome que está sendo usado é impróprio. Nacionalização é um termo fraco em português. O decreto de ontem fala que 82% das receitas de todos os empreendimentos de gás e de petróleo serão do Estado boliviano; 18% serão da empresa que estiver operando. Em bom português, o nome disso é expropriação e estatização.
Gabrielli disse que o decreto é impreciso e que vai entrar em contato com o governo boliviano para saber o que ele quer dizer em vários pontos do documento. Ou seja, as tropas ocupam os campos e as refinarias e a Petrobras ainda não entendeu o que se passa. Os sinais de que o caminho escolhido era o da radicalização populista e que o Brasil seria o primeiro alvo já haviam sido dados. Mas Petrobras e governo ainda não entenderam o que isso significa.
Um dos sinais foi a interrupção brusca da negociação de um memorando de entendimento para a ampliação dos investimentos da Petrobras no país. Estava tudo pronto para assinar o acordo quando os bolivianos, sem mais nem menos, suspenderam as negociações e acusaram as empresas que atuam na Bolívia de usurpadoras. Daí para diante, o caminho estava escolhido. Mas o Brasil e sua estatal continuaram achando que os interesses brasileiros seriam poupados. É hora de o presidente Lula e o Itamaraty serem firmes e duros na defesa do interesse brasileiro.
Mirian Leitão
Um comentário:
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