Quando solicitado a expor sua expectativa em relação à administração de Evo Morales, na Bolívia, o presidente Lula, em entrevista ao correspondente da revista The Economist*, sugeriu que seu colega e amigo vai precisar aprender algumas coisas: que há um abismo entre teoria e prática, que no governo só se faz o possível e que o primeiro ano é o mais difícil. Ou seja, não dá para fazer tudo aquilo que se promete em longos anos de oposição.
É a lição da experiência pessoal de Lula, já em seu quarto ano de governo, iniciando a luta pela reeleição. Não há dúvida quanto a isso: Lula presidente é diferente dos anteriores.
Mas há coisas que ficam no fundo da alma. Como a alma estatizante, a idéia de que tudo se soluciona pelo Estado. Na entrevista, Lula aceita, na teoria, o argumento do jornalista sobre a necessidade de conter o gasto público. Logo em seguida, porém, exalta realizações e fala de planos que se baseiam justamente no contrário, na expansão do gasto público e no aumento do tamanho do Estado.
Comete aí um grande equívoco. Quando o jornalista pergunta se suas políticas sociais, inclusive o aumento do salário mínimo, são compatíveis com uma redução da carga tributária, Lula diz: "Em três anos, não aumentamos um único imposto."
Errado.
O governo introduziu a cobrança das contribuições ao Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) nas importações, o que, aliás, deu forte ganho de arrecadação. Aumentou a Contribuição Social sobre o Lucro das empresas inscritas no sistema de lucro presumido. Elevou as alíquotas do PIS e da Cofins, no processo de passar da cobrança em cascata para uma só vez. Era para ser neutro, mas as novas alíquotas representaram, sim, um aumento de taxação. Mais que isso: o governo tentou empurrar outros aumentos, aqueles da MP 232, que só caiu no Congresso por causa da forte reação contrária.
Disse Lula que a arrecadação federal aumentou porque o País cresceu e as empresas tiveram mais lucros e porque a fiscalização melhorou. É verdade. Mas também é verdade que aumentou a carga tributária, e muito. No primeiro ano da administração, a carga foi de 34,9% do produto interno bruto (PIB). Para 2006 ainda faltam dados completos, mas não será inferior a 37,5%, não sendo surpresa se bater nos 38% do PIB.
Tanto houve ganhos de arrecadação que o governo pôde lançar as MPs do Bem, com redução de impostos para setores selecionados. Devolveu para alguns o que cobrou a mais de outros, além de lançar programas com aumento de gastos públicos.
Lá pelas tantas, Lula sugere que se pode pensar até em retirar o Estado de certas áreas. Quando, porém, o correspondente da The Economist pede exemplos, o presidente muda a conversa.
Diz que o Estado já se retirou de muitas atividades no Brasil e que o governo aqui deve ser "grande o necessário". Logo em seguida sugere que no futuro o Estado brasileiro poderá ser do tamanho do verificado na Inglaterra, na Alemanha ou nos Estados Unidos - o que é um comentário totalmente equivocado. O Estado é enorme nos dois países europeus citados, maior do que no Brasil, e muito menor nos EUA. Trata-se, na Europa e nos EUA, de concepções completamente diferentes quanto às funções do governo.
Fica claro, de todo modo, que, para Lula, na América do Sul, os governos têm necessariamente um papel ampliado. Sugere que isso ocorre porque a iniciativa privada não faz sua parte.
A propósito, o presidente diz que as Parcerias Público-Privadas (PPPs) - das quais se dizia serem "a salvação da humanidade", conforme a observação irônica de Lula - não geraram nem um projeto até agora. E não há projeto porque "está todo mundo esperando que o governo faça", arrematou Lula.
Equívocos de novo. Foi o governo que se atrasou enormemente na montagem do sistema das PPPs, entre outras coisas por causa de disputas internas com a ala esquerda que não apreciava a colaboração do capital privado.
Do mesmo modo, não houve investimentos privados em rodovias porque o governo levou mais de três anos para montar e lançar o seu sistema de concessões - que não difere em nada de modelos amplamente conhecidos.
Na conversa sobre o funcionalismo público, quando colocado diante da observação de que se nomeia muita gente sem concurso no Brasil, Lula concorda que isso está errado e que é preciso reforçar o sistema de carreiras públicas. Imediatamente passa a defender as contratações de médicos e professores para ampliar o serviço público destinado aos mais pobres.
O jornalista sugere que a questão não é só de dinheiro e funcionário, mas principalmente de eficiência. Pergunta, então, se Lula concorda com reformas educacionais que, por exemplo, atribuam ao diretor das escolas o direito de contratar e demitir professores e de pagar salários diferentes, conforme a performance.
Lula diz que é isso que está tentando fazer com a reforma que vai conceder autonomia às universidades federais - o que é outro equívoco. Em toda a área educacional, os projetos do governo Lula passam longe da meritocracia. A única autonomia prevista para as universidades é a de poderem elevar salários iguais para todos, mandando a conta para o Tesouro.
E, quanto ao funcionalismo, é evidente que faltam médicos e professores, mas é igualmente evidente que o sistema funciona abaixo de sua capacidade. Com gerência de qualidade e práticas do setor privado, as universidades públicas poderiam atender, com o mesmo dinheiro, muito mais alunos.
Mas isso nem passa pela cabeça do governo Lula. Ao contrário, o presidente exalta a criação de muitas universidade federais, que até podem ser necessárias, mas não são prioridade. Não antes de reformar as atuais.
Na economia, e para não perder o hábito, Lula diz que "nunca na história econômica do Brasil, nunca, tivemos os fundamentos sólidos" de hoje. Atribui tudo a seu governo, sem fazer uma única menção ao fato de que o mundo todo está crescendo no mesmo embalo e até mais que o Brasil.
Finalmente, quando a The Economist pergunta sobre comparações com o governo FHC, Lula responde: "Não estou interessado em comparações com qualquer outro governo." Mas é o que faz o tempo todo - ele e seu partido.
*A entrevista à revista inglesa, que prepara a viagem do presidente a Londres nesta semana, pode ser lida em www.economist.com/lula
*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. Home page: www.sardenberg.com.br
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