26.3.06

Incontrolável, tráfico cria vale-droga

No Rio, traficantes dão, a cada dez porções de maconha ou cocaína, a 11ª de brinde

Com a concorrência cada vez mais acirrada, traficantes do Rio de Janeiro passaram a adotar, nos últimos meses, um esquema de venda de drogas com promoções semelhantes às de pizzarias: a cada dez papelotes de cocaína ou cigarros de maconha comprados diretamente na boca-de-fumo, ganha-se o 11º.
Essa espécie de brinde em troca da fidelidade do cliente foi implantada pela facção criminosa Comando Vermelho, o CV. Na hora da compra, o usuário recebe cupons -papéis carimbados que geralmente trazem a inscrição "CV", o nome do lugar onde a droga foi comprada, o tipo e o valor pago por ela. A promoção do vale-droga é, por enquanto, restrita às pessoas que são conhecidas dos traficantes.
A "promoção" não tem data para ocorrer -depende da disponibilidade das drogas nas bocas-de-fumo e do prazo dado pelos fornecedores para a sua quitação. E o esquema cresceu justamente no período em que o Exército ocupou as favelas após o roubo de 11 armas de um quartel. O armamento só foi devolvido após um acordo dos militares com criminosos líderes do CV.
O vale-droga, segundo traficantes de Manguinhos, Vigário Geral e do Complexo do Turano, na zona norte do Rio, é uma maneira de fazer o dinheiro girar rápido. Muitas vezes, grande quantidade de droga fica acumulada nos morros e os prazos para pagar os "matutos" (fornecedores, normalmente intermediários paulistas que fazem a negociação entre os produtores e os traficantes cariocas) estão apertados demais.
Ao contrário do que se imagina, hoje, nos morros cariocas, o crack é muito negociado nas bocas-de-fumo. A droga, assim como a maconha e a cocaína, é fornecida por traficantes de São Paulo. Mas o crack não entra na promoção da 11ª dose grátis. "Não dá para fazer isso porque esses caras [usuários de crack] são totalmente descontrolados. Iam causar problemas. Tentariam até falsificar cupons", diz um traficante do Turano.
"O que muita gente não consegue ver é que isso aqui [o tráfico] é uma empresa como outra qualquer, que busca lucro, "money", dinheiro. Não tem só monstro aqui, não. Isso é o ganha-pão de muita gente. Quem está aqui quer as mesmas coisas que as pessoas que trabalham nas grandes empresas, por isso sabemos como tratar nossos clientes", continua o mesmo "linha de frente" (chefe) do Turano, enquanto, ao seu lado, um garoto de 11 anos está desfalecido pelo uso do "loló" (droga à base de clorofórmio).
"As bocas que fazem a promoção são as que têm clientes mais fiéis. A troca acontece na base da confiança. Eu só compro lá no Turano, onde os meninos do movimento sabem que uso só maconha", diz um universitário, de 23 anos, que cursa jornalismo à noite na Estácio de Sá, localizada na base do Complexo do Turano.
É a mesma universidade onde, em 2003, Luciana Gonçalves de Novaes, então com 19 anos, ficou tetraplégica após tomar um tiro que teria sido disparado por um traficante do Turano.
No início da madrugada da última quarta-feira, dia 22, traficantes de uma das cinco bocas-de-fumo do Complexo do Turano resolveram inovar na promoção: passaram a oferecer, junto com as porções de maconha, um pedaço de papel de seda -que é vendido legalmente para usuários de cigarro de palha. Cada folha, segundo o subgerente do tráfico no Turano, custa, em média, R$ 0,25. Foram compradas pelo próprio traficante para o seu uso pessoal.
"Daqui uns dias, vamos fornecer a maconha já em forma de baseado, enrolada na seda. Se bobear, até em maços, como é o cigarro", disse, sorrindo, o subgerente do tráfico no Turano.
A decisão de fornecer o papel de seda na trouxinha da maconha foi tomada após a namorada dele reclamar de que não era muito fácil obter um "papel de qualidade" para enrolar a droga.

No Complexo do Turano, trabalho do tráfico conta com 20 pessoas, das quais sete têm menos de 18 anos
Didico, 12, é um dos "braços" da boca-de-fumo


Enquanto embala parte dos dez quilos de maconha recém-chegados a uma das cinco bocas-de-fumo do Complexo do Turano, no Rio Comprido (zona norte do Rio), o menino de 12 anos, chamado nos becos do lugar de Didico e entorpecido pelo uso de "loló" (droga à base de clorofórmio), canta um funk: "Não tem vergonha. Só quem fuma maconha. Tá ligado, maconheiro! Vou dizer no sapatinho: Maconheiro de verdade só fuma a do boldinho". É madrugada alta de quarta, dia 22.
A "boldinho" citada por Didico é a maconha vendida no Turano. Uma droga de efeitos mais fortes, segundo traficantes e usuários. Há, inclusive, uma página na internet em que os usuários exaltam as "qualidades" da droga.
Em resposta ao funk declamado por Didico, que cospe no chão o tempo todo, um outro garoto, perto dos 17 anos e não menos drogado, emenda: "Pá-Pum. Tipo Colômbia. Pá-Pum. Tipo Colômbia. Tipo, tipo, tipo Colômbia."
A cadência do proibidão (funk de apologia ao crime) dita o ritmo dos movimentos da "endolação" (preparo) da droga, colocada em pequenos sacos plásticos vermelhos -afinal, o Turano é uma das áreas do Comando Vermelho, a facção mais antiga do Rio, criada a partir da união de presos políticos e criminosos comuns, no extinto presídio da Ilha Grande.
Outros sete rapazes ajudam Didico a embalar a droga. Todos estão alucinados pelo uso do loló e, no meio da escadaria de acesso à parte alta do Turano, ficam em círculo em volta do papelão onde a maconha está picotada. Autodenominados "braços", eles são observados pelo "dono do morro", um homem de 35 anos -cinco deles preso. Ele é traficante há mais de dez anos e quer acessar a internet um dia. "Não nasci com um fuzil no cordão umbilical."
Quando soube que a maconha de sua boca-de-fumo é famosa na internet, o chefe do tráfico no Turano sorriu. Foi a única vez em que isso ocorreu durante as quase sete horas em que a reportagem esteve no morro, guardado por jovens com fuzis e pistolas, cuja função é ficar na "contenção" (impedir a entrada de policiais e de criminosos de outras facções).
Ao mesmo tempo em que os meninos embalam a maconha, outro homem, o subgerente do tráfico no Turano, é agarrado por uma moça com roupas insinuantes -sandália alta, calça jeans apertada e blusinha curta. "Só love", diz ele. Entre um beijo e um agarrão no subgerente, a moça, ao lado de duas amigas, dá tragadas fortes num cigarro de maconha.
Enquanto o subgerente namora, a noite segue agitada no Turano. O dono do morro tem um problema sério a resolver: sem sua autorização, cinco meninos do tráfico local roubaram, à tarde, um carro. Nervoso, ele quer saber quem são os autores do roubo.
O sonho de consumo dos jovens das bocas-de-fumo é o Toyota Corolla -"um carrão nervosão, grandão, potente", justificam os meninos. Eles roubam o carro, dão voltas nas favelas e, depois de algum tempo, os abandonam, assim como fazem com motocicletas, muito usadas para impressionar as meninas dos morros nos bailes funks, sempre aos sábados.
Depois de delatado por um dos meninos que usavam loló, o mais velho do grupo de jovens ladrões é chamado. "Quem deu ordem para vocês roubarem o carro lá embaixo hoje?", questiona o traficante. O jovem, armado com uma pistola na cintura, gagueja e responde: "Foi o senhor!"
"Eu não autorizei nada", diz, exaltado, o líder. "Sei bem porque você está roubando lá na pista [fora do morro], é porque você está usando muita droga das cargas [carregamentos de droga que, em média, têm cem papelotes ou trouxinhas] que deixei com você. Vou te suspender da boca agora", continua o traficante, pai de um menino que vive bem longe do Turano e do tráfico. Ele diz que permite o uso de drogas entre os jovens que trabalham na sua boca-de-fumo "para mantê-los por perto e para que eles não se aliem com traficantes de outras facções". "Tenho de mantê-los por perto", alega o traficante, usuário da mesma maconha que vende.
Enquanto "desenrola" (resolve) a suspensão do seu "soldado", o traficante é saudado pelos moradores do Turano que voltam do trabalho. Alguns, como um senhor que subia esbaforido a escadaria do morro, dão o alerta de que dois carros da PM estão em uma rua na base do muro: "Eles estão em quatro, divididos em dois carros. É bom ficar esperto."
"Viu só, se os moradores não gostassem da gente, eles não avisariam que a polícia está perto. Ninguém quer violência aqui", fala à reportagem o "linha de frente" do morro, que usa tênis Nike "doze molas", grossas correntes de ouro no pescoço. O líder tem vários mandados de prisão por tráfico e formação de quadrilha expedidos contra ele - o que o obriga a ficar permanentemente na "micronação" que é o morro.
"E eu posso dizer uma coisa pra você: neste ano, político não sobe o Turano para fazer campanha, para mentir para o povo. Se quiser subir, vai ter de deixar um malote [dinheiro] na boca. Eles vêm aqui, fazem promessas e nunca voltam para cumprir. Gostaria que isso [não autorizar a entrada de candidatos] fosse geral em todas os morros do Comando [Vermelho]", diz o traficante, também autor de alguns homicídios. Questionado sobre quantas mortes causou, ele, que abandonou a escola na 7ª série, respondeu "algumas", sem dar detalhes.
A essa altura, Didico está feliz, "comeu um lanche três carnes", do Bob's, levado por um motorista que serve à boca-de-fumo e que também ofereceu, em uma nota de R$ 1,00, um papelote de cocaína, de R$ 7,00, para que o garoto cheirasse com ele.
Tudo ocorre enquanto o chefe do tráfico conta maços de dinheiro -as bocas do Turano faturam, em média, R$ 1.000 por dia, com o trabalho de 20 pessoas -sendo sete com menos de 18 anos. "Mas a gente tem de pagar o arrego [propina] aos samangos [policiais] toda semana. Só aí são R$ 2.300", afirma ele, que diz ser "temente a Deus" e que, "só às vezes", tem vergonha de vender drogas.
Folha