Depois do helicóptero oficial da Presidência, uma van em Ipanema
Ciça Guedes para O Globo
José Dirceu deixou o cargo de chefe da Casa Civil e seu gabinete no Palácio do Planalto afirmando que iria se defender na planície, na Câmara dos Deputados. Após a cassação de seu mandato, arranjou parada mais agradável ao nível do mar: instalou-se no apartamento do escritor Fernando Morais, a 20 passos das areias de Ipanema, para juntos escreverem o livro que, dizem eles, contará a história dos 30 meses de Dirceu à frente da Casa Civil. Em pouco mais de uma semana, o ex-ministro se tornou personagem lendário da cidade: caminhadas pelo calçadão, almoço de domingo no apartamento do ministro Gilberto Gil, jantares em restaurantes badalados e a ida ao show de Wagner Tiso no Teatro Municipal fizeram do ex-homem forte do governo Lula assunto nas rodas de conversa.
E assunto polêmico. Durante um jantar no restaurante Garcia e Rodrigues, no Leblon, no último dia 8, quando ele chegou ao Rio, alguns comensais o vaiaram. Depois, numa caminhada pelo calçadão da praia, alguém teria gritado “corrupto!”. Foi o suficiente para que o tema fosse debatido ao longo da semana.
— O deputado cassado? Ah, ele costuma andar por aqui, sim. Mas parece que levou uma baita vaia e teve que se esconder num restaurante... E hoje não veio — dizia um funcionário do Quiosque do Miltão, na Praia de Ipanema, na quarta-feira, contando o conto aumentado de muitos pontos, na onda da visita de um personagem polêmico da política nacional a seus colegas de trabalho. Mesmo admitindo jamais ter visto Dirceu, o funcionário do quiosque garantia que o ex-ministro tinha enfrentado o maior constrangimento porque “um pessoal contou”.
Na terça-feira Dirceu tinha voado para Belo Horizonte, para conversar com o ex-presidente Itamar Franco, como noticiou Ancelmo Gois no GLOBO, e na quarta trancou-se com Morais para trabalhar no livro. Só saiu à noite para jantar na casa da colunista Hildegard Angel. Dias antes, havia visitado o ator José de Abreu, de repouso por causa de um acidente, que o apoiou no processo de cassação.
— Eu ainda não o vi, mas a minha vizinha já. Ela é idosa, usa bengala, disse que iria atrás dele dar umas bengaladas também — conta Hertz Viana Lima, dono de um quiosque perto do Posto 9.
Cumprimento de atriz e indignação no botequim
Na comemoração dos 60 anos de Wagner Tiso, dia 10 no Municipal, a presença de Dirceu quase roubou a cena, num show que teve Milton Nascimento, Gal Costa, Paulo Moura e Cauby Peixoto, entre outros. Postado num camarote, ao lado de Ana de Holanda, Antônio Grassi e Manuela Pinho, fazia o tititi correr mais veloz por frisas, balcões, platéia e galerias quando se punha em pé, nos intervalos.
— As pessoas comentavam ‘é o Dirceu, ele veio’. Foi o assunto da noite. Ele estava muito à vontade no camarote, não parecia constrangido. Eu não vi, mas algumas pessoas me contaram que, na hora que ele chegou, do lado de fora teve vaia — conta a assessora de um deputado carioca, que pediu “pelo amor de Deus” para não ser identificada. Será que a figura de Dirceu, que provocava “os mais baixos instintos” do ex-deputado Roberto Jefferson, ainda inspira medo, mesmo sem a aura de todo-poderoso que ostentou no Planalto?
— Medo eu não diria, mas sim respeito pela história dele e pela importância que ele teve para a nossa história. É triste que essas manifestações aconteçam — diz a assessora.
A amiga e ex-assessora de Relações Públicas do Palácio do Planalto Evanise Santos, que acompanhou o ex-chefe em alguns programas na cidade, afirma que todos foram muito gentis com Dirceu e que num almoço na churrascaria Mariu’s, antes do show de Tiso, a atriz Fernanda Montenegro disse, ao cumprimentá-lo: “Você é um leão”. Mas anteontem um casal de idosos teria se retirado do Jobi, indignado com a presença de Dirceu e seus amigos no botequim do Leblon.
— O carioca é irreverente, às vezes alguém faz uma brincadeira, mas vaia contra ele não teve, não — diz Evanise.
O ex-ministro e seu livro foram assunto também na área editorial. O boato que correu na semana passada, segundo o diretor de uma grande editora do Rio, dava conta que a Planeta — a gigante espanhola que, assim como uma editora carioca, está em negociação com Dirceu e Morais — havia desistido de publicar o livro porque não estaria interessada em confusão com o governo.
— Isso não é verdade. Estamos em negociação com a Planeta, sim, e com outra do Rio, mas ainda não há nada decidido — afirmou Morais.
— O que se diz no mercado é que esse livro é difícil. Se tiver algumas boas revelações, elas serão usadas para divulgá-lo, vão acabar na imprensa, e aí quem se interessará em comprá-lo? — afirma o diretor editorial, dizendo que a sua editora está fora da disputa.
“Sou cumprimentado, me pedem até autógrafo”
Dirceu nega que tenha sido vaiado. Calça escura, mocassim marrom sem meia — um clássico de paulista em férias no Rio — e camisa pólo com cara de recém-saída da mala, o ex-ministro se recusou educadamente a dar entrevista. Respondeu apenas a algumas perguntas enquanto tentava conseguir um táxi na Avenida Vieira Souto, no fim da tarde de quinta-feira, acompanhado de Fernando Morais e de um amigo.
— Estou no Rio só me divertindo, quer dizer, me divertindo e trabalhando duro, não estou dando entrevistas — disse ele, com aquele sotaque estranho que mistura um certo acento italianado do paulistano com o erre muito carregado do norte do Paraná, onde ele viveu clandestinamente, sob a identidade de Carlos, um comerciante, nos tempos da ditadura. — É incrível, vou a restaurantes, ando pela rua, pelo calçadão, sou cumprimentado, me pedem até autógrafo, mas o que dizem é que fui vaiado. Não fui — disse.
Visivelmente incomodado com o fotógrafo e com o pequeno tumulto que já se formava no calçadão, Dirceu faz sinal para um táxi, que não pára porque estava ocupado. O motorista de uma van enxerga a oportunidade de ganhar três passageiros e logo encosta, mas é dispensado. Impossível não comparar a cena àquela famosa foto de Dirceu, no auge do poder, em 2003, de óculos escuros dentro de um helicóptero.
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