4.4.06

Perdido por um, culpado por mil

À moda de Delúbio, Palocci vai sendo posto sozinho na berlinda como réu

Dentro do jogo de simulações e impressões em que o governo Luiz Inácio da Silva vem se especializando desde sua estréia como protagonista de escândalos de corrupção, o ex-ministro Antonio Palocci agora é sério candidato à condição de autor quase solitário de uma operação criminosa executada coletivamente.

Palocci vai, assim, sucedendo Delúbio Soares no posto de o réu ideal frente à premência das circunstâncias.

Em poucos dias, a situação dele se inverteu: de inocente absoluto, protegido por todos os meios e modos, tornou-se a origem, o meio e o fim do episódio da quebra de sigilo bancário de Francenildo Costa.

Há uma semana ainda se buscava na burocracia alguém que pudesse assumir a responsabilidade no lugar de Palocci, a fim de preservar no cargo o ministro da Fazenda.

Demitido, às voltas com a polícia e a Justiça, Antonio Palocci vê acumularem-se sobre suas costas todas as culpas, enquanto outras vão sendo aliviadas do fardo da parceria muito claramente exposta nas últimas duas semanas.

Todos os personagens envolvidos na tentativa de anarquizar com uma testemunha e anular o efeito de uma acusação grave contra o ministro da Fazenda agora surgem em cena como paladinos da honorabilidade pública.

Isso a despeito de, desde o início do caso, terem se empenhado com afinco na consecução de um plano que, se foi arquitetado a partir do gabinete do ministro da Fazenda, teve, no mínimo, a colaboração e a conivência de outras autoridades de primeiro escalão.

A intenção é evidente: circunscrever o desastre a Palocci, deixar que o episódio se esvazie a partir daí, dar por resolvida a questão e evitar que as conseqüências atinjam outros setores do governo e até o presidente Lula.

Junto com a confirmação de que Palocci mandou o presidente da Caixa Econômica Federal quebrar o sigilo da conta do caseiro, divulga-se que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e dois assessores teriam resistido a participar da ilegalidade e até orientado a Polícia Federal a investigar o ministro.

Se ocorreu assim, tiveram comportamento digno, resistiram calados. Embora em silêncio parcial.

A reprovação do ministro da Justiça e as ações da polícia no sentido de preservar os instrumentos de Estado do abuso pretendido (e levado a termo) pelo colega da Fazenda foram mantidos em sigilo, mas a existência de uma investigação da PF tendo o caseiro como alvo foi amplamente divulgada.

Só se soube das "atitudes republicanas" depois de o presidente da Caixa, Jorge Mattoso, ser obrigado a confessar que entregara o extrato do caseiro diretamente a Palocci.

Do dia 16 de março até o início de abril nem o ministro da Justiça nem seus assessores disseram coisa alguma que pudesse incriminar ou levantar suspeitas sobre Palocci. Muito antes pelo contrário.

Thomaz Bastos, a despeito do conhecimento e acompanhamento estreito dos fatos, deixou para se pronunciar sobre a ilegalidade da quebra de sigilo 48 horas depois de as contas de Francenildo terem se tornado públicas e repercutido muito mal para o governo.

Dias antes havia rejeitado com veemência a possibilidade de a PF investigar a denúncia do caseiro.

O presidente da Caixa - que nas versões mais recentes é descrito como funcionário quase exemplar pois teria se negado a ampliar quebra do sigilo aos últimos meses de 2005 - pediu 15 dias para a CEF apurar as ocorrências em sindicância interna. Isto, tendo sido ele o mensageiro do extrato a Palocci.

Quanto ao presidente da República, cabe o benefício da dúvida: pode ser que desconhecesse os estratagemas de defesa. Mas, para que seja verídica a possibilidade é preciso também que seus dois ministros, da Fazenda e da Justiça, escondessem dele os assuntos discutidos naqueles dias.

Palocci e Thomaz Bastos, a ser verossímil a versão corrente, esconderam de Lula que discordavam sobre o método de ação para defender o titular da pasta da Fazenda e, quando falavam com o presidente, mantinham-no desinformado.

E ele, o presidente, dava-se não só por satisfeito, estava convencido da inocência de Palocci a quem conhece há anos e sequer desconfiava de movimentos erráticos ocorridos muito perto dele.

Lula defendeu o ministro da Fazenda, mostrou-se despreocupado quanto às acusações e nem uma só palavra de reparo impôs ao fato de um cidadão ter seu sigilo violado dentro da Caixa Econômica Federal.

Durante muitos dias, Palocci despachou no Palácio do Planalto. Ficou ali lado a lado com o presidente da República, enquanto era alvo de suspeita por parte do ministro da Justiça, cujos assessores haviam sabido da trama da quebra do sigilo, sem que a Lula nenhum fato fosse dado a conhecer e coisa alguma ao presidente ocorresse perguntar.

A demissão de Palocci não resolveu nem esclareceu esse episódio em tudo e por tudo escabroso. Nele, há abundância de meias-verdades e ausência de respeito ao cidadão que é obrigado a votar, mas não tem reconhecido seu direito de saber o que fazem no governo seus governantes.
Dora Kramer