Todos têm direito às suas próprias opiniões, diz um aforismo americano, mas não aos seus próprios fatos. E os fatos que dizem respeito ao ex-ministro e deputado cassado José Dirceu deveriam induzi-lo a morder a língua antes de emitir opiniões delirantes como a que manifestou quarta-feira durante seminário sobre mídia e política, na Universidade Federal do Rio de Janeiro: "Só no período da Oban, do DOI-Codi" - alusão aos mais infames porões da repressão do regime militar brasileiro - "a imprensa brasileira desceu tanto como está descendo neste momento da vida política nacional."
O problema de Dirceu é que a imprensa e as instituições do Estado - PF e MP -, com todos os seus tropeços e limitações, desceram aos porões da corrupção - no governo Lula e onde mais medrar essa praga aparentemente inerradicável da política brasileira. E, ao fazê-lo, escancararam a degradação ética do antigo combatente da ditadura. Exilado em Cuba, Dirceu aprendeu o que jamais viria a esquecer: que a imprensa e as instituições devem ser livres - mas apenas para servir ao regime revolucionário, encarnado, naturalmente, na pessoa do seu líder máximo.
Aprendeu também com o compañero Fidel que o dissenso, a crítica, a denúncia devem ser aplastados com mão de ferro por serem invariavelmente expressões de um complô da reação contra o governo comprometido com a redenção social, ou assim convém apresentá-los. É fácil imaginar o grau de frustração de quem é obrigado, como Dirceu, a viver sob um sistema político em que os opositores não podem ser simplesmente silenciados - ou "neutralizados", conforme o eufemismo de todos os totalitarismos. À falta disso, a melhor alternativa é se passar por vítima e desqualificar os fatos e os que os colocam ao alcance do público.
Só que o truque tem prazo de validade - que, no caso de Dirceu, expirou no dia 11, quando o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, divulgou o seu primeiro relatório sobre o mensalão - a "sofisticada operação criminosa" lançada para "garantir a permanência do Partido dos Trabalhadores no poder". No documento, Dirceu é identificado como o "chefe do organograma delituoso" e o "principal articulador dessa engrenagem, garantindo-lhe a habitualidade e o sucesso". O procurador o denunciou por formação de quadrilha, peculato e corrupção ativa.
Não podendo dizer do procurador-geral o que gostaria, Dirceu descarrega sua fúria sobre a "parcela do Ministério Público de São Paulo" que se recusa a pôr uma pá de cal sobre o assassínio do prefeito Celso Daniel, acha que todas as pistas devem ser seguidas e quer ouvir o ex-ministro sobre o esquema de corrupção que está por trás do crime, segundo indícios indesmentíveis. A parte da mídia nessa história consistiria em ter ajudado a reabrir o caso, como um meio a mais para deixar mal o presidente.
Admita-se, apenas para raciocinar, que a incriminação de Dirceu não inocenta necessariamente a mídia. Ou seja, deixe-se de lado a sua completa falta de autoridade moral para invectivar a mesma imprensa que em dias melhores para ele o reverenciava como o primeiro-ministro de Lula e corria sofregamente atrás de suas palavras. Examine-se como age a imprensa contrária à reeleição do presidente. Para começar, vai fundo na denúncia do alegado uso político dos gastos publicitários da Caixa Econômica de São Paulo, a Nossa Caixa, entre outras irregularidades, por interferência ou em sintonia com o Palácio dos Bandeirantes ocupado pelo tucano Geraldo Alckmin.
Tem mais. Além de noticiar, também com destaque, a movimentação eleitoral do ex-governador e seus arrufos com o PFL, expõe a ficha barrenta das firmas que doaram algo como R$ 600 mil à pré-candidatura do fluminense Anthony Garotinho, do PMDB, e o repasse de R$ 112 milhões do governo do Rio chefiado por sua mulher, Rosinha Matheus, a três doadores do marido. Ora, tudo que possa prejudicá-lo é boa notícia para Lula e má notícia para Alckmin. O presidente joga as fichas que tem e que não tem contra a candidatura Garotinho - ou a de qualquer outro peemedebista. Já o tucano precisa do PMDB na disputa para afastar o risco de que tudo termine no primeiro turno.
A imprensa, como se vê, não desce a parte alguma - a não ser aos meandros da corrupção. É isso que o "chefe do organograma delituoso" Dirceu tem motivos de sobra para não suportar
Estadão
Um comentário:
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