Dos 27 remédios usados por pacientes com Aids para tratar infecções oportunistas, só nove podem ser encontrados no estoque dos hospitais públicos do Rio. Os outros 18 medicamentos estão em falta desde o fim do ano passado. Os doentes são privados, por exemplo, de antibióticos, fungicidas e imunoglobulina humana. No Gaffrée e Guinle, quatro pessoas morreram por falta de antibióticos desde dezembro.
— Pacientes com Aids ficam debilitados e são alvo freqüente de infecções oportunistas, que matam. Não ter remédios para combatê-las é tão grave quanto não fornecer o coquetel anti-retroviral — afirma o infectologista da UFRJ Edmílson Migovski. — Está em falta até um remédio usado em crianças com HIV para evitar que elas tenham pneumonia grave.
Segundo o presidente do Grupo Pela Vida, William Amaral, a falta de remédios afeta também outros hospitais universitários:
— O Brasil tem o melhor programa de Aids do mundo, mas isso não adianta no Rio, que tem o pior sistema de saúde pública do país. Distribuir remédio para quem tem Aids não dá voto, são poucos os portadores do HIV. É melhor vender medicamento a R$ 1.
A Secretaria estadual de Saúde admitiu ontem a falta de remédios e disse que espera regularizar a situação até a semana que vem. Segundo o órgão, há laboratórios que vencem licitações mas não entregam remédios e outros que cobram preços exorbitantes.
Gaffrée e Guinle sucateado
A crise enfrentada pelo Hospital Gaffrée e Guinle, referência no tratamento de Aids, vai além da falta de equipamentos e remédios. O prédio, construído em 1929, tem problemas de infra-estrutura que põem em risco o tratamento dos pacientes. As 400 crianças portadoras do HIV assistidas pela unidade, por exemplo, são medicadas numa sala com paredes repletas de mofo. Pacientes que, por carência da unidade, são obrigados a fazer exames em outros hospitais enfrentam a falta de ambulâncias para a transferência. Segundo os médicos, há 15 dias um paciente morreu porque o aparelho de raios- X que poderia diagnosticar sua doença demorou 20 horas para chegar às mãos da equipe. Outros quatro morreram nos últimos três meses por falta de antibióticos, como revelou O GLOBO ontem.
— O último óbito, há 15 dias, foi de um paciente transferido para fazer radiografia no Hospital do Andaraí, às 16h. Mas o resultado só chegou às 11h do dia seguinte. Ele acabou morrendo por falta de diagnóstico — contou o médico Fernando Ferry, professor-adjunto da clínica médica.
Ambulância não tem sequer gasolina
Na pequena sala de crianças e adolescentes portadoras de HIV, duas meninas, de 12 e 14 anos, dividiam ontem o espaço, onde, além de enfrentarem a dor do tratamento, tentavam conviver com o cheiro de mofo e a umidade.
— Sou alérgica. Quando entro aqui começo logo a espirrar — comentou uma das jovens.
Há uma semana, o aposentado Júlio de Matos, de 64 anos, aguardou quatro horas por uma ambulância para retornar ao hospital após fazer um cateterismo em outra unidade:
— Só havia duas ambulâncias naquele dia: uma na Zona Oeste e outra no pátio, mas sem gasolina. O paciente teve que esperar a que estava na Zona Oeste chegar porque a direção não tinha dinheiro para o combustível — contou Fernando Ferry.
Internado desde o carnaval, após um infarto, Júlio não se queixa:
— A culpa não é dos médicos. Eles são ótimos e fazem o possível para nos curar.
A enfermaria dos pacientes com Aids, no segundo pavimento, já deveria ter sido reformada, segundo o cronograma de obras da unidade apresentado pelos médicos. A obra, no entanto, ainda não começou e o que se vê no lugar é um festival de irregularidades: apenas um dos dois banheiros funciona; há vazamento na pia da enfermagem; os medicamentos estão expostos e misturados a produtos químicos. O material hospitalar é guardado em caixas de papelão e falta papel-toalha, entre outros itens.
— Para suprir a falta de papel toalha, por exemplo, a equipe enxuga as mãos nesse roupão, já totalmente infectado — mostrou o médico.
A falta de medicamentos para os pacientes internados na enfermaria de HIV, muitas vezes, é suprida pela própria família.
— Eu tive que comprar o anabolizante. Salvou a minha vida. Cheguei aqui com 42 quilos e jé estou pesando 50 graças ao medicamento — contou um dos pacientes.
Além da falta de remédios e de exames de raios-X, o hospital está sem equipamentos para exames laboratoriais, como hemograma, tomografias e ultrassonografias. Para se ter idéia, o laboratório tem capacidade para realizar 60 exames por dia, mas, nos últimos quatro meses, fez apenas 63 testes.
Os médicos denunciam, também, a falta de materiais básicos como sabonetes, anti-sépticos, coletores de fezes e urina e até água sanitária.
— E quando compram emergencialmente são medicamentos e produtos de baixa qualidade. Outro dia tivemos que devolver um lote de remédio porque não dissolvia — comentou o médico Ricardo Carvalho.
Médico entrega denúncia ao MP
O Ministério Público federal recebeu ontem uma denúncia dos médicos do Gaffrée e Guinle sobre a crise. O professor Carlos Alberto Morais de Sá, chefe do ambulatório de pacientes portadores de HIV, entregou à procuradora Lisiane Braecher o pedido de 16 médicos do serviço para que o atendimento seja suspenso. A procuradora deverá ouvir as justificativas da direção do hospital nos próximos dias. Ela aguarda o fim de uma sindicância do Departamento Nacional de Auditoria do SUS na unidade.
A direção do hospital informou ontem que, dos 400 tipos de remédios existentes na farmácia da unidade, faltam apenas alguns antibióticos. A diretora Elizabeth Vasserman, no entanto, não soube relacionar quais:
— Esse grupo de médicos é desumano. Estamos fazendo um esforço além do normal para melhorar. E já melhoramos quase 100% dos problemas, que não são tão problemas assim — alegou ela.
Sobre os cinco pacientes que teriam morrido nos últimos três meses por falta de medicamentos, a diretora disse que não foi informada:
— É uma situação gravíssima, mas que não chegou à direção. Tratamos de pacientes graves e é natural que mortes aconteçam. Não foi por falta de medicamentos porque todas as solicitações são atendidas.
Quanto ao problema no setor de raios-X, ela disse que vem sendo resolvido por meio de um convênio com o Hospital do Andaraí. A falta de ambulâncias para a transferência não foi levada em consideração:
- Temos quatro ambulâncias, mas apenas uma está funcionando.
Os médicos também se queixam dos baixos repasses do Sistema Único de Saúde (SUS). O gasto com a compra de testes anti-HIV, por exemplo, é de R$ 7 mil mensais, mas o SUS só repassa R$ 4 mil. Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que os repasses são feitos com regularidade e que no ano passado o Gaffrée e Guinle recebeu R$ 7,8 milhões para custeio de ações de alta e média complexidade. Este ano, o repasse já foi de R$ 2,2 milhões.
Um comentário:
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