Não fosse pelos autores da idéia que o presidente Lula considera "genial" e por uma ou outra voz isolada em seu favor, o chefe do governo estaria rigorosamente na situação do soldado que acha que todo o batalhão, menos ele, marcha com o passo errado. De fato, juristas, políticos e figuras públicas de todas as colorações lançaram uma torrente de críticas à hipótese de se convocar uma Assembléia Constituinte para fazer a decantada reforma do sistema político-eleitoral brasileiro. A idéia, por sinal, não tem paternidade assumida. Nas palavras de Lula, ela "saiu" em dado momento da sua conversa, na quarta-feira, com um grupo de advogados, entre eles ex-presidentes da OAB, a quem o PT, significativamente, pedira um documento para limitar os poderes das CPIs.
Nas últimas semanas, com a transparente intenção de embaralhar as denúncias de conivência com a corrupção de que será alvo no horário eleitoral a começar de hoje a 10 dias, o presidente passou a surfar na onda de proporções havaianas da desmoralização do Congresso Nacional, sobretudo entre os setores mais informados da sociedade. Para isso, fabricou e se pôs a propagar o sofisma segundo o qual somente "uma reforma política profunda" acabaria com as maracutaias que fizeram a instituição parlamentar mergulhar no descrédito. Muita gente pode acreditar nessa patranha de aparência plausível. Mas não é, em especial, o caso do lúcido deputado petista Paulo Delgado, a quem, se fosse movido pela boa-fé, o companheiro presidente se apressaria a dar ouvidos - para ouvir o que no íntimo já sabe.
"Deputado não compra deputado, nem se vende para deputado", disse ele à colunista Dora Kramer. "O caixa eletrônico está no Executivo", fulminou, apontando para a nudez do rei. Pouco importa a verdade, porém. Desde a sua reunião com os "notáveis da banca advocatícia", na cortante expressão de Delgado, Lula levou mais longe o seu sofisma. A reforma "que a sociedade precisa" (sic) e que devolveria a "respeitabilidade" à política não sairá enquanto depender "das pessoas que estão legislando em causa própria". Daí a presumida genialidade da idéia da Constituinte exclusiva para esse fim. Ela seria integrada por brasileiros sem partido, de ilibada reputação - mesmo não familiarizados com os meandros do problema que de há muito divide os melhores cientistas políticos nacionais.
Não há "reforma política profunda" que passe ao largo do pacto federativo, do sistema tributário e dos poderes do presidente. Por isso, talvez, alguns críticos detectaram indícios de chavismo na idéia que Lula abraça com fervor e que vem sendo atacada de todos os lados. A objeção de base é que assembléias constituintes só têm razão de ser em momentos de ruptura institucional, quando cai um regime e o novo precisa se legitimar. Em todas as demais circunstâncias, lembra o presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB, "sempre que se tentou substituir o Parlamento, a sociedade foi jogada na vala comum dos regimes de exceção". Ou, como observa o pefelista José Thomaz Nonô, "miniconstituinte é uma miniidéia de minipresidente, uma concepção típica de quem não entende o papel institucional dos Poderes".
A rejeição à impensada iniciativa cruzou fronteiras partidárias e ideológicas e inspirou duros comentários nos meios jurídicos. Separadamente, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso e o decano dos constitucionalistas brasileiros, o nonagenário Goffredo da Silva Telles, associaram à idéia a expressão "cheiro de golpe". Velloso ressalvou que não atribui essa intenção a Lula, mas lembrou que "todo governante com pretensões cesaristas começa convocando Constituinte" - e deu Hugo Chávez como exemplo. O ministro do STF Gilmar Mendes chamou a sugestão de "exótica". Mesmo o jurista Dalmo Dallari, eleitor de Lula e participante da reunião da qual, em má hora, saiu o despropósito, o considera absurdo, sem razão de ser e inconstitucional.
Mas ninguém superou o ex-ministro José Dirceu em matéria de contundência. "Isso é jogar areia nos olhos da sociedade", acusou. Só que Lula se deu mal. Aprendiz de feiticeiro, imaginou que fora presenteado com a descoberta da pólvora e acabou colidindo com o Congresso e a inteligência jurídica nacional. Deixou evidente, enfim, o oportunismo de usar o desencanto do eleitor com os políticos para exorcizar o espectro do mensalão e assumir uma causa pela qual jamais moveu uma palha.
Estadão
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