Um insólito trânsito de carroças puxadas por mulas congestiona o leito do Rio Quaraí, a 590 quilômetros de Porto Alegre. As águas, correndo sobre o leito pedregoso, separam a cidade brasileira de Quaraí, com 23 mil habitantes, da uruguaia Artigas, com 36 mil. As carroças enfrentam a correnteza para levar e trazer contrabando, mercadorias proibidas que podem ser apreendidas por fiscais aduaneiros na Ponte da Concórdia. São bebidas, carnes, combustível, madeira e, eventualmente, armas e drogas.
Às vezes, 4 ou 5 carroças cruzam o rio ao mesmo tempo, 100 metros abaixo do prédio da Receita Federal, à vista dos agentes e, mais raramente, de policiais dos dois países que fiscalizam o trânsito sobre a ponte. "É pura hipocrisia. Enquanto eles tiram mercadorias das sacolas de donas de casa lá em cima, aqui embaixo passa de tudo", diz Marco Aurélio Goulart, que construiu uma casa sob a ponte. Os carroceiros cobram R$ 5 de frete e fazem, juntos, mais de 100 viagens por dia. O comando da Brigada Militar de Quaraí informou que a competência, na fronteira, é da Polícia Federal. No ano passado, a Brigada apreendeu espadas uruguaias que teriam passado pelo rio.
As carroças de Quaraí expõem a vulnerabilidade da fronteira no sul do País. O Uruguai não tem fábricas de armas, mas faz poucas restrições a seu comércio e ao de munições. A facilidade para transpor a fronteira tornou o país uma rota alternativa para a entrega de encomendas do crime organizado no Brasil, segundo o major Márcio Roberto Galdino, responsável pelo patrulhamento aéreo da Brigada Militar de Uruguaiana. "Os traficantes mudam a rota sempre que há repressão. Agora, em vez de entrar por Mato Grosso do Sul, seguem pela Argentina até o Uruguai e entram pelo Rio Grande do Sul, entre Livramento e Bagé."
A fronteira sul tem 720 quilômetros, mais de 500 sem obstáculos geográficos e quase toda sem nenhuma fiscalização. O tráfico "pesado" de armas e drogas, segundo Galdino, pode entrar por terra ou pelo ar. Muitas fazendas da região têm pistas de pouso para aviões. O único radar, em Santa Maria, não pega naves em vôo baixo. A linha internacional passa dentro das fazendas e divide cidades.
Em Santana do Livramento, a 504 quilômetros de Porto Alegre, os 90.849 brasileiros têm forte convivência com os 63.365 uruguaios de Rivera. As duas cidades compõem um só núcleo urbano. No centro, a linha internacional, uma grande avenida com marcos de cimento no canteiro central, fica congestionada de veículos e pedestres dos dois países. Rivera é uma zona franca, tem cassino e recebe sacoleiros de vários Estados. Na periferia, a fronteira divide quadras urbanizadas e confunde até moradores locais. "Fica difícil saber em que país se está", diz Jonas Burim, que se desloca a cavalo pela periferia.
A poucas quadras da linha internacional, nas lojas de armas uruguaias, não faltam clientes brasileiros. "Vendemos principalmente armas de caça", diz Roberto Fernandez Silva, da Guns&Ammo. "Arma para brasileiro é proibido, munição pode-se comprar à vontade." Alerta, porém, que portar munição é crime no lado brasileiro. "Se a polícia te pega, é teu problema."
No Gaúcho Free Shop, o funcionário que se identificou como Rogério vendeu três caixas de munição calibre 12 mm e 9 mm para dois brasileiros. "Tu escondes bem que passa", recomendou a um dos compradores. O pacote foi colocado numa bolsa de couro. Os dois homens entraram num Corolla com placas de Videira (SC) e passaram para o Brasil, sem problemas.
No lado brasileiro, é fácil conseguir uma arma: um guardador de carros ofereceu-se para intermediar a compra de uma pistola 7.65, seminova e municiada por R$ 700. O delegado-chefe da PF, Luiz Eduardo Telles Pereira, diz que é difícil controlar a entrada de armas pequenas - revólveres e pistolas. "Mas estamos em cima", afirma. Na terça-feira, a PF apreendeu três espingardas calibre 22, um revólver 32 e munições no bairro Armour.
Ele se preocupa com o grande tráfico - drogas e armas pesadas. Há seis meses, um subtenente do Exército foi preso levando, num ônibus de linha, um fuzil AR-15 e um AK-47, de fabricação russa. "Nem nós podemos usar uma dessas."
"CARROS"
Foi Pereira quem ouviu, na semana passada, o comerciante Oscar Xavier de Fontoura Mulatieri, de Rivera, que teve gravadas conversas com o traficante José Roberto Tavares, acusado de abastecer quadrilhas na Grande São Paulo, e contrabandistas de armas: Alexandre Moraes da Silva, que seria responsável pela distribuição na capital paulista e Grande São Paulo, e Celso Cortez, que atenderia o litoral sul paulista e o Rio.
Desconfiados de que estavam sendo monitorados, os criminosos, segundo a PF, criaram um código no qual a arma virava modelo de carro. Pequenos "escorregões" durante as conversas deram à PF a certeza de se tratar de tráfico de armas. Ao encomendar "automóveis" Golf, BMW e Tempra 16 válvulas, Tavares se referiu a um Pálio com "pente". Em outro trecho, pergunta se o veículo tem "coronha de madeira". Chamado a depor na PF de Santana do Livramento, Mulatieri insistiu nos negócios com carros. Ele é dono de um clube de tiro em Rivera e tinha, até o início do ano, uma loja de armas.
Na terça-feira, a PF prendeu integrantes de quadrilha suspeita de fornecer drogas e armas para o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e facções criminosas do Rio. Os agentes apreenderam 16 quilos de pasta base de cocaína e 7 quilos de lidocaína. A droga teria sido encomendada pelo empresário Denílson Leseux, que foi preso. Segundo o delegado Ildo Gasparetto, da Delegacia de Combate ao Crime Organizado, o acusado faz parte de uma quadrilha que contrabandeia armas da Argentina e do Paraguai pela fronteira gaúcha. O bando abasteceria com fuzis assaltantes de carros-fortes.
SEM FISCALIZAÇÃO
O tráfico terrestre é facilitado pela ausência de fiscalização em pontos críticos, como a tríplice fronteira em Barra do Quaraí, a 720 quilômetros de Porto Alegre. A única fiscalização na ponte internacional, que liga Barra à uruguaia Bella Unión, é da Receita Federal - os dois agentes trabalham desarmados e só abordam caminhões. No lado uruguaio, os veículos que entram têm o porta-malas revistado, mas só durante o dia.
A ligação com Monte Caseros, na Argentina, é feita por balsa e a aduana só verifica cargas. O comerciante Ubirajara de Carvalho Londero diz que é intenso o contrabando de pneus, mais baratos no Uruguai, e combustíveis da Argentina. "Os fiscais uruguaios só revistam para pegar propina." O contrabando "mais grosso", segundo ele, é feito de barco - nas margens há dezenas de atracadouros improvisados. A cidade, minúscula, tem três postos de combustível, boa malha viária e nenhuma presença da polícia. "É tudo o que o traficante quer", diz Londero. Além de armas, ele conta que passam pelo rio pedras semipreciosas brasileiras, levadas "a rodo" para o Uruguai.
Em Uruguaiana, maior porto seco do País, a 650 quilômetros de Porto Alegre, o tráfego na ponte internacional é intenso e escapa de controle. A ponte sobre o Rio Uruguai liga a cidade a Paso de Los Libres, na Argentina, porta de entrada para o Mercosul. São pelo menos 500 caminhões de carga e cerca de 2.500 automóveis por dia.
A Receita vistoria as cargas por amostragem, parando apenas 5% das carretas. A polícia aduaneira argentina fiscaliza com excessivo rigor a entrada dos carros brasileiros - exige documentos originais do veículo e dos ocupantes e ainda cobra taxa de ingresso de R$ 4 por pessoa. Em Los Libres, pelo menos três lojas vendem armas de todo tipo, inclusive fuzis. O trânsito no sentido inverso, para Uruguaiana, não tem fiscalização. A cidade entrou na mira da CPI do Tráfico de Armas, que chegou a ouvir pessoas conhecidas no fim do ano passado.
Estadão
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