Pioneira em regime de cotas, universidade já registra três casos em que questão do negro virou polêmica.
Primeira instituição federal a criar o regime de cotas no vestibular, há dois anos, a Universidade de Brasília (UnB) enfrenta várias mudanças em sua rotina acadêmica e não apenas em relação à cor dos estudantes. A impressão é que a ação alternativa chegou ao poder. O ambiente universitário é tão engajado na questão racial que jornalistas que visitam a UnB em busca de informação sobre cotas recebem textos sobre a escravidão, com imagens de cativos sob açoite e as viagens dos navios negreiros. O atual reitor, Thimothy Mulholland, implantou as cotas quando era vice. Foi eleito para o cargo depois de se posicionar a favor do sistema - dentro e fora da universidade.
A discussão racial entrou na sala de aula e nas conversas entre professores. Em busca de provas de comportamento racista, alunos gravam o que os professores dizem em sala de aula - apenas um deles já reuniu mais de seis horas de fitas. "Temos de agir como o Juruna e não confiar na palavra dos brancos", afirma Gustavo Amora, estudante da pós-graduação de ciência política, referindo-se ao líder indígena que causou sensação em Brasília, gravando o tempo todo declarações de autoridades.
Alunos da UnB colecionam três episódios recentes e conhecidos de acusação racista. Reprovado num curso de pós-graduação, um aluno acusou o professor de racismo e conseguiu ser aprovado após um longo processo. Um estudante branco responde a processo comum por ofensas racistas divulgadas pelo Orkut. No terceiro, um professor de ciência política, Paulo Kramer, enfrenta investigação interna depois de ter usado os termos "crioulo" e "crioulada".
CONFLITOS
Na reitoria, esses conflitos são interpretados convenientemente como uma reação de resistência da "ordem antiga". Entre eles, o mais recente também é o mais rico e o mais barulhento. Na primeira aula do ano, quando fazia referência aos programas de assistência às famílias negras nos Estados Unidos, Kramer falou sobre o fracasso dessas ações. Concluindo um raciocínio, ele disse: "Não basta só dar dinheiro para a crioulada." Mesmo reconhecendo que Kramer é um professor de espírito provocador e vocabulário destemperado, um grupo de nove alunos presentes explica que ficou chocado com a expressão.
Entre esses alunos, sete são brancos, que se definem como engajados "contra o racismo" e outras formas de preconceito.
No dia seguinte, Amora, que se apresenta como negro, enviou um e-mail para o professor. "Algumas afirmações suas na última aula me deixaram um tanto quanto incomodado", escreveu ele, que foi aluno de Kramer na graduação. "Eu me senti desconfortável quando o senhor se referiu à população negra pelos adjetivos 'crioulos' e 'crioulada'." Em outro trecho da mensagem, Amora admitia o "jeito de ser brincalhão" de Kramer. O professor deu uma resposta rápida: "Meu querido amigo Gustavo, gratíssimo por suas certeiras observações. Queira aceitar minhas desculpas pelo incômodo e fique tranqüilo doravante."
O caso não terminou aí. Dias depois, Kramer participava de uma banca de avaliação de candidatos a professor do Instituto de Ciência Política. Referindo-se a dois autores clássicos, Maquiavel e Hobbes, uma candidata dizia que "são mal compreendidos, apesar de suas passagens negras", quando foi interrompida por Kramer. Há dois relatos sobre suas palavras.
VERSÕES
Conforme Carlos Augusto Mello Machado, engajado na denúncia de casos de racismo e presente à sabatina, o professor fez uma ironia: "Negras, não...sombrias... temos de ter cuidado...a crioulada tá de olho."
A professora Lucia Avelar, diretora do departamento, estava ao lado de Kramer. Ela diz: "Lembro que ele virou-se, óculos caindo do nariz, e comentou: "O pessoal está de olho." Perguntada, diversas vezes, se ouvira a palavra "crioulada" e não "o pessoal", Lucia diz: "Lembro dele dizendo 'o pessoal'."
As palavras contam histórias diferentes. A versão de Carlos Augusto conduz a uma interpretação de racismo. A de Lúcia traduz uma ironia política diante da intolerância de um grupo de alunos.
Kramer foi denunciado pouco depois, num processo ainda em curso. Com um problema de família, não participou de reunião aberta entre professores e alunos para discutir o assunto.
Na aula seguinte, ocorreu uma discussão em classe. Em diálogos gravados, os estudantes disseram que Kramer era racista. "Racista o cacete!", reagiu ele, que ainda falou em "Ku Klux Klan negra". Kramer ainda disse: "Vou falar crioulada quantas vezes quiser. Nem que eu seja obrigado a impetrar mandado de segurança."
Estadão
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