A teoria do complô da oposição e da mídia que vem sendo ensaiada pela direção petista, no caso do Dossiê Serra, não é apenas ridícula. Ela simplesmente atenta contra a evidência de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem uma oposição capaz de lhe impor grandes dores de cabeça, contou com a inestimável capacidade criadora do PT. Todas as crises políticas do governo Lula vieram do intestino de seu partido. O maquiavelismo do grupo hegemônico petista, uma aliança do stalinismo do grupo de José Dirceu com o grupo sindical originário da CUT, é tão primitivo que tem terminado, invariavelmente, em escândalos. Sua energia criativa transforma-se, num passe de mágicas, em casos de polícia.
A queda dos dirigentes envolvidos na crise do mensalão e a eleição direta para constituir a nova direção não alteraram a realidade petista: o Campo Majoritário ganhou e desfruta de uma autonomia operacional tão grande que as minorias representadas no Diretório ou na Executiva não sabem da missa a metade. A transposição de uma prática sindical truculenta para um partido político, e de lá para o cenário nacional, vai repetir eternamente esses episódios - pelo menos até que o PT lave, de fato, a sua roupa suja e reveja suas práticas.
O desastre da operação dossiê foi tão grande que a maior pergunta que se faz - fora a origem do dinheiro que compraria os corruptores Vedoin, pai e filho - é qual era, afinal, o seu objetivo. Não ajudou Lula - pelo contrário, atrapalhou uma candidatura com grandes chances de vencer a parada já no primeiro turno. Como é contra Serra, o candidato tucano que deve vencer no primeiro turno a disputa, e na remota hipótese de que a operação desse certo - isso era difícil: os Vedoin estavam sob vigilância da Polícia Federal -, teoricamente favoreceria o candidato do PT ao governo paulista, Aloizio Mercadante. A operação, no entanto, foi engendrada no comitê de campanha de Lula. Todos os envolvidos vêm da CUT e são ligados ao presidente do partido, Ricardo Berzoini, quadro originário do movimento sindical. Na vida partidária, a figura de Jorge Lorenzetti, o assessor que assumiu a culpa, é a que une, por excelência, o grupo cutista a José Dirceu.
Um petista que não é do Campo Majoritário referiu-se ontem ao escândalo como uma ação de um "imbecil com iniciativa". Os nomes arrolados na investigação, no entanto, apontam para a ação de um grupo interno. Mais do que isso, um grupo que domina a máquina partidária e no qual estão arraigadas práticas comuns do sindicalismo brasileiro. Os grupos em disputa pelo poder, de início, miram a conquista da máquina sindical como um instrumento para se chegar a um objetivo político; no poder, no entanto, a briga é pela manutenção da máquina - e a disputa por essa parcela de poder que vem da burocracia acaba se tornando um fim em si mesmo.
Campo Majoritário se recompôs com Berzoini
O Campo Majoritário, há muito, deixou de ter um conteúdo ideológico: a disputa pelo poder interno deixou de ser tática, tornou-se estratégia. Quando Lula foi eleito, a manutenção desse poder partidário garantia também ao grupo hegemônico poder sobre uma máquina muito maior, agora a governamental.
Em 2005, após a grave crise que abalou o partido e levou-o às páginas de polícia, o PT não aproveitou o processo de eleição direta para sacudir essa cultura. Pelo contrário. A vitória do Campo Majoritário, mesmo minimizada por uma representação maior das esquerda partidária, reproduziu a mesma situação anterior. O grupo hegemônico manteve uma grande autonomia sobre as instâncias formais de decisão. Mesmo alijado das instâncias decisórias do partido, José Dirceu mantém a mesma desenvoltura de antes. Berzoini assumiu a presidência, recompondo a realidade anterior. A proximidade das eleições deu ao grupo hegemônico o pretexto interno que precisava para interromper o debate em torno dos seus problemas: a proximidade das eleições e o uso que a oposição fazia dos escândalos que derrubaram a direção nacional anterior.
A solução de empurrar os problemas para baixo do tapete revelou-se improdutiva. Como não houve mudança interna de espécie alguma, o partido não conseguiu retomar, nas eleições, seu espaço como partido: a popularidade de Lula é dele, e existe apesar da legenda onde está abrigado. De quebra, mostrou que continua vulnerável a ações ética e legalmente questionáveis, como deter dinheiro de origem incerta e comprar dossiês com ele.
O escândalo pode não ter chegado em Lula, mas chegou com toda certeza em Berzoini, e certamente no Campo Majoritário. O restante dos grupos internos, que concordou em adiar a discussão interna para depois das eleições, corre o risco de pagar um preço ainda mais alto, e com juros e correção monetária, pela ação do grupo hegemônico.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião - Valor Econômico
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