17.9.06

Cinismo militante

Em alguns setores do lulismo, descompromisso com a ética na política passa do campo da prática para o da teoria.

SUPERADAS as reações iniciais de surpresa e desencanto, que tomaram conta do petismo ao eclodir a crise do mensalão, um espantoso e célere processo de readaptação moral está em curso. Partem de setores expressivos da militância os argumentos de que, na luta política, é inevitável conviver com a "sujeira" -ou coisa pior.
Um passo além, e já se registram manifestações de que a própria questão da ética na política é secundária, face aos supostos benefícios que um governo, mesmo corrupto, seria capaz de garantir à população mais pobre.
Como nos mais típicos casos de ginástica mental da época stalinista, há quem considere agora puro "moralismo de classe média" os princípios que, em outros tempos, serviam de pretexto ao PT para arrogar-se um papel renovador na política brasileira.
A leniência ética estendeu-se, assim, da esfera da prática para o campo da teoria. A tal ponto chegou a desonestidade intelectual de alguns setores da militância, que ouviram do próprio presidente Lula uma arrevesada e singular advertência.
"O PT foi construído para ser um símbolo de que era possível fazer política diferente", declarou em meio a uma aguada entrevista ao "Jornal da Band", na quinta-feira. "De repente, eu vejo que algumas pessoas do PT enveredaram pelo mesmo círculo vicioso da política brasileira".
Esqueceu-se de dizer, por certo, que tinha sido o primeiro a argumentar, numa patética entrevista em Paris, que seu partido nada mais fizera a não ser o que todos os demais faziam. Condutor da "virada pragmática" que encaminhou governo e partido ao pântano do valerioduto, quis refrear agora o ânimo dos que são mais realistas do que o rei e mais caudilhistas que o caudilho.
Ao cinismo teórico dos que antes se diziam detentores da ética na política, contrapõe-se a hipocrisia dos que, agora, indignam-se nos palanques ao verem magnificada a herança que contribuíram para formar. A compra de votos para aprovar a emenda da reeleição, no governo Fernando Henrique, constituiu um ensaio, ainda tímido, do grande baile dos mensaleiros no Congresso.
O próprio instituto da reeleição teve como conseqüência a promiscuidade, que agora se condena, entre atos administrativos e manobras de campanha. O recurso a medidas eleitoreiras pelo governo Lula teve no populismo cambial do primeiro governo FHC um precedente e um exemplo dos mais graves. E, se escândalos de dimensão inédita varreram o governo atual, não se sabe o que teria acontecido com o anterior se tivessem sido instauradas as CPIs que PSDB e PFL se empenharam em barrar.
O espetáculo oscila do ridículo ao deprimente e parece dar alguma razão a quem afirma que todos, afinal, se indiferenciam do ponto de vista ético. Mas que de uma avaliação da realidade se deduza um princípio de conduta, e que do "rouba, mas faz" se passe ao "rouba, mas é de esquerda" -eis uma aberração que, décadas depois de Lênin, Stálin, Trótski e Mao, reveste de tons de farsa a tragédia, que se esperava extinta, da cegueira militante.
Folha

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