Denis Lerrer Rosenfield para o Estadão
Há “excesso de democracia” na Venezuela, diz o presidente Lula, no que é imediatamente seguido por seus assessores. Talvez haja excesso em suas palavras. Não há perigo, assevera ele. O perigo é relativo, sobretudo considerando a concentração de poderes em mãos de Hugo Chávez, que segue celeremente em seu projeto de instalar o socialismo, o autoritarismo, naquele país. O PT não poderia ficar atrás neste “momento histórico”, ao proclamar oficialmente que tudo se faz segundo os “trâmites da legislação”, ao justificar, por intermédio do fechamento da rede nacional RCTV, o sufocamento da liberdade de imprensa. Tudo é feito “democraticamente”, “legalmente”, mas com que democracia e legalidade estamos lidando?
Os equívocos na caracterização da experiência venezuelana residem na identificação, indevida, entre revolução socialista e uso da violência enquanto forma de conquista do poder. O socialismo foi tomado como sinônimo de um golpe militar ao estilo da tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques na Rússia, da guerra civil na China ou dos assaltos a quartéis por Fidel Castro e Guevara, em Cuba. É como se não houvesse outro meio de conquista do Estado, voltando-o, aí, contra a sociedade. Há, porém, uma outra via, a “democrática”, de acesso socialista ao poder. Chamemos a primeira de via “oriental” e a segunda, de via “ocidental”.
A via oriental caracteriza-se pelo uso da violência, com um partido de vanguarda, centralizado, que segue as ordens de uma cúpula. A democracia é considerada por eles como uma superestrutura que deve ser eliminada, por ser um mero instrumento de dominação política da burguesia. A hierarquia partidária, cujo exemplo mais acabado é o Partido Bolchevique, sob as ordens de Lenin e, depois, de Stalin, com o beneplácito de Trotski, organiza os seus militantes segundo uma férrea disciplina, não deixando espaço para a crítica ou a reflexão pessoal. Com tal propósito, era necessário que uma ideologia suscitasse a adesão completa dos seus membros. O marxismo e, mais ainda, o marxismo-leninismo, ao prometerem uma sociedade socialista, a redenção da humanidade, preenchiam perfeitamente essa função. O seu manto moral humanista capturava as mentes incautas, provocando a adesão maciça de intelectuais. Até hoje observamos que o socialismo é dotado de uma aura, enquanto os seus críticos são considerados “hereges”, “imorais”, quase inumanos. Em nome do socialismo tudo era - e para alguns é - justificado.
A via ocidental de conquista do poder prescinde da violência explícita num primeiro momento, utilizando os meios democráticos para a captura do Estado e o controle da sociedade. Não nos podemos, no entanto, equivocar com a questão central: os meios democráticos são usados para destruir a própria democracia. Experiências desse tipo foram utilizadas na antiga Checoslováquia, onde a conquista do poder foi feita por meio de eleições, sendo, depois, os defensores da democracia descartados, inclusive fisicamente. Hitler, numa outra vertente, chegou também democraticamente ao poder, para destruir a democracia. Gramsci, por sua vez, teorizou sobre a conquista da opinião pública mediante o aparelhamento de escolas, universidades e redações de jornais enquanto meio de conquista do poder.
Trata-se de um erro crasso identificar a democracia com a realização de eleições. Eleições são uma condição da democracia, porém não a esgotam. Há outras condições tão ou mais importantes. Para que uma democracia se efetive é necessário: 1) Criar e manter condições para que a oposição, em minoria, possa chegar, por sua vez, ao poder; 2) o respeito ao Estado de Direito, o respeito às regras, que não podem ser mudadas segundo o bel-prazer dos governantes; 3) ampla liberdade de opinião, de organização e de manifestação; 4) independência dos Poderes, de tal maneira que haja um equilíbrio institucional; 5) a autonomia dos meios de comunicação, que não devem ser controlados e monitorados pelo Estado.
O que faz o ditador-presidente da Venezuela? 1) Restringe, cada vez mais, o espaço das oposições, passando, progressivamente, a criminalizá-las por exercerem a sua função; 2) destrói o Estado de Direito - com um Poder Legislativo submisso, o ditador-presidente passa a governar por lei delegada, tornando-se ele mesmo o Poder Legislativo; 3) sufoca a liberdade de opinião, surgindo o crime de delito de opinião, como o de falar mal do ditador-presidente ou de seus familiares - há hoje uma lei que permite processar os adversários, considerados, assim, inimigos, “criminosos”; 4) elimina a autonomia dos Poderes Legislativo e Judiciário, que passam a seguir as ordens do ditador-presidente; 5) monitora os meios de comunicação, controlados pela lei de delito de opinião; alguns são estatizados, de modo que as vozes discordantes se calem.
No sentido estrito, o que se chama de populismo latino-americano, para caracterizar o projeto que está sendo vivido pela Venezuela, pela Bolívia e pelo Equador, deveria ser mais apropriadamente denominado “transição para o socialismo”. Uma vez que se vençam as etapas de eliminação da democracia representativa, os próximos passos, que começam a ser dados, concernem à estatização dos meios de produção, iniciando por aqueles que são tidos por estratégicos. É o caso dos setores de energia em geral, com especial atenção ao petróleo e gás, e de telecomunicações, incluindo companhias telefônicas e redes de televisão. É também o caso da propriedade da terra, com expropriações ou desapropriações em curso, etapa já inaugurada na Venezuela e na Bolívia. A estatização de alguns meios de produção, seguindo o linguajar marxista, vem acompanhada do discurso do resgate de injustiças milenares. Não deve, portanto, estranhar a sedução que esse projeto exerce sobre várias tendências do PT, o PSOL, o MST, a CUT, a CPT e outras organizações similares.
Não há perigo?
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