O ex-ministro diz que não se arrepende de ter assinado o AI-5 e que há cinco desaparecidos do Araguaia que estão vivos
Sua casa, erguida num canto discreto e bucólico do bairro do Lago Norte, em Brasília, vem sendo há décadas cenário de conspirações, articulações políticas e debate de idéias. Afinal, Jarbas Passarinho é personagem proeminente do período republicano que começou com o regime militar de 64, passou pela redemocratização e prossegue pela atual fase de globalização. Coronel de artilharia, administrador cartesiano, acabou quatro vezes ministro - do Trabalho (Costa e Silva), da Educação (Médici), da Previdência (Figueiredo) e da Justiça (Collor). Leitor compulsivo, orador refinado, articulador paciente, destacou-se também como um dos grandes políticos da restauração democrática. Foi eleito senador três vezes, foi governador do Pará e chegou a presidente do Congresso. Aos 87 anos, seis livros publicados, dedica seu tempo entre dar consultoria e escrever artigos para jornais. Dias atrás, escarafunchando a memória, Passarinho se lembrou que em fins de 1973, quando terminava a guerrilha do Araguaia, o general Antônio Bandeira o procurou em segredo para pedir que abrigasse cinco presos políticos. Ele ajudou. As organizações de direitos humanos suspeitam que cinco dos guerrilheiros do Araguaia teriam recebido nova identidade e depois entrado para a lista de desaparecidos. Passarinho pode ser a chave para desnudar esse episódio ainda não resolvido da história.
ISTOÉ - Dentro de alguns dias a Secretaria de Direitos Humanos inicia uma nova tentativa de encontrar os corpos dos desaparecidos no Araguaia. Quais as chances de sucesso?
Jarbas Passarinho - Sou muito pessimista. Acho que numa luta de floresta é muito difícil que se consiga, tantos anos depois, encontrar corpos de pessoas ali enterradas. Já fizeram várias tentativas.
Nada conseguiram. Quando eu era ministro da Justiça, fui procurado por um grupo de parentes de desaparecidos. Me comoveu uma senhora, mãe dos irmãos Petit (Maria Lúcia, Jaime e Lúcio Petit).
O que ela desejava era poder dar a cada um deles uma sepultura cristã. Eu concordo com isso e tentei ajudá-la. Mas não consegui informações.
ISTOÉ - Não chegou o momento de os militares abrirem os arquivos secretos, revelar o que sabem e acabar com as lacunas na História do País?
Passarinho - Mas a esquerda não quer acabar, ainda alimenta o revanchismo.
Agora mesmo, a Comissão de Direitos Humanos vai retomar o caso do Lamarca. Querem de novo investigar a morte do Lamarca. Desde que Lamarca desertou, o Exército, por tradição, o considerou como morto. Desde aquela época, a viúva de Lamarca recebia pensão. Depois, nessa revisão, promoveram Lamarca a coronel. Depois, deram R$ 150 mil de indenização. Eu me pergunto: o que é que ainda falta fazer? Isso é um absurdo.
Lamarca não é isso. Me recuso a compará- lo com Luís Carlos Prestes. Primeiro porque Prestes era um oficial brilhante, primeiro de turma, tinha grande influência sobre os companheiros. A Coluna Prestes nunca foi batida. Lamarca, não; era medíocre. Atirou em dois sentinelas, matando-os. Também matou um refém, um tenente. Esse crime, para nós militares, é dos mais repulsivos: matar um refém! E matou a coronhadas. Como coronel do Exército, é coisa que não admito.
ISTOÉ - Além de coronel, o sr. é um intelectual respeitado, um apreciador da História. Como então avalia o comportamento das Forças Armadas, que até hoje evitam que documentos do período militar venham a público?
Passarinho - Essa grande lacuna no arquivo da História só existe com relação à guerrilha do Araguaia. Foi de fato uma guerra sem prisioneiros, algo que também se justificou em algumas guerras na Europa. O que aconteceu no Araguaia que produz esse silêncio, só quem esteve lá pode dizer. Já a história da guerrilha urbana é toda conhecida em detalhes.
ISTOÉ - O ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, acredita ser possível um acordo para que militares que participaram da guerrilha ajudem na localização dos corpos. Em que termos os militares poderiam aceitar um acordo?
Passarinho - O secretário pode levantar a tese que quiser. E eu tenho o direito de discordar. Não acho possível que, 30 anos depois, naquela selva ainda seja possível encontrar algum corpo. Será que seria possível o comandante do Exército fazer uma comissão de recrutamento de quem esteve no Araguaia? Primeiro: grande parte já morreu. Segundo: isso poderia dar margem a manifestações, a todo tipo de revisão e revanchismo. Por causa da visão geral negativa que ficou sobre o período militar. Nós transformamos o Brasil na oitava economia do mundo. Mas aí a esquerda nos transformou nos trogloditas da História por conta dos excessos que alguns cometeram. Acho compreensível que os militares resistam a colaborar com a montagem de uma história que parta dessas premissas. Principalmente se for para colaborar naquilo que o humorista Millôr Fernandes define muito bem: "Eles não fizeram uma guerrilha, fizeram um investimento." Além disso, pode ser que nem todos os desaparecidos estejam de fato mortos.
ISTOÉ - Como assim?
Passarinho - Me recordo que em fins de 1973 o general Antônio Bandeira me procurou. Ele era diretor-geral da Polícia Federal e, antes, fora comandante da segunda campanha do Araguaia. Naquela época a guerrilha estava terminando; eu era ministro da Educação. O Bandeira disse que tinha cinco rapazes arrependidos que queriam uma chance de se reintegrar. Ele queria inserir esses rapazes na sociedade. Naquele período, da forma como os órgãos de informação funcionavam, eles mesmos não sentiam força. Então, ele veio me pedir se eu podia dar um jeito. Ele não me disse se eram do Araguaia, nem se haviam trocado de identidade. Não perguntei, mas achei que eram, pois o Bandeira fora comandante lá. Eu estava reformulando umas revistas do MEC e eles foram empregados lá. Eu não fiz ficha, não guardei os nomes; me dêem o direito de envelhecer, a minha memória falha.
Agora, é possível que haja registros no Ministério que ajudem nessa identificação. Há, portanto, a hipótese de alguns desaparecidos políticos do Araguaia ainda estarem vivos e com nova identidade.
ISTOÉ - Como o sr. avalia hoje sua participação na ditadura?
Passarinho - Depois do fim do ciclo militar, e é com esse termo que prefiro me referir ao período, já como senador, fiz amizade com uma moça que chegou a ser torturada, a ex-deputada Moema Santiago. Um dia, ela me revelou algo que lhe foi dito por uma outra ex-militante, Inês Etiene Romeu. Ela foi torturada na chamada Casa de Petrópolis (local usado para sessões de interrogatório e tortura nos anos 70).
Depois de uma das sessões, um dos inquiridores resumiu o seu plano. Segundo ele, primeiro morreriam aqueles, como ela, que pegavam em armas para tomar o poder. Depois, morreriam os comunistas que naquele momento não pegavam em armas mas que um dia poderiam pegar. E, finalmente, morreriam os "melancias", os infiltrados. E completou: "Como o ministro Passarinho. O presidente Médici gosta dele, mas ele não escapa." Essa história prova que a linha-dura me considerava um "melancia", apelido para quem seria verde por fora e vermelho por dentro.
ISTOÉ - E quanto ao papel das Forças Armadas no Estado Democrático de Direito? Há quem defenda que elas deveriam ser usadas no combate ao narcotráfico ou contra o crime nas favelas.
Passarinho - Os militares não são treinados para fazer o papel de Polícia Militar. Nenhum militar tem hoje condições de ensinar, em qualquer quartel, um recruta como ele deve fazer para enfrentar os bandidos nos morros. Ele é preparado para matar, e não para prender.
ISTOÉ - Mas não é isso que fazem as tropas brasileiras no Haiti: combater o crime? Não é um paradoxo gastar o dinheiro para manter a paz no Haiti e não usá-lo para garantir a paz no Rio?
Passarinho - O Brasil não é o Haiti. O Brasil assumiu uma missão de paz e, se foi para lá, tem que agüentar as conseqüências, como entrar em favelas. O Brasil buscava uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Isso foi um compromisso do presidente Lula e seu chanceler do B, o professor Marco Aurélio Garcia. É o caso de se perguntar: por que os EUA não foram para o Haiti? Porque sabiam que teriam que entrar em favelas. Mas o papel das Forças Armadas é outro, é garantir a soberania. Para combater o crime internamente, temos a Polícia Federal, a Polícia Civil e a Polícia Militar.
Lembra-se do que aconteceu quando as Forças Armadas invadiram os morros? Os soldados subiram, fincaram uma bandeira. Uma bela fotografia. Mas o que aconteceu depois? Os traficantes voltaram. Mudou alguma coisa?
ISTOÉ - E sobre usar os soldados no combate ao narcotráfico internacional, como querem os Estados Unidos?
Passarinho - Insisto: traficante é um problema de polícia civil. Você vê que sistematicamente se coloca alguém para investigar essa área e o policial se corrompe. É um negócio de milhões de dólares e o sujeito ganha R$ 2 mil por mês.
Outra coisa: se nós entrássemos nisso, com a lógica militar, o que faríamos? Invadiríamos a Colômbia? Só invadindo a Colômbia poderíamos combater com eficiência militar o narcotráfico.
ISTOÉ - E quanto à utilização das tropas na ocupação das fronteiras? No meio militar, muitos se preocupam com a falta de vigilância na Amazônia.
Passarinho - Repare no caso do Projeto Calha Norte. Não houve dinheiro para mantê-lo. Ainda que haja uma importância simbólica de se fincar uma bandeira no meio da floresta e se informar que ali é que começa o Brasil, o fato é que, no caso do narcotráfico, a fronteira está no ar. Aí, o que precisa é a autorização para abater essas aeronaves, que por sinal já existe, com a aprovação da Lei do Abate. Mas o maior problema hoje na Amazônia é a ameaça à nossa biodiversidade.
A nossa biodiversidade está escapando toda para o Exterior a partir do trabalho das ONGs que atuam livremente na Amazônia.
Calcula-se que existam cerca de 100 mil homens trabalhando livremente nisso na Amazônia, recolhendo amostras para enviar a laboratórios no Exterior.
ISTOÉ - E isso não é algo que o Exército possa ajudar a combater?
Passarinho - Como? Nós estamos sendo espionados, estamos vendo isso e não podemos fazer nada. Porque a lei protege o funcionamento das ONGs. Seria necessária uma reforma constitucional que desse ao País o direito de fiscalizar e interferir.
ISTOÉ - O sr. foi ministro em três governos militares e em um governo civil. Existe algo que o sr. se arrepende de ter feito ou defendido?
Passarinho - Muito se critica o meu apoio ao AI-5. Eu não posso isolar o AI-5 do seu tempo e das suas circunstâncias.
Naquelas circunstâncias, eu, de novo, apoiaria o AI-5. Agora, ao mesmo tempo, eu era ministro do Trabalho naquela época e consegui o fim de uma greve de canavieiros estabelecendo, parafraseando o Lula, "pela primeira vez na história deste País", critérios de previdência social para o trabalhador do campo. Do que eu me arrependo? Quando era ministro da Educação, me impediram de aprovar um projeto que fizesse com que os estudantes ricos pagassem a universidade pública para que os pobres não precisassem pagar. Pelo meu projeto, o filho do Antônio Ermírio pagaria para que o filho do Zé da Silva pudesse pagar depois de formado. Deveria ter insistido mais nisso. Me arrependo também de não ter implantado cursos noturnos nas universidades públicas.
ISTOÉ - E quanto à sua participação no governo Collor?
Passarinho - Fiquei 11 meses no governo Collor. Talvez devesse ter ficado menos. O que eu gostaria é de não ter chegado aos 87 anos tendo que convencer os meus 14 netos e sete bisnetos de que este não é um país de ladrões.
Onde a Justiça vende sentenças. Onde um juiz superfatura a obra de um prédio e arrasta consigo um senador da República. Um país onde a propina é algo comum desde o guarda de trânsito. Onde o escândalo mais recente apaga de nós a memória dos escândalos anteriores. Isso me gera um sentimento de revolta. Eu gostaria de poder manter nos meus netos e bisnetos a chama de esperança de que eles podem fazer um país diferente.
Jarbas Passarinho em entrevista para a IstoÉ - 16/06/2007
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