8.6.07

Simulação no Senado

Editorial do Estadão

O processo aberto no Conselho de Ética do Senado contra o presidente da Casa, Renan Calheiros, para apurar se houve quebra de decoro parlamentar, é como a hipocrisia: a homenagem que o vício presta à virtude. Aparentemente, foi a dignidade da chamada Câmara Alta da República que determinou a virtuosa decisão de apurar se o seu dirigente máximo de fato aceitou que uma conhecida empreiteira lhe pagasse despesas pessoais advindas de um relacionamento extraconjugal. Na realidade, porém, o processo resulta de uma intenção viciosa - a de fazer a sociedade acreditar que o Senado não compactua com eventuais desvios de conduta de seus integrantes - quando tudo foi preparado para uma absolvição.

A decisão de abrir o processo só foi tomada depois que o PSOL, que pedira sua abertura, ameaçou recorrer ao Supremo Tribunal Federal se o seu pleito fosse sumariamente desconsiderado, como pretendiam os pressurosos pares do senador alagoano. Pelo menos duas vezes, nos últimos anos, a Corte acolheu queixas do gênero contra o rolo compressor das maiorias congressuais. Mas que ninguém se engane: tudo o que for preciso fazer para o processo terminar em pizza será feito, no devido ritmo, enquanto os pizzaiolos adotarão a costumeira expressão corporal de quem busca a verdade, nada mais do que a verdade. Por exemplo, cuidaram de não entregar a relatoria do processo a um correligionário ou aliado político de Calheiros, como seria um senador do PMDB ou do PT.

Mas, por trás da fachada, os andaimes do palco em obras já se deixam ver. A escolha, para relator, do octogenário maranhense Epitácio Cafeteira, do PTB, que deve a senatoria ao cabo eleitoral José Sarney, praticamente garante uma investigação breve, rasa e mansa. E, se o barco balançar, não faltará quem acuda o neófito presidente do Conselho, o petista acreano Sibá Machado, que chegou ao Senado quando a titular da cadeira, Marina Silva, se tornou ministra. O fato é que, não bastasse a sabida solidariedade suprapartidária entre os 81 membros do que é tido como o “clube” do Legislativo, o afável Calheiros, seu sócio há mais de sete anos, armou ali uma rede aparentemente inabalável de amigos e, mais do que isso, devedores.

Ainda assim, a história que deu origem ao inquérito fez mais até do que a notória promiscuidade dos Calheiros - o senador e seu irmão Olavo, deputado federal - com o desenvolto Zuleido Veras, da Construtora Gautama, para descerrar o retrato de um político habilidoso que, vindo do PC do B, logo descobriu sendas mais promissoras para subir na vida pública e se dar bem nos negócios. A sua desinibida trajetória, a começar do papel exercido na fabricação do “caçador de marajás” Fernando Collor, nunca foi segredo. Eis por que escrevemos neste espaço, em seguida às revelações da revista Veja sobre o senador e o lobista Cláudio Gontijo, da Mendes Júnior, que a única surpresa com essas revelações foi o tempo que levou para algo do gênero vir à tona.

Depois, as cifras fornecidas por Calheiros para provar que tinha recursos de sobra para pagar ele mesmo suas contas ajudam a traçar o perfil de um personagem que, apesar da relativa pouca idade (51 anos), está à vontade no molde dos tradicionais oligarcas nordestinos, o coronelato da terra e da política provincial, uma coisa aparentada à outra. Tomem-se as informações do senador sobre as suas fontes de renda. Segundo o noticiário, ele declarou ter faturado R$ 1,9 milhão com a venda de 784 das suas 2.488 cabeças de gado. Se assim é, as suas fazendas de criação são as mais rentáveis do País - e Murici, seu feudo a 60 quilômetros de Maceió, um pólo pecuário ignorado pelos desatentos especialistas em economia agrária brasileira.

Esses números têm tanto crédito quanto os nomes que, nas certidões, figuram como donos dos bens fundiários que todos em Murici sabem de quem são. O caso mais notório é o da Fazenda Cocal. Em 2005, o ex-administrador das terras da família Calheiros, por sinal primo e irmão adotivo do senador, ficou sabendo que aparecia na escritura de compra da propriedade como se a tivesse comprado dois anos antes. O que ele não ficou sabendo é que a “vendeu” a outro laranja. Certidão de janeiro de 2006 atesta que a Cocal pertencia a uma certa Marlene Gomes da Silva, ex-empregada da fazenda. Detalhe: ela falecera há nove anos.

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