Há trinta anos, quando disputou a primeira eleição para deputado, Renan tinha um Fusca. Hoje, o presidente do Congresso é dono de uma fortuna conhecida
de 10 milhões de reais
A suspeita de que um lobista pagava despesas do senador Renan Calheiros
revelou dois aspectos desconhecidos de sua biografia. Um deles é seu
extraordinário desempenho como pecuarista. Para provar que tinha renda
para pagar 12.000 reais de pensão à jornalista Mônica Veloso, mãe de sua
filha, Renan disse que ganhou 1,9 milhão de reais em quatro anos com
venda de gado. Para tanto, suas vacas exibiram taxa de fecundidade maior
que a dos melhores produtores nacionais, e a arroba de seus bois é
vendida em Alagoas, estado assolado pela febre aftosa desde 2001, pelo
maior valor do país. O outro aspecto novo é a notável capacidade do
senador para, mesmo atuando sempre como político profissional, acumular
uma fortuna respeitável. Na semana passada, VEJA visitou suas
propriedades, entrevistou especialistas, cotejou valores e descobriu que
seu patrimônio, declarado em 1,7 milhão de reais, é pelo menos 476%
maior. Bate na casa dos 10 milhões de reais.
Renan Calheiros teve uma infância modesta em Murici, município de 21 600
habitantes a 50 quilômetros de Maceió. Um dos oito filhos de um pequeno
produtor rural e uma dona-de-casa, Renan chegou a vender sandálias
feitas com pneus velhos na década de 70, na época em que deixou a cidade
para estudar direito em Maceió. Quando estreou na política, elegendo-se
deputado estadual em 1978, tinha um Fusca. De lá para cá, ficou sem
mandato durante apenas quatro anos, mas de todo modo, mesmo como
pecuarista diletante, como fazendeiro nas horas vagas, tornou-se um
homem milionário. É dono de três fazendas com 1.742 cabeças de gado. Tem
um apartamento na orla de Maceió, casa à beira-mar na paradisíaca Barra
de São Miguel e cinco caminhonetes de luxo. A pequena herança que
recebeu -- ao morrer, o pai deixou 712 hectares para repartir entre oito
filhos -- nunca foi incorporada ao seu patrimônio. Tudo o que Renan tem
é resultado do seu, digamos assim, trabalho.
Até 2002, Renan vinha aumentando seu patrimônio num ritmo formidável,
mas, aparentemente, compatível com seus rendimentos como político:
• Entre 1979 e 1982, enquanto exerceu um mandato de deputado estadual,
Renan ganhou o equivalente a 6 700 reais por mês. Nesse período, seu
patrimônio cresceu a um ritmo de 2.000 reais por mês. É uma economia
possível para quem é capaz de poupar 30% de sua renda todo mês.
• Entre 1983 e 1990, como deputado federal, ganhou o equivalente a
12.265 reais por mês. Seu patrimônio cresceu a um ritmo de 8.000 reais
por mês. É difícil, mas há quem consiga guardar 65% do salário.
• Entre 1991 e 1994, Renan não teve mandato. Por um ano, presidiu uma
subsidiária da Petrobras por indicação do presidente Itamar Franco. Seu
patrimônio, nesse período, refletindo a distância de um cargo eletivo,
caiu de 880.000 reais para 755.000 reais.
• Entre 1995 e 2002, como senador, Renan recebeu 12.277 reais por mês.
Seu patrimônio cresceu a um ritmo mensal de 8.800 reais. É quase
impossível poupar 72% do salário. Mas os poupadores fenomenais chegam lá.
Até 2002, Renan não declarou ser dono de fazendas, nem de cabeças de
gado. Tinha automóveis, uma casa, um apartamento e um flat -- nada que
pudesse lhe proporcionar rendimentos estratosféricos. Mas, de 2002 em
diante, a evolução de seu patrimônio entrou num ritmo galopante
impossível de ser explicado por qualquer sacrifício no orçamento
familiar. Recebendo 12.277 reais por mês no Senado, sua fortuna cresceu
a um ritmo de 170.800 reais mensais. O senador sempre atribuiu sua
ascensão financeira a rendimentos agropecuários. Mesmo que suas
transações de venda de gado sejam verdadeiras, coisa que ainda carece de
comprovação, é impossível enriquecer em um período tão curto vendendo
bois. Será?
De acordo com o administrador de empresas Mauro Garcia, professor da
Escola de Empreendedores da Universidade de Brasília (UnB), não há
fórmula mágica para enriquecer em tempo recorde. Ainda assim, o
professor destaca três características comuns em trajetórias meteóricas.
A primeira é a dedicação extrema e exclusiva ao negócio. "É preciso
muito suor, principalmente no início", diz. A segunda é atuar em um
mercado inovador, como tecnologia da informação e telecomunicações. "Foi
nessas áreas que se construíram as grandes fortunas nos últimos anos",
afirma. O terceiro fator é uma postura revolucionária e inovadora numa
área tradicional. "Um exemplo são essas empresas de lava-jato que operam
sem usar água. É um negócio tradicional, mas que foi reinventado", diz o
professor Garcia. Nada disso, como se sabe, aparece na empreitada bovina
de Renan.
Em sua declaração de bens entregue à Justiça Eleitoral em 2002, Renan
não diz possuir fazendas nem gado. Em 2003, porém, ele declara ter
começado o ano com um estoque de 1.278 bois. De onde saíram esses bois?
Com que dinheiro foram comprados? VEJA enviou esses questionamentos ao
senador, por escrito, mas ele não respondeu. A dificuldade para
justificar a origem de seus bens talvez explique o fato de o patrimônio
de Renan estar quase todo subfaturado em suas declarações de renda -- o
que, do ponto de vista tributário, não é irregular. Suas três fazendas,
compradas a partir de 2003, teriam custado 880.000 reais, o que dá uma
média de 605 reais por hectare. O Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra) calcula o preço do hectare na região em 4.500
reais. Dois corretores de imóveis rurais disseram a VEJA que o hectare
na região custa entre 5.000 e 7.000 reais. Alguém vende hectare por 600
reais?
"Tá sonhando? Isso não existe, não", espanta-se o corretor Tônio Campos,
gerente da JC Consultoria Imobiliária, com quinze anos de experiência no
mercado. Assim, as três fazendas que o senador diz ter comprado por
880.000 reais não custam menos de 6,8 milhões de reais. Seu apartamento
em Maceió, declarado por 135.000 reais, é avaliado em 1 milhão de reais.
A casa na Barra de São Miguel, declarada por 450.000 reais, vale mais de
1 milhão de reais. Por que alguém subfatura o valor de seus bens?
Falando em tese, sem conhecer o caso específico, o tributarista Gilberto
Amaral, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário,
responde: "Para adquirir um patrimônio, qualquer que seja ele, é preciso
ter renda. A principal justificativa para o subfaturamento é a falta de
origem lícita para o dinheiro".
Os bens subfaturados do senador, coincidentemente, são sempre comprados
de amigos ou parentes. Uma fazenda foi adquirida de um irmão de criação,
a outra de um primo, uma terceira de outro irmão. Uma de suas
caminhonetes, uma Mitsubishi L200 ano 2006, foi comprada de um assessor
no Senado, Everaldo França Ferro. Nesse caso, não há indício de
subfaturamento. Os indícios são de coisa mais cabeluda. Ferro foi
flagrado em grampo da Polícia Federal em uma conversa esquisita com o
empreiteiro Zuleido Veras, preso pela Operação Navalha. A PF suspeita
que os dois estivessem falando sobre uma propina que seria paga ao
assessor do senador. Ferro não foi localizado por VEJA para comentar a
suspeita.
Será que Renan enriqueceu terceirizando o pagamento de suas despesas?
Quando precisava pagar a Mônica Veloso, acionava o lobista Gontijo. Em
três entrevistas a VEJA, o ex-bicheiro alagoano Plínio Batista, amigo de
infância de Renan e seu aliado até 2004, afirmou que também pagou
despesas do senador. Diz que custeou parte de sua campanha ao Senado em
2002. "Comprei a Kombi para a campanha a pedido do Renan", declara
Plínio Batista, exibindo fotos do veículo, placa MUD 5762, decorado com
material de campanha de Renan e seu irmão Olavo. Ele também afirmou ter
pago uma conta do senador de 30 000 reais, em dinheiro vivo. O dinheiro
foi pago ao empresário Benezildo Moura, dono da gráfica Sian. "Sou amigo
dos Calheiros, não quero entrar nesse assunto", disse o empresário a
VEJA. Diante da insistência da revista, ele confirmou o pagamento. "Eram
santinhos e cartazes do senador. Quem pagou foi o Plínio." Plínio
Batista já comandou o jogo do bicho em Alagoas e foi preso duas vezes
sob acusação de chefiar a contravenção e envolver-se com grupo de
extermínio. Era só o que faltava. Além de ter contas pagas por lobista
de empreiteiro, o senador contou também com recursos de bicheiro...
Alexandre Oltramari para Veja
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