19.2.06

Um perdão que envergonha

Lula perdoou. E o fez com a sincera convicção de que, se matar é um ato humano, qualquer coisa que os dirigentes do PT tenham feito de errado faz parte da natureza humana, merecendo perdão. Portanto, nenhum petista deve baixar a cabeça. E o partido não tem por que se humilhar. Embalado pela letra do samba "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima", eufórico com as pesquisas que o põem na dianteira do processo eleitoral, encantado com a silhueta menos encorpada, Luiz Inácio festejou os 26 anos do Partido dos Trabalhadores sob um clima de entusiasmo que reabre o cenário de continuidade na cadeira presidencial, reanima as bases petistas, reacende o ânimo de governistas e deixa nervosas as oposições. Pula no palanque reeleição, embora negue isso, e, com onipotência majestática, empurra para o alto o índice de banalização da imoralidade no País ao dizer, sem nenhum escrúpulo, que "errar é humano", mesmo que o erro referido tenha sido a maior roubalheira da história contemporânea de nossa política. Traduzindo: se próceres do PT estão imersos nesse lodaçal, devem ser perdoados, bastando que acenem com um pequeno gesto de modéstia o reconhecimento do erro. Se a mais alta figura da República perdoa acusados de grandes crimes, é melhor soltar logo todos os pés-de-chinelo que enchem as cadeias do País.

Mesmo considerando a natureza do evento festivo, em ambiente fechado, e a visível intenção de dar um recado à militância, a expressão presidencial, tornada pública, merece reparos. Não se pode ser indulgente com o crime. Mas esta é a sensação que se filtra quando Lula convoca os petistas a andarem de cabeça erguida, dando vazão à estratégia de amaciamento das denúncias contra o PT, pela qual todos os partidos erram quando pegam recursos para o caixa 2. O presidente insiste em ignorar os limites entre a liturgia do poder, da qual é, por excelência, o maior usuário nacional, e a identidade petista. Com perdão de S. Exa., entremos no mérito da fala. Lembre-se que Lula nunca concordou com a existência do mensalão. Desqualificando a denúncia, ensina que a vergonha petista não deve ser tão grande a ponto de justificar cabeça enfiada na toca. Eventuais desvios - os tais empréstimos bancários - podem ser jogados na vala comum da política. E, assim, o presidente contribui, com o poder do cargo, para relativizar a imoralidade. Se todos cometem o mesmo crime, esse crime se torna menor. Algo como a morte em Bagdá. Coisa banal. Os atentados ocorrem todos os dias.

Se vivo, o velho Ulisses Guimarães poderia retrucar com um dito de sua predileção: "Uma pessoa 99% honesta é 100% desonesta, porque não existe honestidade parcial." Quanto à lembrança de que errar faz parte da natureza humana, vale lembrar ao presidente que "persistir ou esconder o erro é mais humano ainda". A adição ao provérbio até reforça a tese presidencial de que os dirigentes petistas, ao esconderem o delito, foram radicalmente humanos. Perdão para eles. Para fechar o discurso cínico, só falta Lula trazer à tona o autor de Leviatã, Thomas Hobbes, com a lição de que o homem, como lobo do homem, faz tudo para ganhar e preservar poder. Principalmente quando esse "tudo" é fácil de conquistar, algo como um dinheirinho para comprar votos, um cargo na administração, facilitação de negócios, licitações dirigidas, empréstimos mal-explicados. Ou esse não é o arsenal de desvios que está sendo apurado pelas Comissões Parlamentares de Inquérito?

Vale ainda perguntar: será que o mandatário-mor, ao perdoar o PT, não quis se inspirar em Santo Tomás de Aquino, para quem os bens dos mais ricos devem ser repartidos com os mais carentes? (É pouco provável que a filosofia e a teologia do dominicano tenham inspirado quem já confessou não apreciar leitura, muito menos as complicadas.) O santo pregava que os necessitados poderiam apropriar-se de coisas exteriores, hipótese que arrematava com o pensamento de que a vida do pobre prevalece sobre a superabundância do rico. Assim, uma pobre mãe faminta, com três filhos nos braços, poderia "subtrair" da gôndola de um supermercado uma barra de chocolate para saciar a fome (quando isso ocorre, as câmaras de TV flagram a mulher, que sai algemada para a prisão). A atitude seria justificada pela extrema necessidade de sustentar a vida moral. O que é bem diferente da apropriação imoral da coisa pública, denúncia da qual o PT procura se desvencilhar. O que se diz é que o partido, imaginando-se exclusivo senhor da ética e intérprete das demandas sociais, se achou legitimado para retirar do Estado superabundante os recursos e fazer deles o que bem lhe aprouvesse. Teria sido este o arrazoado que deu base à acusação de que "a ética do PT é roubar", feita pelo ex-presidente Fernando Henrique?

É evidente que a disputa eleitoral, já iniciada com a intensa mobilização dos pré-candidatos, é responsável por tons mais agudos na escala das acusações recíprocas. Também se pode dizer que a teia de corrupção que está sendo desvendada (plenamente?) não abriga apenas o território petista. Atores de quase todos os partidos - inclusive do PSDB - estão envolvidos ou na rede do mensalão ou no esconderijo do caixa 2. Portanto, por uma questão de justiça, não se pode garantir que o PT seja o único a ser apenado. Porém, ainda para ser justo, não há como deixar de reconhecer que o PT e seus dirigentes foram os responsáveis pelo furacão. O valerioduto e outros dutos de propina, objeto central da crise, nasceram dentro do partido de Lula. E é aqui que entra em cena a figura do presidente da República. Ele não pode e não deve se prestar ao papel de espanador de poeira. Trata-se de um desvio ético usar o poder que detém para limpar as cinzas que sujam seu partido. Aliás, um partido que morde e assopra o corpo central do governo, que é a política econômica. Não há como resistir à impressão de que, ao perdoar os erros do PT, Lula está dando uma banana para a sociedade.


Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor-titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br

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