O presidente Lula, adulado pelas pesquisas, insuflado pelos áulicos, está se superando. Sempre foi de fazer declarações equivocadas mas, nos últimos dias, excedeu-se. Ele disse recentemente que é um “predestinado a reduzir a pobreza no Brasil”. Mais um dos seus irrefreáveis e superlativos auto-elogios. Ser presidente deve mesmo inflar o ego, mas alguém ao seu lado deveria dar-lhe conselhos de humildade.
Aos números: a pobreza caiu mais em 94/95, na passagem entre Itamar Franco e Fernando Henrique, do que nos anos Lula. Caiu oito pontos percentuais no Plano Real; caiu menos de três pontos percentuais agora. Qualquer dúvida, consultar o Ipea, órgão oficial de pesquisa.
Na sexta-feira da semana passada, numa agenda dedicada exclusivamente à campanha eleitoral, o presidente Lula avisou que daria um número que surpreenderia os interlocutores: apenas 18% dos estudantes universitários de São Paulo estudam em escola pública; os outros, em universidade privada. Prova, garantiu, do descaso das autoridades paulistas com a universidade pública. Queria atingir seu concorrente Geraldo Alckmin; vitimou os fatos.
Referência de leitura para o presidente: o Censo de Educação Superior de 2004. Feito no governo dele, está fresquinho. Lá está registrado que o número é pior: 16% dos universitários paulistas estudam em escola pública e 84% em particular. Mas a culpa não é do governo estadual. Em São Paulo, o ausente é o governo federal, que dá matrícula para apenas 1% dos estudantes paulistas. Por público em São Paulo, entenda-se estadual e municipal. No Sudeste, o número é quase o mesmo, mostrando que não é um problema paulista: 17% a 83%. No Brasil todo, é de 28% a 72%. Recomenda-se ao presidente olhar os números calculados durante sua própria gestão. Isso já evitaria alguns dos equívocos diários.
Todo dia, é só abrir os jornais e encontrar as últimas pérolas: os auto-elogios, os erros de conceito, os números truncados, as avaliações intempestivas, as referências históricas desinformadas. A de quinta-feira foi a crítica à educação na década de 90, em que houve, segundo Lula, “um descompromisso com o futuro”. O nosso déficit educacional é enorme, mas ele ficou menor exatamente na década de 90, quando se universalizou o ensino fundamental. No começo da década, havia 18% de crianças fora da escola; no fim dos anos 90, estavam quase todas dentro das salas de aula. É o oposto do que diz o presidente. Na educação, há tanto a fazer que o melhor é cada presidente correr atrás do prejuízo.
As pesquisas eleitorais dão um enorme favoritismo ao presidente e ele tem uma grande chance de se reeleger por mais quatro anos. O povo vai decidir e ainda tem tempo para pensar. Se decidir por renovar o mandato, quem não gostar do resultado vai respeitar a decisão das urnas. Democracia é assim. Como presidente, Lula errou e acertou; adotou políticas certas e erradas, fez escolhas que resolvem ou que agravam velhos problemas. Avançou em alguns pontos, retrocedeu em outros; como todo governo. Mas imbatível o presidente é na quantidade de sandices que diz quando se solta, insuflado pelos aduladores. Por isso não gosta de entrevistas: não quer ser interrompido, nem contestado, nem questionado. Prefere o impune fluxo do non sense .
Uma parte do pensamento vivo de Lula da Silva apenas desinforma. Outra é pior: deseduca. Durante todo o seu governo, o presidente Lula deu sinais ambíguos aos movimentos sociais. Por atos, tem sugerido que eles têm direito de infringir a lei porque representariam os excluídos. Esse mesmo erro ele cometeu na questão recente com a Bolívia: afirmou que ela tinha direito de se apropriar de bens da Petrobras por ser pobre. As enormes desigualdades sociais são um fato; que os mais pobres sejam representados por esses movimentos sociais radicais é uma hipótese; que eles tenham indulto para desrespeitar a lei é um erro perigoso.
O que aconteceu esta semana não foi um fato isolado, não ocorreu por acaso. Veio sendo construído pelas ambigüidades do presidente Lula na relação com os movimentos extremados. Eles invadem fazenda produtiva e destroem propriedade privada e, em seguida, são recebidos no Palácio e, ao sair, avisam que vão continuar invadindo. Isso se repetiu ao longo de quatro anos. Na Bahia, o MST, movimento liderado pelo incluído João Pedro Stédile, invadiu a fábrica da Veracel e destruiu parte do que estava plantado. Em janeiro do ano passado, o presidente visitou o acampamento dos invasores e disse que, quando terminasse o governo, voltaria para os seus “amigos verdadeiros”. Na época, justificou a lentidão do governo na reforma agrária culpando a lei e a Justiça.
Em maio de 2005, enquanto Lula recebia os líderes do movimento no Palácio, sem-terra se enfrentavam com a Polícia Militar em frente ao Congresso num conflito que deixou 40 feridos e que prenunciava o que aconteceu esta semana. Quando a Via Campesina destruiu o laboratório da Aracruz, o governo estadual suspendeu as verbas públicas para o movimento. O governo federal não teve a mesma firmeza.
Quando o presidente diz que os mensaleiros foram “submetidos à tortura” na CPI, é apenas esquisito. Mas quando ele incentiva quem descumpre a lei, é uma perigosa insensatez.
Miriam Leitão, Panorama Econômico, O Globo (10/06/06)
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