A imagem mais chocante exibida pela televisão, depois daquelas do inferno no prédio onde explodiu o Airbus da TAM, foi a dos gestos obscenos com que o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia e um auxiliar reagiam à reportagem do Jornal Nacional sobre os problemas mecânicos no sistema de freios da aeronave, o que poderia ter causado a tragédia de Congonhas. A cena, captada por um cinegrafista da TV Globo, choca menos pela vulgaridade das raivosas expressões de desforra de um graduado assessor do presidente e de um dos seus subordinados do que por evidenciar a despudorada torcida do círculo íntimo do presidente da República - a começar dele próprio, decerto - para que a apuração das causas da catástrofe não revele a verdade inconveniente para o governo. Essa preocupação, ficou claro, se sobrepõe ao seu alegado desejo de que a investigação conduza à verdade dos fatos, sejam quais forem.
O espectro que assombra o Planalto é o da comprovação de que o desastre não foi uma fatalidade, ou o que os matemáticos denominam "evento discreto", que se contém em si mesmo sem guardar relação alguma com quaisquer outros. É vital para o lulismo que se conclua que o horror da terça-feira e a crise aérea que atormenta o País há 10 meses - por gritante incapacidade do governo para resolvê-la - não têm qualquer relação de causa e efeito. Mas, nesse sentido, há elementos de sobra para se afirmar que as grosseiras expressões mímicas de vingança jubilosa mostradas no Jornal da Globo são, no mínimo, precipitadas. A admissão da TAM de que estava com defeito o reversor de um reator do Airbus, usado para reduzir a velocidade dos aviões no solo, de forma alguma elimina a hipótese de que a causa primária do desastre foi o estado da pista onde o jato havia pousado normalmente.
O fato indiscutível é que, tendo tocado o chão no lugar certo e na velocidade apropriada, o aparelho deslanchou e foi se deslocando para a esquerda. Uma coisa e outra podem ser atribuídas à água acumulada na pista, como em geral acontece quando um carro derrapa. É o que deve ter levado o piloto a tentar arremeter, ao se dar conta de que o Airbus não se deteria antes do fim da pista de exíguos 1.939 metros. Com um reversor ligado e outro "pinado" (imobilizado), o procedimento fracassou, consumando-se a tragédia. Em suma, não estivesse a pista um "sabão", como compararam vários pilotos, muito provavelmente o avião não teria deslanchado ou o problema seria manejável, apesar do reversor. E não fosse a Infraero o desastre que é, não teria liberado indevidamente a pista - perigosa mesmo seca para aviões do porte de um Airbus, por ser muito curta - para uso até sob chuva, embora ainda desprovida dos sulcos para o escoamento da água.
Além disso, a estatal espalhou a patranha de que a pista foi reaberta com base em um laudo favorável do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP. Mas esse antro de incompetência, politicagem e corrupção não existe num vácuo. É um elo da caótica cadeia de órgãos federais responsáveis pelo colapso do controle da aviação civil no País, sob o (des) governo de um presidente da República cujo despreparo e inapetência para o trabalho duro se afiguram insanáveis - quando não fatais. Daí a incapacidade do governo de "eliminar a presença, no sistema de transporte aéreo brasileiro, de fatores estruturais, que geram riscos enormes, inclusive de queda de aeronaves", como reivindica o governador paulista José Serra em circunstanciado documento enviado a Lula. E daí a impossibilidade de considerar a tragédia do Airbus uma fatalidade imprevisível: era, sim, um desastre à espera de acontecer.
Só não se esperava que o mais loquaz dos presidentes brasileiros até onde a memória alcança ficasse com a língua presa desde a catástrofe até a noite de ontem. Aturdido pela segunda ocorrência do gênero na sua gestão, quando mal começava a se recobrar das vaias ouvidas na abertura do Pan, Lula delegou a um porta-voz até mesmo os pêsames às famílias das vítimas, não se apresentando em rede nacional - ainda que só para isso - na própria terça fatídica. Nunca antes ficara tão escancarada a sua inaptidão para lidar com o que o contraria. E pensar que, aos 10 meses de apagão aéreo, ele continua pedindo "respostas rápidas" para o descalabro. Seria risível, não fosse trágico.
Editorial EStadão
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