Nunca antes na história deste país houve desastre aéreo de iguais proporções ao ocorrido em São Paulo no dia 17 de julho. Também nunca antes na história deste país houve tamanho caos no setor de aviação civil como aquele que experimentamos nos últimos dez meses. Assim como nunca antes na história deste país havia ocorrido um acidente de proporções maiores do que o do avião da Gol, em setembro do ano passado. Se o presidente Lula se incomodou com as vaias que a platéia de classe média lhe dedicou na abertura dos Jogos Pan-Americanos, que se prepare, porque certamente virão outras e mais estridentes. E que não se fale em "grosserias", pois as vaias a Lula são pecados menores diante dos despautérios acerca da crise aérea emitidos por seus ministros Marta Suplicy e Guido Mantega, sugerindo reações orgasmáticas ou atribuindo o caos nos aeroportos ao crescimento econômico. O que esperar daqueles que são diretamente afetados senão vaias?
Até agora, caso não computemos as 145 vítimas do acidente com o Boeing da Gol, a incompetência do governo para solucionar a crise do setor aéreo ainda não havia causado vítimas fatais, apenas transtornos e prejuízos. Desta feita, porém, caso se confirme que o desastre de São Paulo foi causado por problemas relacionados às condições da pista de Congonhas ou por algum erro dos órgãos de segurança aérea, a incapacidade do governo terá provocado perdas irrecuperáveis. Mas mesmo que não fique comprovado que foi a inépcia do governo federal o fato causador da tragédia, dificilmente a popularidade do presidente Lula escapará ilesa do desastre. Isto porque mesmo aqueles segmentos da população que não se sentem diretamente afetados pelo caos dos aeroportos - e que são o principal estuário da aprovação do presidente - deverão se sensibilizar com a grande perda de vidas. E será difícil para o governo convencer a todos de que sua inapetência para debelar a crise não está relacionada à catástrofe que culminou com mais de 190 mortos.
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Apagão não é só aéreo, mas de todo o governo
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Com isto, prova-se que o presidente Lula foi tímido ao afirmar que com educação e saúde não se brinca, pois deslizes com a primeira provocam analfabetos e, com a segunda, mortos. Mais adequado seria dizer que com governo não se brinca, pois seus deslizes podem sempre provocar danos irrecuperáveis - inclusive mortes. Poder-se-ia assim dizer que a nomeação de correligionários incompetentes e a inação no setor de transportes também causam mortes. Só no primeiro fim-de-semana de julho último, por exemplo, foram 91 as mortes nas estradas brasileiras. Esse número é 71% superior ao do ano passado, sendo o aumento atribuído em parte aos reflexos do caos aéreo, pois um número maior de pessoas optou por utilizar as estradas como forma de fugir da confusão dos aeroportos. Mas para tomarmos casos menos anedóticos: segundo o IPEA, "em 2005 foram ao todo 10.422 mortos em rodovias federais". Isto equivale a 55 acidentes como o do dia 17 em São Paulo.
Ora, embora se possa atribuir boa parte dessas mortes à incúria dos próprios motoristas, que dirigem embriagados, acima da velocidade segura etc., é bem verdade que muitos dos acidentes são provocados pelas péssimas condições de operação de nossas estradas. Também nessa frente o governo federal não se tem desincumbido bem, preferindo optar por operações tapa-buracos às vésperas de eleições do que por uma ação estruturada voltada à recuperação das rodovias federais. A nomeação do ministro dos Transportes, por exemplo, não foi mencionada pelo presidente ao lado da Saúde como um caso em que a competência para gerir o setor seja mais importante do que a serventia para o toma-lá-dá-cá político, pois a brincadeira nessa seara poderia causar mortes. Mas o fato é que causa, e em medida muito maior do que no caso do setor aéreo - ao menos por enquanto.
É importante mencionar aqui o setor rodoviário porque o governo federal optou, no início deste ano, por postergar a concessão de diversas rodovias federais sob a justificativa de que seria necessário minorar o custo dos pedágios. Curioso que o mesmo IPEA aponta que o custo dos acidentes em 2005 foi da ordem de R$ 24,6 bilhões - incluídos aí custos hospitalares, remoção e traslado de acidentados, além das perdas produtivas. Podemos perguntar o que sairia mais barato: gastar alguns centavos a mais na cancela do pedágio ou pagar o preço de milhares de mortes anuais? É claro que o governo pode alegar que precisa preocupar-se com a modicidade tarifária, mas tendo em vista o longo período em que as estradas já estão a requerer melhorias e a preocupação - antiga - do governo Lula em reduzir tarifas de pedágio, bem seria o caso de ter antecipado os estudos necessários a promover concessões menos onerosas para os usuários. Muitos destes certamente prefeririam pagar pedágios e trafegar em segurança o invés de terem de arriscar a vida e o patrimônio nas lastimáveis estradas federais brasileiras.
Ao direcionar minha discussão nesta coluna para a questão das estradas não pretendi menosprezar a gravidade do problema que hoje afeta o setor aéreo, mas apenas chamar a atenção para o fato de que, apesar de sua menor visibilidade - dado o caráter disperso e banalizado dos acidentes - o caos não é só aéreo, mas de todo o setor de transportes. As mortes não são apenas aquelas provocadas pelos imensos desastres das quedas de aeronaves, mas também pelos milhares de "pequenos" acidentes rodoviários provocados por décadas de incúria governamental. E poderíamos ainda mencionar os milhares de mortes ocorridas nos grandes centros urbanos em virtude da precariedade do transporte público - em particular as de motociclistas, cada vez mais freqüentes, dado o recurso a esse meio de transporte como modo de fugir de forma pouco custosa e ágil da precariedade do transporte público e do caos do trânsito urbano. Por isso, nunca antes na história deste país foi tão necessário que a classe política considerasse importante não brincar com o governo em seus diversos setores.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político e professor do Departamento de Política da PUC-SP - claudio.couto@pucsp.br
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