14.7.07

Um poço de águas revoltas

A plataforma P-16, uma das cinco usadas pela quadrilha para fraudes em licitações: treze presos

Maior empresa brasileira, com um faturamento anual de 205 bilhões de reais, a gigante Petrobras sempre foi uma presa atraente para as matilhas de corruptos que vivem em busca de negócios fáceis e do dinheiro público. Mas nunca um ataque aos cofres da estatal havia sido revelado e esquadrinhado com detalhes tão impressionantes quanto na semana passada. Quando veio à tona a operação Águas Profundas, da Polícia Federal, o que se viu foi um esquema construído dentro de seus corredores, nos quais os fraudadores circulavam com incrível desenvoltura. Os sócios Mauro Zamprogno, Fernando Stérea, Wladimir Gomes e Simon Clayton formaram a Angraporto especificamente para participar de concorrências na Petrobras e cooptaram funcionários da estatal do petróleo para sangrar seus cofres. Durante quatro anos, a partir de julho de 2003, eles obtiveram vantagens em cinco licitações, cujo valor total chega a 239 milhões de reais, pelo que se sabe até agora. O esquema, embora milionário, é pequeno comparado à média anual dos investimentos da companhia, de 32 bilhões de reais. As licitações nas quais se encontraram provas de irregularidade foram feitas para serviços como reparos em plataformas antigas, construídas na década de 80. O que impressiona é o poder que a quadrilha tinha de interferir em cada detalhe dos editais. A operação pode ser o fio da meada para se chegar a esquemas muito maiores nas entranhas da estatal.

Mesmo sujeita a auditorias permanentes, em razão de ter ações em bolsas internacionais e de ser uma empresa de economia mista, a Petrobras conjuga dois fatores que são o objeto de desejo de qualquer empresário mal-intencionado: verbas monumentais e a dificuldade de fiscalização de uma estrutura tão complexa. A operação, desencadeada pelo Ministério Público Federal em 2005, contou com a ajuda da auditoria interna da empresa. A direção da Petrobras colaborou com os policiais no processo de investigação e, em nota oficial, esclareceu que só não agiu antes contra os suspeitos para "não prejudicar o curso das investigações". Segundo o procurador Carlos Alberto Aguiar, os técnicos não se limitaram a atender a pedidos de esclarecimentos. Eles mesmos trouxeram informações que revelaram novas fraudes. Mas o fato é que as maracutaias ocorriam desde 2003 sem que se tivesse notícia delas. O caso só se tornou conhecido depois de uma denúncia ao Ministério Público Federal.

Em um dos processos investigados, flagrou-se a quadrilha mudando detalhes no edital já publicado, para criar obrigações que somente a empresa do esquema poderia cumprir. Bastou uma redução de 77 centímetros no calado (altura da linha-d'água em relação ao fundo do mar) do cais para que a Angraporto pudesse participar da concorrência. Em outra demonstração de seu poder de fogo junto aos funcionários da comissão de licitação, a Angraporto conseguiu que se modificasse um trecho do edital em que se exigia que o ganhador tivesse um cais para atracar a plataforma. Para adequar o edital às possibilidades da Angraporto, mudou-se a exigência para "área abrigada". Além de fraudar licitações, a quadrilha simulava a necessidade de reparos técnicos, que eram pagos mediante a apresentação de notas frias. Para dificultar a fiscalização, criou pelo menos cinco empresas-fantasma, pelas quais transitavam o dinheiro a caminho das contas dos empresários e as propinas pagas aos funcionários da estatal, dois deles já demitidos. O pagamento também era feito em viagens internacionais e em presentes caros, como automóveis.
Durante os últimos dois anos, enquanto investigava o que acontecia nos corredores da comissão de licitação, as escutas telefônicas da PF flagraram a desinibida euforia com que os empresários comemoravam o assalto ao dinheiro da estatal. De todas as conversas ouvidas por policiais e procuradores, uma chama atenção. Nela, Mauro Zamprogno vangloria-se de ter pago 4.000 reais por uma garrafa de vinho em um restaurante. Não foi a única da noite, embora as demais custassem menos: algo como 1.000 reais. Zamprogno descrevia a comemoração pela vitória em uma das licitações. A felicidade era diretamente proporcional à ousadia com que atuava. No curso da investigação, os policiais puderam montar um perfil detalhado dos integrantes do esquema. Quem mais os impressionou foi Zamprogno. Descobriu-se, por exemplo, que em dezembro de 2000 ele conseguiu a proeza de comprar por 295.000 reais um terreno da Rede Ferroviária Federal, no Espírito Santo, e vendê-lo no mesmo dia à prefeitura de Vila Velha por 600.000 reais. Outro que chama atenção é o contador Ruy Castanheira, um dos líderes do grupo. Além de negócios espúrios com a Petrobras, ele tem forte ligação política e foi diretor financeiro do instituto responsável por um dos principais programas sociais do governo de Rosinha Garotinho, no Rio de Janeiro. A PF suspeita que Castanheira seja uma peça-chave da engrenagem que também desviava dinheiro dos cofres estaduais, o que será objeto de nova investigação.

Os documentos apreendidos depois de 89 mandados de busca e treze prisões pela PF ainda não começaram a ser examinados. Também serão vistas com lupa todas as licitações das quais participaram as empresas ligadas ao esquema nos últimos anos. Em um relatório preliminar, o Tribunal de Contas da União (TCU) analisa as licitações para a construção de duas outras plataformas, a P-52 e a P-54. Há suspeitas de que tenham sido feitos pagamentos indevidos, por meio de correções cambiais não previstas em contrato. Com isso, as empresas encarregadas da construção das duas plataformas teriam obtido 316 milhões de reais a mais. A direção da Petrobras discorda do TCU e afirma que mudanças no escopo financeiro dos projetos são rotineiras. Divergências como essas tornam imperiosa a necessidade de dar mais transparência às ações da empresa.
Veja

Nenhum comentário: