5.7.06

A cerimônia da hipocrisia

Foi mais uma daquelas encenações em que o presidente Lula é mestre a cerimônia de transmissão de cargo no Ministério da Agricultura. O chefe do governo cobre de elogios rasgados o colaborador que se vai - no caso, Roberto Rodrigues - e este, por sua vez, faz a parte que lhe toca no espetáculo de faz-de-conta, não pelo que diz, mas pelo que deixa de dizer. Na solenidade de anteontem, havia por isso mesmo a sensação de que se assistia pela segunda vez à despedida do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, para não remontar à partida do titular da Casa Civil, José Dirceu - um e outro saídos pelo presidente, por notórios motivos de força maior.

Se, nesses episódios, Lula fez de conta que não havia empurrado os demissionários para o cadafalso, agora quis fazer crer que nada do que pudesse fazer neste mundo demoveria Rodrigues de seu gesto. Afinal, fingiu se resignar - "você decidiu que deveria dar um tempo na vida" -, como se, possuído por um impulso insopitável, o ministro tivesse resolvido, assim, sem mais aquela, jogar tudo para o alto sem que jamais o presidente tivesse contribuído para isso. E, no mesmo tom de transbordamento familiar a Dirceu e Palocci, Lula só faltou se lançar aos braços de Rodrigues quando disse: "Quero que saiba que da parte do presidente da República você deixou mais que um amigo, um irmão."

Muy amigo e muy hermano, é apropriado observar: em três anos e meio de fraternal coabitação no governo, o presidente Lula recebeu seu ministro da Agricultura não mais de quatro vezes. Os que conhecem os fatos não podem relevar a falsidade do presidente ao ouvi-lo lamentar-se: "Eu vivia dizendo para o Roberto" que "tudo isso parece futebol. Tem dias em que a gente é aplaudido, mas meio minuto depois a gente perde um pênalti e recebe vaia." A metáfora, além de gasta, ofende quem aplaudiu (ou vaiou) e quem foi aplaudido (ou vaiado). O setor agrícola nacional teve motivos substanciais para uma coisa e outra, mas não foi devido aos seus humores variáveis que o seu representante foi "dar um tempo na vida".

Já a alocução de despedida do ex-ministro, exatamente por isso, teve um ponto alto e o seu contrário. Citando um exemplo depois do outro, ele fez uma exposição brilhante sobre os múltiplos impactos positivos da agricultura brasileira - sem dúvida a primeira do mundo em matéria de eficiência - sobre o conjunto das atividades econômicas e o nível de emprego industrial. "Não há calça jeans sem plantador de algodão, não há sapato e bolsa sem o pecuarista, não há etanol sem cana, não há pão sem trigo, óleo sem soja, manteiga sem leite", enumerou.

Esse setor, a âncora verde do esforço antiinflacionário do Real e o principal fator do superávit comercial recorde do Brasil, foi sabotado sistematicamente por aqueles que, dentro do governo Lula, e com apoio ostensivo do presidente, são aliados dos inimigos juramentados do agronegócio. Mas, se na sua fala Rodrigues fez justiça a uma classe vítima do preconceito e do vilipêndio, faltaram-lhe por outro lado as palavras corajosas que teriam liquidado na raiz o lero-lero do presidente sobre a sua saída. Pois, no limite, ele se demitiu para não ter de assinar a elevação dos índices de produtividade abaixo dos quais uma propriedade pode ser desapropriada para fins de reforma agrária.

O seu substituto e ex-auxiliar, Luis Carlos Guedes Pinto, embora técnico qualificado em assuntos agrícolas, é petista de carteirinha e parece enxergar o colosso do agronegócio nacional pelas lentes deturpadoras da reforma agrária como a revolução de que o campo brasileiro necessita para ser uma bonança social. No discurso de posse, Guedes fez questão de acentuar que "há consenso" no governo sobre a revisão dos índices. O "dissenso" estava saindo do governo naquele momento. Poucos acreditam, de qualquer forma, que o presidente irá autorizá-la antes da eleições.

Tudo o que ele não quer são conflitos com parcelas do eleitorado que já não têm apreço por sua candidatura. Mas, sendo as campanhas uma incógnita, nada assegura que Lula adiará ao menos até outubro a decisão de alterar os índices. Nesse sentido, se Roberto Rodrigues tivesse vinculado o problema à sua saída, não apenas faria por merecer a gratidão da classe a que pertence, como teria agido na linha do interesse nacional. À falta disso, decerto não bastará pedir a Deus, como declarou o presidente, "que não tenhamos mais crises (no setor) nos próximos dois, três anos".
Estadão