10.7.06

As Forças Armadas na América Latina

O golpismo tradicional perdeu força e sentido na região, mas a escalada autoritária, por outras vias, continua sendo ameaçadora

O PANORAMA POLÍTICO da América Latina comporta riscos e problemas, mas está longe de ser um desastre. Basta lembrar o foco principal de interesse do ano em curso: as eleições no Chile, no Peru, no México, na Colômbia, no Brasil e em outros países. Fala-se da significação das candidaturas, do papel relevante ou secundário dos partidos, dos índices de comparecimento, das campanhas acirradas e às vezes sujas.
Em contraposição, não há praticamente quem fale na ameaça de golpes militares. É óbvio que isso não ocorre por acaso. Tomo, como exemplo, três países significativos: Brasil, Argentina e Chile. Neles, há pouco mais de 30 anos, estavam no poder ditaduras militares cujas diferenças podiam ser medidas pelo grau maior ou menor de ferocidade. De lá para cá, em meio às vicissitudes, regimes democráticos foram instituídos e mantiveram-se ao longo do tempo.
Ressalvo que estou falando da "democracia formal" (eleições, liberdade de expressão, rotatividade no poder, separação de Poderes), cujo valor tende a ser esquecido por quem despreza as liberdades ou as considera um dado natural, como o ar que se respira.
Ao avanço democrático, correspondeu o recuo das Forças Armadas para sua área específica de atuação. A emergência das ditaduras, a partir dos anos 60 do século passado, teve muito a ver com o quadro internacional daquele período, caracterizado pela Guerra Fria.
A ameaça de revoluções socialistas ou antiimperialistas, na esteira da Revolução Cubana, levou o governo americano a apoiar golpes militares, que serviam a seus interesses estratégicos. Mas os golpes foram também conseqüência das condições internas de cada país, em cujo caldo fermentaram as Forças Armadas, associadas a elites políticas e empresariais, em nome da hierarquia e da ordem. Hoje, as preocupações são outras e em nenhum dos países mencionados há sintomas de que a corporação militar pretenda voltar à arena política. No caso brasileiro, alguns passos institucionais importantes foram dados, como a criação do Ministério da Defesa, mesmo que seu papel até aqui tenha sido obscurecido. Ao mesmo tempo, vozes da sociedade civil organizada têm contribuído para cortar pela raiz ensaios de medidas autoritárias esboçados nos últimos anos.
Entretanto, esse quadro não nos induz ao otimismo sem qualificações porque há circunstâncias negativas em jogo, nada desprezíveis. Ainda tomando o exemplo brasileiro, assinalo o descrédito gradativo do regime democrático, resultante da desmoralização de partidos e de muitos políticos; o funcionamento precário das instituições; a decepção com os frutos sociais da democracia, neste último caso produto da ilusão de que a democracia daria de tudo a todos.
O descrédito tem sido responsável pela emergência de personagens neopopulistas, não raro de origem militar, cuja inclinação autoritária é evidente. É o caso do coronel Humala, que quase chegou ao poder no Peru, de Evo Morales na Bolívia, com sua especificidade étnica e, principalmente, de Hugo Chávez.
Na presidência da Venezuela, este encarna uma forma aguda de erosão da democracia, por caminho diverso dos golpes militares. Eleito segundo as regras democráticas, o presidente venezuelano vem impondo, passo a passo, um regime autoritário, de que são exemplos as restrições à mídia -a televisão foi alvo recente de suas atitudes intimidadoras -, a intervenção no Poder Judiciário, a militarização da massa de aderentes, a imposição de um currículo escolar baseado nos princípios da chamada revolução bolivariana.
Chávez sustenta também a necessidade de sua sucessiva reeleição, preparando o clima para farsas eleitorais plebiscitárias. É cedo para se dizer quão longe ele irá. Há sintomas de que sua influência na América Latina está declinando, por força da malsucedida tentativa de intrometer-se em assuntos internos de outros países, como se viu no decorrer das campanhas eleitorais do Peru e do México.
Ao mesmo tempo, a entrada da Venezuela no cambaleante Mercosul, bem-vinda em outras circunstâncias, tende a gerar conflitos entre parceiros, mais do que integração, dadas as pretensões à liderança continental do presidente venezuelano. Em resumo, o golpismo tradicional perdeu força e sentido, alguns ventos benignos sopram na América Latina, mas a escalada autoritária, por outras vias, continua sendo ameaçadora.
Esse é o preço que se paga pela perversão dos princípios democráticos e a persistência das gritantes iniqüidades sociais.

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BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional da USP).