Propinoduto italiano
Caso das teles cresce na Itália e aperta brasileiros
por Márcio Chaer
Ao decidir pedir informações à Justiça italiana sobre notícias a respeito do pagamento de propinas a parlamentares brasileiros por parte da Telecom Italia, como anunciou esta semana, a Câmara dos Deputados pode ajudar a esclarecer um intrincado capítulo da história empresarial recente do país.
Os acionistas da operadora de telefonia italiana querem saber quem ficou com os milhões de dólares que os ex-administradores da empresa trouxeram para o Brasil. Em confissões lançadas nos autos já se havia citado subornos a policiais federais, lobistas, jornalistas e, agora, a parlamentares. Nominalmente há poucos citados, como Luís Roberto Demarco, o empresário que criou as lojinhas virtuais do PT, um esquema partidário de arrecadação.
Foi da empresa de Demarco que saiu o arquivo que gerou denúncia do Ministério Público contra Daniel Dantas — alvo da operadora e obstáculo para que os italianos assumissem o controle da Brasil Telecom. Foi ele também que coordenou as ações dos fundos de pensão no mesmo sentido; produziu os questionamentos de comissões parlamentares e tornou-se assistente de acusação do MP contra Dantas.
Os novos dados trazidos pelo processo que corre em Milão revisam os contornos do escândalo. Até então, tinha-se que Dantas recorrera à contratação da empresa Kroll, chegando a investigar estrelas petistas de primeira grandeza. Os italianos tomaram conhecimento da contratação e trouxeram os fatos a público, através da operação que ficou conhecida como "Chacal".
Pelas confissões dos italianos já encarcerados, tornaram-se réus ou aderiram à delação premiada, a história é reescrita. Um dado novo é a tradutora do "serviço secreto" da operadora, Luciane Araújo. Em entrevista exclusiva, ela conta como funcionava o relacionamento com os brasileiros — a quem os italianos chamavam de "canibais" (leia a entrevista ao final da notícia).
O chefe da espionagem da empresa Angelo Jannone, que trouxe o CD para o Brasil com o famoso dossiê, foi preso. Também passou pela prisão, o vice-presidente de Segurança da Telecom Italia, Fabio Ghioni, autor da “formatação” do CD. Mario Bernardini, outro protagonista ativo do esquema optou pela delação premiada. Ele foi dono de empresas que, terceirizadas, faziam arapongagem, com exclusividade, para a TI.
Bernardini tornou-se importante testemunha do caso. Segundo ele, os executivos da operadora italiana, a quem ele serviu até 2006, usaram a estrutura da empresa para criar uma rede internacional de espionagem para compra e venda de informações. O Ministério Público italiano, segundo o jornal “La Repubblica”, está rastreando o pagamento a "lobistas especializados em comunicação próximos a políticos brasileiros, importantes servidores públicos, mas também simples policiais".
Na fase de instrução, os promotores e juízes acabaram descobrindo uma brasileira que trabalhou com Bernardini. Luciane Araujo, a tradutora e intérprete encarregada de traduzir as comunicações e informações trocadas entre brasileiros e italianos. Seus dois primeiros depoimentos foram dados na condição de testemunha. Nas duas convocações seguintes ela foi ouvida como informante.
Luciane não só repete o que já haviam dito Bernardini e Jannone, sobre o pagamento a brasileiros que os ajudavam, como conta em detalhes que, em troca do dinheiro, os colaboradores enviavam, regularmente, informes das investigações da Polícia Federal movidas contra Daniel Dantas e seus parceiros.
Segundo se divulgou à época, a Polícia Federal “montou um grupo de elite, com técnicos de vários órgãos especializados em finanças, para analisar todas as operações do Banco Opportunity no Brasil e no exterior. Integram o grupo peritos da própria PF e do Ministério Público, e auditores fiscais da Receita Federal, do Banco Central e da Previdência”. A própria PF divulgou na ocasião quem foi o autor do roteiro das investigações: Luís Roberto Demarco.
Pelo depoimento da tradutora de Bernardini, Demarco era uma espécie de repassador de pagamentos a outras pessoas. Luciane Araujo narra desentendimentos por conta de atraso do ordenado. Em uma das ocasiões, os prejudicados teriam sido jornalistas ligados a Demarco. A rusga chegou a tal ponto que Mario Bernardini ficou com medo de voltar ao Brasil e ser preso pela PF. Sempre nas palavras de Luciane, seu chefe pediu ao lobista brasiliense Alexandre Paes dos Santos para fazer uma verificação do risco. Bernardini sabia que do dossiê, divulgado pouco antes no Brasil, seu nome fora suprimido para que ele pudesse continuar espionando sem maiores preocupações. Mas temia o parceiro.
A checagem concluiu que para informar as artes do italiano, Demarco teria que confessar as suas. E Bernardini pôde continuar vindo ao Brasil. No segundo semestre de 2004, o detetive alugaria um avião, na falta de helicóptero, em Salvador para filmar e fotografar uma fábrica de pneus. O motivo era a suspeita de que Daniel Dantas era o dono oculto da empresa.
A apresentação da denúncia na Itália não mata todas as curiosidades. Fica no ar, por exemplo, a atitude que deverá tomar a Polícia Federal brasileira caso a peça acusatória cite os nomes (ou pseudônimos, em alguns casos) de integrantes seus que usaram suas franquias institucionais para uma operação extra, remunerada, para interferir em uma disputa comercial. Mais ou menos como o árbitro de um jogo de futebol que mata a bola no peito e chuta para o gol de um dos times.
A tradutora/intérprete de Bernardini, Luciane Araújo, citou nomes incompletos de gente da PF como R. Menezes, Lessa, Godoy e Geraldo. Outros personagens mencionados nas conversas: o presidente da Previ (Fundo de Pensão do Banco do Brasil), Sérgio Rosa; o ex-ministro Luiz Gushiken; o jornalista Paulo Henrique Amorim; o atual presidente da Brasil Telecom, Ricardo Knoepfelmacher; parlamentares petistas, como Ideli Salvati e até o juiz que cuidou do processo do Opportunity em Cayman, Kellog.
Boa parte desse grupo tinha por objetivo unicamente derrubar o obstáculo que os separava do comando da Brasil Telecom: o banqueiro Daniel Dantas. A meta foi alcançada quando o Citigroup, finalmente, retirou-o da gerência de seus fundos de investimento. Juntos, a multinacional italiana, o grande banco americano, os fundos de pensão, a Polícia Federal e uma das principais células do partido do governo, o PT, venceram a partida. Quanto custou, é possível que a justiça italiana responda em breve.
Leia trechos da entrevista da tradutora
Luciane Araújo — Fui convocada pela justiça italiana três vezes. Duas como testemunha e uma como informante. Falei tudo o que sei a respeito, porque percebi que a coisa é séria. Fiz a minha parte. Na terceira vez fui chamada para reconfirmar o que tinha dito, o que eu tinha apresentado.
ConJur — A briga acontece simultaneamente no Brasil, na Itália, e nas Ilhas Cayman, certo?
Luciane Araújo — É. Na última vez em que depus foi que me dei conta de quanto a coisa é grande, muito grande. Foi quando eles me falaram: “Olha, isso aqui é coisa séria. Isso aqui é uma investigação que está envolvendo o mundo e é através do Brasil que a gente vai chegar lá”.
ConJur — É sério, mas meio cinematográfica, não?
Luciane Araújo — Sabe porque acho que vai ser sério? Porque envolveu muito dinheiro e lá tem o seguinte: ao contrário dos brasileiros, que perdem dinheiro e acha engraçado, lá o pessoal fica em cima. Quer saber para onde foi o dinheiro do povo, o que foi feito. Por isso eu acho que vai ter conseqüências sim.
ConJur — O Mario Bernardini tinha uma atuação no setor de inteligência no governo italiano e depois abriu uma empresa privada. Essa empresa privada é contratada pela Telecom Itália, Olivetti e Pirelli, que a essa altura eram quase que uma coisa só, não é?
Luciane Araújo — A história é bem complicada. Vamos dizer que a concentração em termos de Brasil era grande, porque é normal que seja. Eles contrataram o Bernardini. O Bernardini aciona algumas pessoas no Brasil para defender os interesses do grupo econômico. Aí aparecem personagens como o Demarco.
ConJur — O Demarco foi se oferecer ou eles vieram aqui para recrutá-lo?
Luciane Araújo — Não. O contato foi feito aqui e, eu acredito, não posso dar detalhes disso, mas acredito que foi através do Jannone. O contato dele era com o Bernardini e através desse contato ele fez todos os contatos com as pessoas, vamos dizer, de peso político daqui.
ConJur — Houve contato com o Gushiken ou o Demarco falava por ele?
Luciane Araújo — Ele não teve contato direto. Pelo menos por meu intermédio não teve. O Demarco o mencionava o tempo todo, assim como o Marcelo Elias. Aí sim. Aí você tinha realmente mensagens. Hoje eu não sei se a escolha do idioma português para a comunicação era inteligente. Eles queriam realmente falar em português. Acho que a segurança era mais para o pessoal da Itália, para ter certeza de que o que foi dito foi exatamente aquilo, queriam exatamente a coisa ao pé da letra para ter certeza que o que foi dito ali era o que eles entenderam (...).
ConJur — No depoimento aparece Ideli S., que certamente é a senadora Ideli Salvati. Ela também foi mencionada com todas as letras? Ou usava-se codinomes?
Luciane Araújo — Eu acho que o Bernardini teve um encontro com ela, alguma coisa desse tipo. Poucas pessoas eram mencionadas indiretamente, a não ser, em um caso que foi mencionado “o presidente”. Então não foi dito o nome, foi dito “o presidente”.
ConJur — Que no caso, como mencionava, era o presidente do Brasil.
Luciane Araújo — Exato. Falava “o presidente”. Então era diferente. Era o único que não era nominado muito claramente.
ConJur — Você disse que o Demarco mencionou inclusive o juiz de Cayman, o Kellog. Você tem alguma lembrança do que se falava a respeito desse juiz?
Luciane Araújo — O que se falava era o seguinte: frases limitadas, do tipo: “O fulano está insatisfeito” e isso era uma conclusão que o fulano estava querendo mais alguma coisa.
ConJur — Ou que não tinha recebido o combinado.
Luciane Araújo — Ou então quando era com o contato da PF, ele já era mais específico.
ConJur — João Alves ou Álvaro eram codinomes ou tem alguém com esse nome mesmo?
Luciane Araújo — Tem. Tanto que eu tinha dele um cartão mesmo, com nome, endereço, o próprio cartãozinho.
ConJur — O José Agripino será que era o senador mesmo que foi mencionado?
Luciane Araújo — Eu acredito que sim, porque não tem como não ser...
ConJur — Agora, há um personagem muito engraçado que é o Tiago Verdial, nosso espião português. Ele aparece logo no começo, você conseguiria lembrar mais ou menos quando ele apareceu nessa novela?
Luciane Araújo — Logo no inicio. Inclusive nos contatos com o pessoal (...) tinha sempre a presença dele, ou pelo menos aquilo que eu entendi, tinha sempre esse ponto de discernimento.
ConJur — Como eram feitas as negociações? Como se arbitrava o valor de cada informante?
Luciane Araújo — Esse detalhe eles não me davam. Porque na prática o que acontecia? Aqui tinha um ponto, vamos dizer, culminante onde estavam acontecendo as coisas e onde ele precisava ser informado. Por que precisava ser informado? Porque os pagamentos eram feitos e vinham através de lá. Então eles cobravam. As pessoas que estavam precisando de mais atenção econômica. Então na verdade a conversação era particularmente enviesada. Os pagamentos eram tratados pelo Jannone, ou pelas secretárias. Elas chamavam e diziam: “A fatura total de tanto vai ser paga em tal das agências”. Porque não era só a Globals, havia outras.
ConJur — Havia muita gente da Polícia Federal a serviço?
Luciane Araújo — O contato de nome João é quem designava e especificava quem receberia. Ele era quem dizia “é para o trabalho de investigação, esse aqui é para o colega, esse aqui é para uma distribuição que você sabe que (...)”. Era muita gente.
ConJur — Dá para ter uma noção de ordem de valor?
Luciane Araújo — Não. Mas se falava de muito dinheiro.
ConJur — O maior valor que você ouviu falar lá foi de quanto?
Luciane Araújo — As faturas mínimas, para você ter uma idéia, eram de 180 mil dólares. Mas isso não era uma coisa... Estou te falando semanalmente esse dinheiro (...).
outra pessoa — Toda semana tinha isso?
Luciane Araújo — Tinha.
outra pessoa — Durante quanto tempo isso?
Luciane Araújo — Mais de um ano. Eram faturas altíssimas. Se falavam sempre de faturas altíssimas. Havia colaborações em torno de 600 mil, a 650 mil, sempre falando de dólares. Mas não saia numa fatura só. Era para a encomenda.
ConJur — O Verdial era bem remunerado?
Luciane Araújo — Isso quem acertava era sempre o João da PF. Ele que cuidava das questões de serviços, contatos, os colegas, as investigações, a documentação. Porque se falava sempre assim, se o dinheiro ia ser pago pela documentação entregue ou qualquer investigação ou por qualquer contato com o colega. A coisa funcionava assim.
ConJur — Quem mais passava informações?
Luciane Araújo — Os únicos materiais que eu sabia a fonte eram os documentos da Polícia Federal. Porque aqueles ali, eu tinha que saber, porque às vezes eu tinha que pedir confirmação de algumas coisas. Esclarecer termos que eu não entendia bem, para você ter uma idéia, eram documentos muito sérios. Então, eu tinha que ligar para essa pessoa para perguntar para me fazer entender para que eu pudesse traduzir. [Procurada, a assessoria de imprensa da Polícia Federal não se manifestou]
ConJur — E você ligava era na Polícia Federal mesmo?
Luciane Araújo — Eu ligava diretamente no telefone do João. Eu ligava diretamente no telefone dele.
ConJur — Fixo ou celular?
Luciane Araújo — Tinha celular e tinha fixo. E muitas vezes, ele me atendia, ele estava na sede, tanto que ele dizia: Olha, estou aqui com os colegas, me liga daqui a meia hora, ou eu te ligo daqui a meia hora.
ConJur — Em que sentido que o Bernardini chamava os políticos brasileiros de canibais?
Luciane Araújo — Todo mundo comia todo mundo, basta oferecer dinheiro. Um cara me falou assim que, infelizmente, no seu país, corrupção é cultura.
ConJur — O dinheiro manda.
Luciane Araújo — Você está entendendo, não era ideologia política de ninguém. A questão era que onde tem muito dinheiro, todo mundo quer comer sua parte, essa que é a verdade. Porque em momento algum, talvez eu vi mais essa coisa de querer... mas sempre em questão de dinheiro, os lobistas, as conversações, tudo o que você ouvia, era só uma questão assim: é pois é, tudo bem, se tem dinheiro, está legal, a gente faz. A filosofia na verdade, do início ao fim, era essa.
ConJur — Que período você trabalhou com eles?
Luciane Araújo — Oficialmente, comecei em 2004 — porque antes eu já prestava serviços sem vínculo. Saí em janeiro de 2006.
ConJur — E aí, como é que chegam até você para pedir ajuda judiciária?
Luciane Araújo — Começou essa investigação lá, com o escândalo da Telecom Itália lá. A descoberta de que estavam interceptando telefonemas de VIPs, de pessoas importantes, jornais, e políticos. Quando chegou nos políticos, aí o bicho pegou, não é? Quando se descobre que o Bernardini era o grande mentor, o grande investigador que fazia esse trabalho. Com essas investigações, todas as pessoas que trabalharam para ele, registradas foram chamadas, porque tinham os documentos de funcionários e chegaram no meu nome. Quiseram saber o que eu fazia se era investigadora também. Eu falei: Não, nada a ver, muito tranquilamente, porque eu achava que não ia dar em nada. Não estou nem preocupada porque isso aí não vai dar em nada, porque eu não tenho nada a ver com isso aqui. Eu falei que era intérprete, fazia transcrições. “Ah, sim, sim, interessante”. “E sobre o que a senhora fazia?” “Por quê?” “A senhora não é italiana?” Falei: “Não, porque eles trabalhavam no Brasil. Então, eles faziam investigações lá”. “Ah, interessante. Então vamos falar sobre isso. Que coisa a senhora fazia, essas traduções?”. “Fazia traduções de documentos, fazia transcrições”. “Transcrições de que?” “De áudio”. “E o que a senhora ouvia nesses áudio?”. Aí começou o interesse. “Esses áudios eram o que? Eram telefonemas de uma pessoa para outra?”. “Também”. Aí começou o interesse e aí que (...).
ConJur — Você entregou provas?
Luciane Araújo — Um CD com as conversações entre os lobistas e entre o empresário que foi colocado aqui no Brasil para contratar essas empresas ou pessoas ligadas às pequenas empresas para que conseguissem tirar o poder do Daniel. Eram combinações, tinha a Alcatel, tinham planejamento de alguém que ia entrar para trabalhar na... como se chamava a empresa? Tinha o presidente da Cisco na época. Essas pessoas aqui que eram poderosas nessas empresas. Não sei dizer se havia um cartel, mas o que dava a entender mais ou menos era que estavam se unindo.
ConJur — E o objetivo do cartel qual era?
Luciane Araújo — Era se unir, porque essas empresas se unindo, chegou a se falar até de percentual de pessoa, de dinheiro para justamente poder lutar pelo poder da Telecom.
Revista Consultor Jurídico, 8 de novembro de 2007
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