6.9.07

A tática do "bicho-papão"

Para arrancar do Congresso a aprovação do seu projeto de prorrogar o mais repudiado artefato do vasto estoque de impostos, contribuições e taxas que emperram a economia nacional, o governo apelou despudoradamente para a invocação do "bicho-papão" que vem pegar as criancinhas. Quatro ministros desembarcaram terça-feira na Câmara dos Deputados com a missão de anunciar o colapso das políticas sociais do Executivo caso os parlamentares relutem em ceder ao ultimato do Planalto para que não o privem dos cerca de R$ 39 bilhões que pretende arrecadar apenas no próximo ano com a malsinada Contribuição Provisória (sic!) sobre Movimentação Financeira (CPMF). A ouvir os titulares da Fazenda, Guido Mantega; da Saúde, José Gomes Temporão; do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias; e da Previdência, Luiz Marinho, o apocalipse espera a imensa parcela da população brasileira que não pode passar sem os serviços públicos essenciais e o Bolsa-Família, cuja continuidade dependeria da eternização da "contribuição provisória". (O nome faria a delícia do criador do duplipensar, o escritor britânico George Orwell.)

Houve farto uso de termos como "tragédia" e "temeridade". O ministro da Fazenda chegou a dizer, com a cara mais séria do mundo, que o governo teria de "desativar" o programa de transferência de renda com o qual o presidente Lula conta para ingressar na História. E foi mais longe na sua tática de invocar o "bicho-papão" para assustar a criança. Sem a CPMF, argumentou, o governo se veria obrigado a reduzir o superávit primário (economia para pagar os juros da dívida). O resultado seria o efeito cascata: o corte abalaria a confiança dos investidores, o que, por sua vez, elevaria o custo do dinheiro que financia a expansão das atividades produtivas. E isso, em suma, travaria o ciclo de desenvolvimento sustentado, cuja duração Lula acaba de estimar, com o triunfalismo de sempre, em no mínimo dez anos. Mas a maior balela do dia foi a sugestão ladina de que os críticos da CPMF querem, na realidade, é esterilizar a capacidade do Estado de prover os bens públicos que representam a renda indireta redutora das imensas desigualdades sociais do País.

Como se sabe, Lula está convencido de que o que os brasileiros ricos mais temem é o enriquecimento dos brasileiros pobres. "Os impostos são necessários, pois uma sociedade justa custa caro", ensinou o ministro Ananias, o administrador do Bolsa-Família. "O Estado Democrático de Direito precisa de recursos." A lição é supérflua. Claro que o Estado precisa de recursos, tanto quanto os que os desembolsam precisam que sejam aplicados com a máxima competência, até pelo fato de serem, por definição, eternamente insuficientes para as demandas sociais. Nesse ponto, a nudez do rei é ofuscante. Se a referência para o governo são os países escandinavos, onde a carga tributária chega ao recorde mundial de 61% do PIB, como na Suécia, e onde a proteção social vai do berço ao túmulo, não deveria fazer de conta que ignora o que está à vista de todos: no Brasil, e não é de hoje, a abrangência e a qualidade das contrapartidas do Estado são muito menos que proporcionais à atual carga tributária, equivalente a mais da metade daquela. É como se ainda não tivesse chegado aos ouvidos dos compassivos colaboradores do presidente o dito irrefutável de que o Brasil tem impostos escandinavos e serviços africanos.

Nenhuma prorrogação da CPMF modificará esse quadro sombrio. Primeiro, porque o setor público brasileiro é imbatível em matéria de dissipação de recursos - por desídia, incompetência, burocratismo, miopia gerencial, quando não por corrupção. Nesse governo, que não quis porque não quis levar adiante a busca de ganhos de gestão ensaiada no governo Fernando Henrique, nem o seu rigoroso controle de gastos com pessoal, mais dinheiro significa mais dinheiro mal aproveitado - como mostrava o editorial Cada vez mais gordo, ontem, neste espaço. Quarenta por cento do que se arrecada com a CPMF vai para a Saúde - e nem por isso o descalabro do setor diminuiu. É verdade que a escala dos problemas é de tirar o fôlego: em 2006, fizeram-se no SUS 2,6 bilhões de procedimentos médicos. Mas isso só acentua o imperativo da qualidade de gestão, não o da CPMF. A rigor, o governo arfa por reais para gastar com as suas clientelas e corporações que, sob Lula, intensificaram a colonização do Estado nacional. E o fim último desse gasto é a conservação do poder. Haja CPMF.

Editorial Folha

Nenhum comentário: