29.9.07

O caixa 2 da turma de Ideli

A senadora Ideli: negociações para liberação de verbas dentro do gabinete

O Senado vai instalar nesta semana uma CPI para investigar entidades e organizações não-governamentais suspeitas de desviar recursos públicos. Somente nos últimos oito anos, o governo destinou 33 bilhões de reais às chamadas ONGs por meio de convênios e emendas parlamentares. Seria uma forma ágil e eficiente de fazer chegar às comunidades mais carentes os programas sociais. Sem fiscalização adequada, muitas dessas organizações se transformaram em máquinas de fraudes que enriquecem seus dirigentes e financiam campanhas políticas regionais. Em Santa Catarina, a Polícia Federal está investigando um caso exemplar. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul) recebeu 5 milhões de reais para promover cursos de treinamento profissional. Parte do dinheiro, já se sabe, foi parar na campanha política de um deputado do PT. Para justificarem os gastos, os dirigentes da federação falsificaram planilhas e criaram alunos-fantasma. O que mais chama atenção no caso, porém, é o eixo entre os principais envolvidos na fraude. Todos são correligionários, amigos ou assessores da senadora catarinense Ideli Salvatti, líder do PT no Senado.

A investigação da polícia se concentra em dezoito convênios firmados entre a Fetraf e os ministérios do Desenvolvimento Agrário, do Trabalho, da Agricultura e da Pesca – que lhe destinaram 5,2 milhões de reais entre maio de 2003 e março de 2007. O inquérito, que já tem mais de 300 páginas, recolheu provas que permitem concluir que a federação usou uma tecnologia de fraude muito conhecida desde os tempos em que o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares era um simplório conselheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador. Usando a influência política, os dirigentes conseguem prioridade em assinatura de convênios com órgãos públicos. Há no esquema sempre um parlamentar amigo que, por meio de emendas, assegura recursos no Orçamento para os tais programas sociais. Nos ministérios, correligionários em postos-chave são os responsáveis pela seleção das parcerias. Depois, cabe às entidades escolhidas superfaturar contratos, inventar serviços e embolsar o dinheiro, às vezes tudo, às vezes apenas uma parte para simular que alguma coisa foi feita. A Fetraf, segundo a polícia, seguiu à risca essa cartilha.

A sede da Fetraf, em Chapecó: dinheiro só após a chegada do PT ao governo

A Fetraf foi criada em 2001 por petistas ligados à senadora Ideli Salvatti, mas sua importância social só começou a ser reconhecida depois do governo Lula. Um dos convênios já esmiuçados pela polícia foi assinado em 2003 com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que liberou 1 milhão de reais para a entidade promover o treinamento de trabalhadores rurais em Chapecó, interior de Santa Catarina. Na época, o coordenador da entidade chamava-se Dirceu Dresch, um petista do grupo político de Ideli Salvatti. Dois mil trabalhadores rurais participaram do curso. A maioria, descobriu-se agora, era fantasma. Para fazer de conta que o curso existiu, a Fetraf apresentou uma lista de estudantes, com nome, CPF e endereço dos alunos. A polícia foi checar e descobriu que muitos não existiam, outros nunca ouviram falar do curso, alguns nem sequer moravam na região e os poucos que disseram ter freqüentado aulas – pessoas ligadas à federação, é claro – assinavam a mesma lista de presença várias vezes. Nos outros dezessete convênios assinados com a instituição, a história se repetiu. VEJA localizou no interior de Santa Catarina o agricultor Jackson Luiz Oldra. Segundo a polícia, ele foi usado pela federação para "captar" alunos para o curso de técnicas de plantio e colheita para jovens. Sua tarefa para conseguir o diploma de jovem agricultor era pegar as listas em branco na sede da federação, em Chapecó, e devolvê-las completamente preenchidas. "Peguei assinatura até com meu avô e minha avó", conta o rapaz, que já foi intimado a depor na PF. "A gente faz as coisas para ajudar e acaba se metendo em rolo", reclama. Para o Ministério do Trabalho, Ernesto, de 67 anos, e Ana, de 63, constam das estatísticas como "jovens" agricultores. A federação embolsou o dinheiro.

Os convênios exibem outras fraudes grotescas. Para dar aulas a alunos-fantasma, nada mais natural que se chame um professor com conhecimentos especiais. Um dos convocados para a missão exibe um currículo surpreendente. Marcelino Pedrinho Pies foi contratado em abril do ano passado para coordenar um curso destinado a pequenos agricultores, recebendo 4.000 reais por mês. O professor Marcelino tem um salário maior que o de muito doutor de universidade, mas seu currículo também é ímpar. Na mesma época da contratação, ele fez um acordo com a Justiça para doar cestas básicas a uma instituição de caridade. Voluntário? Não. Marcelino, ex-tesoureiro do PT do Rio Grande do Sul, confessou que usou dinheiro do valerioduto para pagar dívidas eleitorais do partido em 2002 quando o candidato ao governo era Tarso Genro, hoje ministro da Justiça. O dinheiro da Fetraf, que deveria estar formando trabalhadores, vem sendo usado para subsidiar também a pena de criminosos. A Polícia Federal estima que, no mínimo, 60% dos recursos destinados a treinar os trabalhadores acabaram nos bolsos ou nas campanhas políticas dos marcelinos da federação. Há evidências que sugerem isso – e muito mais.

Jackson, escalado para fraudar as listas: assinatura dos avós em curso para jovens

Dirceu Dresch, ex-líder da Fetraf no período em que foi assinada a maioria dos convênios, conseguiu se eleger deputado estadual pelo PT no ano passado. Antes disso, ele foi coordenador das campanhas de Ideli Salvatti. Eles pertencem à mesma corrente política do partido. Em 2002, Ideli candidatou-se ao Senado e Dresch a deputado estadual. Fizeram campanha juntos. Ela venceu a disputa e ele não se elegeu. No ano passado, Ideli, que desistiu de se candidatar ao governo em favor do então ministro da Pesca, José Fritsch (com quem a Fetraf assinou um convênio), deu uma mãozinha a Dresch, inclusive destacando Lizeu Mazzioni, um de seus assessores em Brasília, para coordenar a campanha. Ideli e Dresch são sócios na indicação do delegado do Ministério do Desenvolvimento Agrário Jurandi Teodoro Gugel, que assinou doze convênios com a Fetraf e ocupou o cargo até julho passado. Antes do ministério, Gugel era assessor lotado no gabinete de Ideli. Em novembro de 2004, Dirceu, Jurandi e Lizeu estiveram juntos em uma reunião na antiga sede da Fetraf, onde discutiram o apoio político da federação e seus filiados a uma eventual campanha de Ideli ao governo. Em troca, a senadora apresentaria emendas para sindicatos e prefeituras amigas da federação.

A campanha de Ideli ao governo não prosperou, mas as tratativas sobre as emendas continuaram. Documentos em poder da polícia revelam que, em 12 de setembro de 2005, o então coordenador de política sindical da Fetraf, Daniel Kothe, e o chefe-de-gabinete de Ideli em Brasília, Paulo Argenta, discutiram as formas de viabilizar os recursos para a federação. Em uma mensagem eletrônica trocada entre os dois gabinetes, chegaram a combinar até o destino das emendas. "Ficamos no aguardo dos encaminhamentos necessários para efetivarmos a aplicação desses recursos na base", escreveu Daniel Kothe, que substituiu Dirceu Dresch como líder da Fetraf-Sul. A mensagem deixa claro que as estratégias de ação da entidade e os projetos financeiros passaram pelo gabinete de Ideli. Os fatos mostram que a relação entre a senadora e o grupo que controla a federação é muito estreita. Além de Jurandi e Lizeu, já houve mais gente do gabinete ligada à Fetraf. Cleci Dresch, mulher do deputado Dresch, foi funcionária do gabinete da senadora até março deste ano. O que ela fazia? "Nunca fui a Brasília. Eu quero que você converse com o meu marido", limitou-se a dizer. O deputado Dresch não quis conversar. Um ex-auxiliar dele confirmou à polícia que parte do dinheiro desviado da federação foi usada em sua campanha política. "Os indícios de fraude e desvio de dinheiro são muito fortes", confirma o delegado Misael Mazzetti, da Polícia Federal.

O deputado Dresch, beneficiário do caixa dois da Fetraf, e sua mulher, Cleci, funcionária-fantasma do gabinete de Ideli

A proximidade entre a senadora Ideli Salvatti e representantes de ONGs suspeitas não é novidade. Há outro alvo da CPI que também fica em Santa Catarina, também é comandado por gente ligada a Ideli e também tem uma carteira de milhões de reais em convênios com o governo. Assim como a Fetraf, a Unitrabalho recebeu 18 milhões de reais entre 2003 e 2006 para qualificar trabalhadores. A ONG chamou atenção no ano passado, quando o seu dirigente maior, Jorge Lorenzetti, ex-churrasqueiro do presidente Lula, amigo da senadora e funcionário do comitê de reeleição, foi flagrado em uma operação para comprar um dossiê contra adversários. Nunca se descobriu a origem do dinheiro apreendido com o grupo. A senadora Ideli emprega em seu gabinete Natália Lorenzetti, filha do ex-churrasqueiro petista. Procurada, a senadora não quis se pronunciar. Por intermédio de sua assessoria, mandou dizer que não tem nenhuma relação formal nem com a Fetraf nem com Dresch, e que as emendas que apresentou visaram apenas a beneficiar a agricultura familiar. Mandou dizer ainda que nunca foi citada pela Justiça ou pelo Ministério Público em irregularidade alguma envolvendo a Fetraf ou qualquer outra entidade. É verdade. Ainda não foi.

Veja

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