Acabou a chance do otimismo?
João Ubaldo Ribeiro
Um embate entre o ’pensamento pessimista’ e o ’otimismo da ação’, como definiu um espectador em pergunta enviada à mesa, marcou uma das discussões mais concorridas dos primeiros dias de Bienal do Livro do Rio. Em debate mediado pelo filósofo Adauto Novaes, na tarde de domingo, o professor Cândido Mendes e o deputado Fernando Gabeira tinham como tema A Sociedade em Movimento: Educação, Política, Legislação e Protesto. O título vago não incluía a palavra ’corrupção’ nem o nome do senador Renan Calheiros, mas a combinação dos dois deu a tônica das argumentações.
Mesmo ao lado de Gabeira, quase uma unanimidade política em tempos de desesperança na classe, o pessimista Cândido Mendes - dono do dom da oratória - conseguiu arrebatar a platéia (lotada e disposta a debater) com suas fortes declarações. Começou falando da ’semana da vergonha nacional’, referindo-se à absolvição de Renan no Senado, e terminou com um alerta: ’O Brasil precisa acabar com o otimismo doentio. Temos condições de sair de onde estamos, mas isso depende de uma visão realista do que vemos em nossa frente.’
Obstruindo a visão dos brasileiros, acredita o intelectual, estão o futebol (o ópio do povo, em sua opinião) e a televisão. ’O Brasil é o país da revolta mais conformada’, disse, enfaticamente. ’Não vamos mudá-lo enquanto continuarmos intoxicados pelo futebol e enquanto 86 milhões de pessoas estiverem todos os dias coladas às novelas. Já educamos o inconsciente ao happy end.’
O professor criticou ainda o que chama de conformismo do ’tudo bem’ e o ’civismo de butique de Hebe Camargo’, este simbolizado por movimentos como o ’Cansei’. ’Nós somos tristemente o país do ’tudo bem’. Por que o Brasil não tem inconsciente da rebeldia? Porque nós passamos por essa domesticação quase terapêutica.’ Suspirou de saudades da luta contra a ditadura militar e contra o governo Collor e propôs a instituição do ’recall de políticos’: uma volta às urnas dois anos depois das eleições, para que os eleitores reavaliem suas decisões.
Otimista mesmo nos dias mais negros, Gabeira - aplaudido várias vezes durante sua exposição e alvo da maior parte das questões levantadas pelo auditório - ainda crê na mudança. ’Vejo com algum otimismo esse momento de transição. Estamos passando por este processo, mas vamos chegar a uma situação mais avançada. Vamos virar o jogo progressivamente. Não é possível que o Brasil aceite ser governado por quadrilhas.’
Enquanto Cândido Mendes atacou a passividade do brasileiro de hoje, que, ao invés de sair às ruas, envia e-mails para criticar a absolvição de Renan (e assim fica ’com a consciência tranqüila’), Gabeira defendeu as novas tecnologias como meio de dar voz ao protesto do povo.
No entanto, o deputado também convocou a platéia a se engajar mais. Já que os movimentos sociais foram cooptados pelo Estado, destacou, a ação individual se tornou essencial. ’É muito difícil começar um movimento sem termos os dínamos que existiam. Mas acho que cada grupo de pessoas vai encontrar uma maneira de protestar. Não é que os políticos não vão ouvir, nós é que não falamos alto ainda’, conclamou, colocando-se do lado da população, e não do lado ’deles’, os políticos.
Espaço tradicional da bienal, o Fórum de Debates recebeu um público bastante atento, que não se furtou a devolver aos convidados as provocações que ouvira. Lida por Adauto Novaes, uma pergunta direcionada a Gabeira provocou risada geral: ’O que é isso, companheiro? Não é preciso respeitar a decisão do Senado, já que vivemos numa democracia?’ Gabeira, sério, disse que não. Outro espectador disparou: ’Abaixo o pessimismo do pensamento e viva o otimismo da ação!’,referindo-se às posições dos debatedores. Cândido Mendes não se abalou e confirmou seu desgosto com o que vê.
Num ponto a mesa concordou: mais do que uma crise, o País vive um momento de transição. Para Adauto Novaes, organizador do ciclo de conferências O Silêncio dos Intelectuais, realizado há dois anos, ’o conceito de crise não dá conta. É difícil tentar entender a política de hoje com os conceitos que usamos até a década de 70. É um momento muito peculiar na nossa história. A gente não sabe muito bem onde está e para onde vai’.
O anticlímax foi protagonizado pelo ator Carlos Vereza, que, sentado na primeira fila, pegou o microfone ao fim do debate e denunciou um suposto golpe do governo federal para dissolver o Legislativo. Segundo Vereza, o governo Lula quer desestabilizar o Congresso e, num segundo momento, fechá-lo. ’Escrevam o que eu estou dizendo’, disse, em tom profético, dirigindo-se a uma platéia que não lhe dava a menor atenção.
Vereza esteve presente também ao anárquico encontro entre João Ubaldo Ribeiro e o poeta Geraldo Carneiro, amigos de longa data. Com sua voz gutural e seu palavreado ritmado, Ribeiro também pregou contra o governo Lula, provocando gargalhadas do público que lotou o Café Literário ao desmerecer a inteligência do presidente.
Constantemente cortado por Carneiro, o que dificultava uma conversa mais produtiva, Ribeiro contou que ainda não sabe quando vai terminar seu novo romance, esperado para o próximo ano. ’Escrevo cada vez mais devagar’, confidenciou.
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