2.3.09

R$ 10 milhões para amansar a UNE

Os anos rebeldes da maior entidade estudantil são coisas do passado. Verbas do governo federal não faltam, só na produção de um livro sobre a militância secundarista foram repassados R$ 436 mil

A União Nacional dos Estudantes (UNE) ganhou na loteria no governo Lula. O repasse do Poder Executivo à entidade aumentou em 20 vezes nos últimos cinco anos. A soma dos recursos públicos transferidos chega aos R$ 10 milhões no período. Em contrapartida, as sexagenárias manifestações independentes e de críticas ao governo federal desapareceram. No lugar, sobra bajulação. Fotos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com dirigentes da entidade são exibidas com pompa no site da UNE.

O crescimento da verba recebida do governo foi meteórico. Os recursos saltaram de R$ 199 mil em 2004 para R$ 4,5 milhões no ano passado. Mas não parou por aí. O montante tende só a crescer em 2009: R$ 2,5 milhões já foram depositados na conta da UNE neste ano, segundo levantamento obtido pelo Correio no Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Nada mal para quem recebeu cerca de R$ 1 milhão em oito anos do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Transferidos para a UNE em 12 de janeiro passado, R$ 786 mil foram destinados à realização de shows e debates em São Paulo e Rio de Janeiro. Mas nenhuma apresentação foi feita até agora, admite a presidente da UNE, Lúcia Stumpf (PCdoB). Em 5 de junho de 2008, o governo liberou o pagamento de R$ 435 mil para o projeto Sempre Jovem e Sexagenária. Segundo Lúcia, o recurso de quase meio milhão de reais será usado para fazer um livro sobre a história da militância estudantil secundarista. A UNE tem até junho para concluir esse projeto. A reportagem pediu à presidente da entidade algum elemento referente ao que já foi feito até hoje. Não houve retorno até o fechamento desta edição. Ela apenas garantiu que o projeto vem sendo executado. "Tem pesquisadores e historiadores fazendo a busca de material e redigindo. Será um livro histórico", afirma.

Braço político

A presidência da UNE está nas mãos do PCdoB há mais de 15 anos. O partido tem como representante no governo o ministro dos Esportes, Orlando Silva, que presidiu a entidade estudantil entre 1995 e 1997. Em janeiro passado, o ministério comandado por ele liberou R$ 250 mil para patrocinar a bienal de cultura da UNE, realizada naquele mês em Salvador.

Cerca de R$ 6,2 milhões do dinheiro público repassado pelo governo Lula saíram dos cofres do Ministério da Cultura. Pelo menos seis convênios com a entidade foram alvos de tomadas de conta especial, um processo administrativo interno aberto sempre que aparece indício de irregularidade que possa dar prejuízo ao órgão público. Um deles refere-se à participação da UNE em paradas de orgulho gay em 2006. Cerca de R$ 37,5 mil foram repassados à entidade e até agora a prestação de contas não foi aprovada.

O outro processo é mais antigo ainda. Trata da verba de R$ 173 mil para gravação de CDs e compra de equipamentos da Bienal de Cultura e Arte de 2003. Em novembro do ano passado, o ministério abriu uma tomada de conta especial. A tramitação do convênio revela que a pasta chegou a contestar a gravação de 2 mil CDs, e não 4 mil, como previa o projeto inicial apresentado pela UNE. O ministério abriu outro procedimento parecido em 1º de dezembro do ano passado para averiguar pendências na condução do convênio Cinema Une em Movimento. A entidade recebeu R$ 436 mil há dois anos para realizar em 2007 um circuito de filmes nacionais em universidades. A prestação de contas foi entregue somente no último em 12 de dezembro.

A entidade estudantil também se aventurou pelo orçamento da saúde. No segundo semestre do ano passado, a UNE recebeu R$ 2,8 milhões do Sistema Único de Saúde (SUS) para fazer uma caravana pelo país. O objetivo foi abrir um debate e realizar ações ligadas à saúde. "Percorremos os 27 estados discutindo cultura, saúde e educação, visitando 41 universidades públicas e privadas no Brasil", justifica a presidente da entidade.

MUITO DINHEIRO

R$ 10 milhões é o valor repassado pelo governo à UNE em cinco anos

R$ 7 milhões foram depositados nos últimos 14 meses

R$ 436 mil serão usados para um livro sobre a militância secundarista

R$ 786 mil foram destinados para shows e debates até o fim do ano

6 convênios foram alvos de investigação interna do Ministério da Cultura

Memória

Lutas históricas no currículo

A UNE foi criada em 1937. Em seu site, destaca ter contestado a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, e participado da campanha O petróleo é nosso, no fim dos anos de 1940. A entidade estudantil passou a influenciar com mais intensidade a partir do golpe militar de 1964. A UNE chegou a ser declarada ilegal e passou a atuar na clandestinidade. Naquele ano, seu presidente era o hoje governador de São Paulo, José Serra (PSDB). Em 1968, o governo militar desmontou o famoso congresso da UNE em Ibiúna, São Paulo, que reuniu mil estudantes. Toda a liderança do movimento foi presa. Entre os detidos, estava o ex-ministro e deputado cassado José Dirceu (PT-SP), então presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE).

Outra liderança que virou político de destaque foi Aldo Rebelo (PCdoB-SP). O deputado comunista presidiu a UNE entre 1980 e 1981. A entidade voltou a se destacar em 1992 nas passeatas pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor. O então presidente, Lindberg Farias (PT), hoje é prefeito de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Além dos recursos federais, a UNE, uma entidade teoricamente sem fins lucrativos, se sustenta com a venda de carteirinhas que dão desconto aos estudantes em eventos culturais e artísticos. O órgão estudantil declara que arrecada R$ 3 milhões por ano com a venda do benefício.

"Autonomia mantida"

A presidente da UNE, Lúcia Stumpf, garante que os milhões recebidos do governo Lula não ferem o histórico caráter contestador da entidade. "Nenhum recurso será capaz de comprar a autonomia e a independência da UNE", diz. "A relação que a UNE tem com o governo é a mesma que teve com outros governos em seus 70 anos. É uma relação de absoluta autonomia", ressalta.

Filiada ao PCdoB, Lúcia Stumpf foi eleita em 2007, aos 25 anos, para presidir a entidade. Estudante de jornalismo, ela sucedeu Gustavo Petta, do mesmo partido e que recentemente assumiu a Secretaria de Esportes de Campinas (SP). Para a militante estudantil, as possíveis irregularidades apuradas pelo Ministério da Cultura não são graves. "É comum ter problema pela grande burocracia existente. Por conta disso, há dificuldade de apresentação dos documentos", explica.

Procurado pelo Correio, o Ministério da Cultura informou que a UNE não tem sido privilegiada pela pasta. "Os critérios adotados são os mesmos para qualquer projeto de apresentação ao Fundo Nacional de Cultura (FNC)", disse a assessoria.

Para o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR), a relação financeira entre a instituição estudantil e o governo federal prejudica a independência da militância. "A entidade tem que ser, por natureza, independente. Mas o governo acabou silenciando a UNE", diz. "E mais, não há preparo para administrar esse recurso. Não é papel do movimento estudantil criar estrutura." (LC)
Correio Braziliense

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