por LUIZ EDUARDO GREENHALGH e SUZANA ANGÉLICA PAIM FIGUERÊDO
A demonização de Battisti já está cristalizada. Mas certo estamos de que o Supremo não passará ao largo da análise do real processo
O PROCESSO de demonização de pessoas se dá com a intensa propagação de inverdades até a cristalização de opiniões. Não raro os motores da demonização fecham-se aos que podem pôr em xeque esse nefasto processo.
O ex-ativista Cesare Battisti tem sido pintado como monstro. Em seu caso, a transformação da pessoa em demônio bateu às portas do Supremo Tribunal Federal. Certo estamos, no entanto, de que não ganhará guarida.
Não vemos como a Corte protetora da Constituição poderá decidir pela extradição desse perseguido político, pois tal caminho pressupõe atropelar ato do ministro da Justiça. Pressupõe ignorar que há nas sentenças inúmeras referências ao teor político da ação. Uma decisão pela extradição teria de desconhecer a prescrição executória dos delitos imputados a ele.
É preciso dizer: Battisti não é o responsável pelas quatro mortes pelas quais foi condenado à prisão perpétua sem luz solar. Porém, uma miríade de pessoas se lançou a sentenciá-lo sem o ínfimo conhecimento do ambiente da Itália nos anos 1970 e do processo movido contra a sua pessoa.
Todo mundo sentiu-se capaz de dar seu veredicto. A ponto de a máxima "todo brasileiro é um pouco técnico da seleção" se transformar em "todo brasileiro é um pouco juiz de direito".
Reconheçamos não ser possível nestas breves linhas fazer a reflexão histórica necessária sobre a Itália dos "anos de chumbo". Nas retratações que têm sido feitas da época, são omitidos nomes como Gladio e Loja Maçônica P2. O que foram? Os muitos "juízes" parecem não se interessar, pois a elucidação jogaria por terra a fala de que a Itália vivia esplendorosa democracia. Não vivia.
Mas, se no campo político o assunto é complexo, no jurídico é mais grave.
Poder-se-iam redigir livros com o tema "as leis de exceção na Itália dos anos de chumbo", que, lógico, não mencionariam a recente lei que obriga médicos a entregarem imigrantes ilegais à polícia. Lei de teor idêntico à que vigorava na Alemanha de Hitler.
Na era Berlusconi, qualquer semelhança não deve ser mera coincidência. O respeitadíssimo jurista italiano Luigi Ferrajoli debruçou-se criticamente sobre o tema. Entre os absurdos relatados, prisões preventivas de 12 anos -instrumentos de supressão de liberdades típicos de ditaduras.
Foram cometidos atentados ao direito de defesa de Battisti. No processo inicial, no qual os integrantes de sua organização foram julgados, a acusação era de falsificação de documentos, porte de matrizes para novas falsificações e ação subversiva.
A pena, de 12 anos e dez meses.
A sentença transita em julgado, mas o processo é reaberto. Que prova contundente fez as autoridades reabrirem o caso? Prova material não existiu, foram delações premiadas que basearam a reabertura. E Battisti foi defendido nesse processo? Consta defesa feita por advogados que atuaram até depois da condenação à prisão perpétua. Mas quem lê o processo fica estarrecido com o fato de que a procuração que os nomeia foi falsificada. Se não houve anuência do réu, não houve direito de defesa.
O grupo do qual Battisti fazia parte era o maior, aquele que promovia os atos de maior impacto? Não, não era.
A maior organização eram as Brigadas Vermelhas, autora da morte de Aldo Moro e da qual fazia parte Marina Petrella, que está hoje asilada na França após o governo de Nicolas Sarkozy negar pedido de extradição da Itália em setembro passado.
O governo italiano reclamou da decisão, mas entendeu. E respeitou. No Brasil, ao contrário, a concessão do refúgio gerou grita sem precedentes nas relações entre os dois países.
Do cancelamento de visita de Berlusconi à ameaça de suspender amistoso de futebol, viu-se de tudo. Um deputado italiano disse que o Brasil não era conhecido por juristas, mas por suas dançarinas. Quanto desrespeito!
O filósofo italiano Toni Negri parece ter entendido o porquê de tamanha pressão. A extradição de Battisti (o último que ainda pode ser extraditado, pois os demais tiveram o pedido negado) responde a um duplo interesse do governo Berlusconi: presentear o público com um bode expiatório e fazê-lo esquecer-se do estado de exceção da época. Ademais, a Itália não se empenhou na extradição de militantes da extrema direita. Dois pesos, duas medidas? Não, isso se chama perseguição política.
Sabemos que é árdua a tarefa do STF, pois a demonização de Battisti já está cristalizada. Mas certo estamos de que a Corte não passará ao largo da análise do real processo, da história italiana, do ambiente vivido nos anos 1970 e do fato de que, há quase 30 anos, as ações de Battisti estão ligadas apenas à tarefa de escritor.Folha
LUIZ EDUARDO GREENHALGH foi deputado federal (PT-SP) e é advogado de Cesare Battisti.
SUZANA ANGÉLICA PAIM FIGUERÊDO , advogada de Cesare Battisti, integra a Organização Mundial contra a Tortura.
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