23.8.07

A apoteose das formiguinhas bandalhas

La Pasionaria ficaria deslumbrada. Desde seu imortal "no pasarán" , não se ouve nada tão vigoroso quanto os discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu esforço para mostrar o Brasil como fortaleza invulnerável à crise financeira. Em seu entusiasmo, ele denuncia a irresponsabilidade americana, festeja o castigo dos jogadores e agiotas - "quem tentou especular quebrou a cara" - e alardeia tranqüilidade. "Como a formiguinha faz, nós nos preparamos para o inverno." De passagem, tem espinafrado as elites, como de costume, e atacado quem torce para dar tudo errado no Brasil. Ele não conta quem forma essa torcida, nem explica por que as elites, em sua opinião, são contrárias à educação dos pobres.

Para "muitos", disse o presidente, o governo "deveria fazer loucuras". Mas não fez, preferindo, segundo ele, a prudência das formiguinhas. Se quisesse identificar aqueles "muitos", teria de apontar uma porção de companheiros. São eles, em geral, os críticos mais freqüentes do superávit primário, destinado ao pagamento de juros e indispensável, portanto, à contenção da dívida pública.

A austeridade fiscal não é invenção petista e continua sendo execrada no interior do governo. O câmbio flutuante, defendido pelo presidente na fala de terça-feira, também nunca foi aceito por boa parte da companheirada. Partidários do câmbio administrado estão no governo e isso não deve ser novidade para Lula. Mas ele fala como se não soubesse.

A turma governista inclui também defensores notórios de uma política antiinflacionária mais frouxa. A tese de "mais inflação com mais crescimento" continua popular no Executivo, na bancada governista e na cúpula do partido. Se Lula não tivesse um forte instinto de sobrevivência, teria cedido e mandado embora, há muito tempo, o presidente do Banco Central.

Lula exagera, no entanto, ao fazer o elogio da formiguinha, assim como exagera o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, ao mencionar o "sacrifício" do superávit primário. O superávit é modesto e tem sido alcançado sem aperto de cinto. O gasto corrente, incluída a folha de salários, nunca deixou de crescer, nos últimos cinco anos. O pagamento de juros, ainda parcial, vem sendo garantido principalmente pelo aumento da carga tributária. A carga voltou a crescer em 2006, segundo a Receita Federal. Continua a aumentar em 2007 e a tendência será mantida nos próximos anos, de acordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O crescente peso de impostos e contribuições tem servido, até agora, apenas para sustentar um setor público voraz e perdulário. O investimento do governo continua emperrado, não por falta de dinheiro, mas porque faltam competência gerencial e disposição política para as despesas mais produtivas.

A incapacidade gerencial está associada a uma concepção de exercício do poder. A conseqüência mais dramática e mais chocante dessa concepção vem sendo mostrada nos últimos dias, com destaque, em todos os grandes jornais. A Justiça Federal, com base em documento inválido apresentado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), liberou a pista de Congonhas para pouso de grandes aviões em pista molhada. Segundo aquele documento, os aviões só poderiam pousar com o uso de reversos. O papel, soube-se depois, não tinha valor normativo. Teriam morrido 199 pessoas, naquele pouso do Airbus da TAM, se a proibição judicial continuasse em vigor, ou se o papel da Anac valesse como regra? Essa pergunta não será descartada facilmente.

Se a Anac errou nesse episódio, não foi por causa de sua autonomia operacional, mas porque seus dirigentes eram pessoas inadequadas para a função. E eram inadequadas porque foram escolhidas com base no critério do companheirismo e do loteamento de cargos. As nomeações poderiam não ter ocorrido, se os congressistas encarregados de avaliar os indicados tivessem cumprido sua obrigação. Executivo e Legislativo erraram miseravelmente, e o erro inicial decorreu de uma noção teratológica de governo.

Essa noção não foi abandonada. O loteamento continuou e não está concluído. A crise aérea é a conseqüência mais pavorosa, até agora, dessa forma de usar o poder (o verbo governar seria impróprio, neste caso). Dessa máquina pública dependerá a capacidade brasileira de investir, produzir, competir e crescer num cenário global quase certamente menos favorável que o dos últimos cinco anos. O risco não terminará com a crise do mercado hipotecário. As formiguinhas fizeram muito menos que o necessário - talvez contaminadas pelo espírito das cigarras bandalhas.

Rolf Kuntz - Estadão

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