18.10.08

O diretor da Abin mentiu ao Congresso

O presidente da CPI dos Grampos acusa a Abin de patrocinar um esquema paralegal que envolveu seusagentes em ações clandestinas. O ex-diretor Paulo Lacerda pode ser indiciado por falso testemunho

Expedito Filho

Ana Araujo
ESTADO PARALEGAL
Marcelo Itagiba: associação entre a estrutura oficial do estado e ações clandestinas e ilegais atentam contra a democracia

O presidente da CPI dos Grampos, o deputado Marcelo Itagiba, do PMDB do Rio de Janeiro, não tem dúvida: a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão encarregado de assessorar o presidente da República, envolveu-se nos últimos meses em ações clandestinas e ilegais. A mais visível delas até o momento é a Operação Satiagraha, que resultou, em julho passado, na prisão do banqueiro Daniel Dantas. No rastro dessa ação, como revelou reportagem de VEJA, agentes da Abin, associados a policiais federais e arapongas contratados para fazer o que o deputado chama de "serviço sujo", grampearam os telefones do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, instalaram escutas ambientais, seguiram e fotografaram pessoas – tudo de maneira clandestina, sem autorização judicial. Itagiba acusa o ex-diretor da Abin Paulo Lacerda de ter mentido aos deputados da CPI e cobra a demissão definitiva de todos os envolvidos na ação que o parlamentar classifica de "paralegal".

O que a CPI já descobriu sobre os grampos clandestinos? Existe no país um conluio entre detetives particulares, funcionários de operadoras e prestadores de serviço às operadoras para a prática da interceptação ilegal, seja para obtenção de extratos telefônicos, seja para identificação de linhas para interceptação. Esses grupos tinham como clientes maridos traídos, grandes empresários e agentes públicos. O que descobrimos agora é que esses arapongas também vêm agindo em associação com a estrutura de estado. As instituições estão se utilizando dessas organizações clandestinas para investigações oficiais e, mais grave ainda, para desenvolver ações ilegais.

O senhor está se referindo à Abin e à Polícia Federal? Não tenho conhecimento dessa prática na Polícia Federal. Mas posso afirmar que em todo o mundo os serviços secretos utilizam agentes terceirizados para práticas de ações clandestinas, como grampos telefônicos. O caso Watergate foi assim. Os responsáveis pela invasão da sede do Partido Democrata eram pessoas vinculadas aos órgãos de inteligência.

"Descobrimos que as instituições estão se utilizando dessas organizações clandestinas para investigações oficiais e, mais grave ainda, para desenvolver ações ilegais"

A comissão já ouviu servidores da Abin e da PF sobre a interceptação da conversa do ministro Gilmar Mendes com o senador Demóstenes Torres. Já é possível tirar alguma conclusão? Com base nos depoimentos e em informações que recebemos, a CPI vem trabalhando com a possibilidade de a interceptação da conversa do ministro Gilmar Mendes com o senador ter sido feita por um grupo paralegal ligado à Abin.

O que significa isso? Podemos verificar que tudo tem início na investigação instaurada contra as práticas criminosas do senhor Daniel Dantas. Eu mesmo, quando era da polícia, já solicitei a colaboração da Abin em circunstâncias pontuais. Mas, neste caso, misturaram-se negócio, política e polícia no mesmo balaio. Para apurar as ações criminosas do banqueiro, que não são poucas, as autoridades se autoconcederam uma licença para fazer qualquer coisa. Além da engrenagem oficial, acionou-se um braço paralegal, sem vínculo formal com o estado, mas agindo protegido sob sua responsabilidade e orientação. Eles certamente estão na linha de frente das ações clandestinas. São ex-policiais e agentes aposentados da própria Abin, encarregados de fazer o chamado trabalho sujo, ou seja, tudo o que é ilegal, clandestino.

Fotos Lula Marques/Folha Imagem e Paulo H. Carvalho/CB
O BOM E O MAU Os delegados Paulo Lacerda e Renato Porciúncula, afastados da Abin: um era o cérebro; o outro, responsável pelas operações

É possível comprovar a existência desse grupo clandestino que atuava a serviço da Abin? É bom ressaltar que esse grupo estava a serviço da investigação, que incluiu também a PF. A existência desses "paras" está mais do que demonstrada, na medida em que pessoas estranhas aos órgãos envolvidos foram, como já se sabe, contratadas para certas tarefas e receberam dinheiro para fazer determinados serviços. Tudo de maneira secreta, clandestina, sem o conhecimento formal das instituições. Já há um depoimento confirmando que o gabinete do ministro Gilmar Mendes foi alvo de ataque eletrônico, provavelmente de uma escuta ambiental. O grampo de seus telefones certamente deriva desse aparato clandestino a serviço da Abin e da PF. Essa associação entre o oficial e o clandestino atenta contra a democracia, por mais nobres que sejam seus objetivos.

O diretor afastado da Abin Paulo Lacerda resumiu o episódio a uma colaboração normal entre as instituições. Minha postura na CPI sempre foi cordial. Não estou ali para massacrar ninguém. Mas os depoimentos já prestados mostram que o delegado responsável pela Operação Satiagraha, Protógenes Queiroz, o doutor Paulo Lacerda e outros servidores da Abin faltaram com a verdade. O diretor da Abin mentiu ao Congresso. Eles procuraram escamotear a gigantesca participação da Abin. No início, disseram que eram uns quatro ou cinco agentes. Já sabemos que são mais de cinqüenta – isso sem contar os arapongas que atuaram à margem do aparato oficial.

Como o senhor avalia isso? Isso é muito grave. O relatório final da CPI ainda será elaborado. Ele deverá ser propositivo, mas defendo que aqueles que faltaram com a verdade devem ter o indiciamento solicitado por crime de falso testemunho. Quando instrumentos clandestinos passam a ser utilizados e se esconde sua utilização, mesmo que para pegar um criminoso do quilate de Daniel Dantas, você está usando a paralegalidade. Ou seja: a ação está revestida de legalidade, mas é absolutamente ilegal. Os fins estavam justificando os meios empregados.

O presidente Lula já disse que pretende reconduzir o delegado Lacerda ao cargo na hipótese de o inquérito que investiga a escuta não provar que ela foi feita pela Abin. Se a PF e a própria Abin não forem capazes de identificar quem participou desse caso, é melhor fechar as portas. O doutor Lacerda prestou relevantes serviços ao país quando foi diretor da Polícia Federal. Mas ele extrapolou. A Abin não pode participar diretamente de uma operação tipicamente policial, não pode ter mercenários à sua disposição e não pode lidar com material clandestino. Das duas, uma: ou o doutor Paulo Lacerda sabia de tudo e deve ser responsabilizado; ou ele não sabia de nada e também deve ser responsabilizado por isso. Deve ser punido por ação ou por omissão. Depois do que já se descobriu, não vejo condições de ele voltar a dirigir um órgão subordinado à Presidência da República. O presidente deveria demitir todos os servidores públicos que de alguma forma se envolveram com essa operação paralegal.

Não é razoável duvidar da possibilidade de uma investigação séria neste caso? A Abin é necessária ao país e tem uma missão institucional a cumprir. É um órgão de espionagem e contra-espionagem e não pode sofrer em razão da má atuação de alguns de seus dirigentes. Se o presidente não sabia – e eu acredito que ele não sabia, embora os agentes acreditassem estar em uma missão presidencial –, deve responsabilizar aqueles que intercederam e colocar na Abin uma administração profissional.

A comissão tem condições de identificar os responsáveis pelo grampo ilegal contra o ministro Gilmar Mendes? A CPI surgiu para investigar a suspeita de um estado policial, levantada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal que se sentiam coagidos e intimidados com prováveis grampos. Porém, apesar de termos saído em socorro da corte, estranhei muito a decisão do ministro Cezar Peluso. Suas decisões têm criado muitas dificuldades para o trabalho da comissão. Ele não nos permitiu, por exemplo, acesso à lista de autorizações de interceptação telefônica feitas pelos juízes de todo o país. Sabemos que vamos encontrar nessa lista coisas absurdas. Provavelmente inocentes que tiveram a privacidade invadida por interesses escusos. Essa também era uma de nossas principais pistas para tentar resolver o caso do STF. O número do telefone do gabinete do ministro Gilmar Mendes pode ter sido criminosamente inserido em uma dessas autorizações. Esse procedimento é chamado de "barriga de aluguel" e é mais comum do que se imagina.

O senhor acredita que o grampo do ministro realmente foi feito através de uma autorização forjada? É uma possibilidade que deve ser investigada com atenção. Já está demonstrado que os juízes não têm nenhum controle sobre as autorizações que concedem. Se um agente do estado mal-intencionado incluiu o número do ministro num pedido para investigar uma denúncia de tráfico de drogas em Corumbá, o magistrado, que na maioria das vezes age de boa-fé, pode ter autorizado. O presidente do STF pode ter sido ouvido meses a fio sem que ninguém saiba. É bom lembrar que a própria Polícia Federal já fez isso no passado. Simulou uma investigação de narcotráfico e conseguiu autorização para ouvir os telefones do secretário particular do presidente Fernando Henrique. A recusa do ministro Cezar Peluso em proporcionar acesso a essas autorizações nos impede de descobrir se isso aconteceu.

O senhor, que também é delegado da Polícia Federal, tem alguma teoria sobre o caso? Trabalho com fatos, mas a experiência me faz observar algumas coisas. O delegado Renato Porciúncula, que assessorava Lacerda na Abin e também foi afastado, era diretor de Inteligência da PF na administração do próprio Lacerda. As operações bem-sucedidas realizadas naquele período tinham determinadas características, como o excessivo uso de grampos telefônicos, o acompanhamento da imprensa e a exposição das pessoas presas. Basta observar que o mesmo procedimento se dá na Operação Satiagraha, que teve o apoio dos dois. No folclore policial, sempre existiu o tira bom e o tira mau. Os dois delegados representam esse papel. O Porciúncula era o executor das operações. O doutor Paulo Lacerda sempre foi o cérebro. Não sabemos ainda com exatidão a responsabilidade de cada um deles sobre a parte clandestina da operação. Mas posso afirmar: ao contrário do folclore, não existe policial bom nessa história.

O senhor acredita que exista algo ainda desconhecido que tenha justificado a presença maciça de espiões do governo em uma investigação policial? Existe uma disputa dentro do governo entre um grupo que deseja a fusão das teles (Brasil Telecom e Oi) e outro que não deseja. O grupo que não desejava a fusão perdeu. Os que queriam e os que não queriam estão arrumando uma enorme confusão. Esse processo de fusão vai conspurcar o governo do presidente Lula. Essa disputa tem objetivos vinculados a 2010. Talvez esteja aí a verdadeira razão da participação da Abin. Os grupos do PT no governo estão se digladiando para controlar o processo, quem sabe de olho em um futuro financiamento de campanha.

O araponga Suplicy

Monalisa Lins/AE
O ELO PERDIDO
Suplicy: "Estou interagindo com a Abin"

O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) já teve dias de fama encarnando o papel do inspetor Clouseau. Em novembro de 1993, ele viajou aos Estados Unidos em busca de pistas sobre o paradeiro da professora Ana Elizabeth Alves dos Santos, vítima de seqüestro em Brasília. Diligente, o senador seguia informações repassadas por uma tia do interior de São Paulo. Segundo ela, Ana Elizabeth estava viva e fora vista em Manhattan. Com uma foto da professora, o senador vagou pelas ruas de Nova York em busca de uma testemunha. Ninguém reconheceu a professora – e nem podia. Ana Elizabeth nunca saiu de Brasília. Estava morta havia quase um ano. Foi assassinada pelo marido, um alto funcionário do Senado, e enterrada em Brasília.

Frustrada a experiência como detetive, o senador tenta agora a carreira de araponga. Na semana passada, Suplicy participou com vários senadores de uma reunião na Abin. Em dado momento, resolveu compartilhar com os espiões do governo sua teoria sobre o caso do grampo telefônico contra o ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres. "Há uma hipótese que já foi levada ao presidente Lula por um senador de que alguém no gabinete de Demóstenes pode ter feito isso para colocar o governo em dificuldades", disse, com ar de quem faz uma grande revelação. "Você parecia apenas obtuso, mas vejo que também é maldoso", rebateu na hora Demóstenes Torres. Suplicy explicou que apenas comentou uma de suas hipóteses: "Estou interagindo com a Abin".

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