5.1.08

Operação faz-de-conta

A encenação das Farc sobre a libertação de reféns faz Chávez de bobo e expõe distorções morais sobre a "guerrilha"


Diogo Schelp - Veja

Reuters Mauricio Duenas/AFP Carlos Duran/Reuters
Réveillon na selva: Chávez tenta faturar, Kirchner faz demagogia com Garcia ao lado (o senhor baixinho de barba branca) e Oliver Stone não entende nada

São tamanhas as distorções factuais e morais em torno da questão dos reféns que seriam libertados na virada do ano na Colômbia, sob os auspícios do venezuelano Hugo Chávez, que é preciso relembrar algumas realidades. A organização que mantém cerca de 800 pessoas em seu poder, conhecida pela sigla Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), não é formada por "guerrilheiros marxistas", como repete a denominação usual. Nem Marx endossaria as barbáries cometidas pelas Farc, que se originaram numa guerra civil ocorrida na Colômbia e depois tiveram inspiração esquerdista, mas há muito tempo degeneraram em uma espécie de seita de fanáticos que vive à custa do tráfico de cocaína. Os seqüestros em larga escala que praticam incluem mulheres e crianças, mantidas em condições hediondas. As reféns cuja falsa libertação foi anunciada eram Consuelo González, uma ex-senadora de 57 anos, seqüestrada em 2001, e Clara Rojas, assessora política da mais famosa das vítimas das Farc, Ingrid Betancourt – ambas foram raptadas quando Ingrid fazia campanha presidencial, sem chance, mas com grande destaque. Clara teve um filho "nascido em cativeiro", como tem sido escrito casualmente, de uma relação "consensual", como se fosse normal uma mulher prisioneira na selva engravidar de um namorico com um de seus raptores. Hugo Chávez não teve uma atuação humanitária na Operação Emmanuel, o nome da pobre criança que usou sem nenhum pudor, mas sim publicitária: pretendia faturar prestígio e humilhar seu adversário colombiano, Álvaro Uribe. Aliás, não foi Uribe o culpado pelo fracasso da libertação. As Farc enganaram seu aliado Chávez, a quem prometeram um "ato de desagravo" pelos confrontos com Uribe, juntamente com a projeção mundial que lhe valeria a soltura de duas mulheres inocentes e um menininho. Fizeram Chávez de bobo. Por mais amigo que seja dos narcoterroristas, ele não teria feito tanta onda se não acreditasse realmente que voltaria com o trunfo na mão de Villavicencio, cidade colombiana onde montou o circo.

No papel de coadjuvante desse faz-de-conta na selva esteve um trio inacreditável: Marco Aurélio Garcia, assessor do presidente Lula e simpatizante das Farc; o cineasta e inocente inútil americano Oliver Stone e o ex-presidente argentino Néstor Kirchner, que perdeu o primeiro réveillon pós-posse de sua mulher e sucessora, Cristina – uma festa meio amargurada pelo "caso da mala", os 800.000 dólares enviados da Venezuela para a Argentina durante a campanha. Nenhum dos representantes oficiais agiu como intermediário neutro: chegaram exaltando Chávez e saíram culpando Uribe. O Itamaraty chegou a divulgar um comunicado falando da necessidade de dar "condições" para a entrega dos reféns – ou seja, responsabilizando o governo da Colômbia.

"Culpar o governo colombiano é uma inversão total de papéis", diz o deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), uma rara voz de sensatez e de foco humanista na política brasileira. "Há uma parcela da esquerda do continente, e também da européia, que cultiva uma visão unilateral dos direitos humanos, segundo a qual apenas governos de direita devem respeitá-los." O réveillon na selva dos amigos das Farc até poderia ser engolido, e mesmo celebrado, se pelo menos abrisse alguma esperança para os inocentes seviciados há anos na selva. A suspeita de que foi tudo armação desde o início se confirmou com uma informação-bomba do presidente colombiano: a de que o pequeno Emmanuel estava já havia dois anos num orfanato, onde tinha sido abandonado com um braço quebrado e marcas de leishmaniose no rosto. Testes de DNA confirmaram, na sexta-feira passada, que o menino no orfanato é filho de Clara. O pai de Uribe foi assassinado pelas Farc; o atual ministro das Relações Exteriores, Fernando Araújo, fugiu depois de passar seis anos como refém; por tentar fazer o mesmo, Ingrid Betancourt ficou acorrentada pelo pescoço em várias ocasiões. Em sua temporada na selva, Oliver Stone definiu assim as Farc: "Parece que são um exército de camponeses lutando por uma vida digna".

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