26.1.08

Autópsia da corrupção

Relatório da Polícia Federal diz que fisiologismo político e desvio de dinheiro infestam órgãos públicos e empresas estatais

Policarpo Júnior

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Foto Sergio Lima/Folha Imagem

Maurício Marinho, diretor dos Correios, foi filmado recebendo propina e narrando como funcionava o esquema de corrupção na estatal. O caso detonou o escândalo do mensalão, que levou o Supremo Tribunal a processar quarenta pessoas. A Polícia Federal investigou e concluiu que o fisiologismo está disseminado em todas as áreas do governo. Os partidos usam os cargos públicos para desviar dinheiro e abastecer campanhas eleitorais


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Vídeo de Marinho recebendo dinheiro
Em maio de 2005, VEJA publicou uma reportagem revelando o monstro que se cria quando se misturam no mesmo ambiente interesses públicos, privados e políticos. Um diretor da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) foi flagrado em uma gravação de vídeo recebendo propina e narrando em detalhes o funcionamento de uma estrutura clandestina de arrecadação de dinheiro. As imagens correram o mundo e provocaram o maior escândalo político desde o impeachment do presidente Fernando Collor. O Congresso instaurou uma comissão parlamentar de inquérito e, a partir dela, desvendou-se uma enorme rede de corrupção envolvendo gente graúda do governo, parlamentares e empresários. O esquema, batizado de mensalão, arrecadava dinheiro em empresas públicas para subornar deputados. Quarenta pessoas estão sendo processadas por crimes de corrupção e formação de quadrilha. Agora, quase três anos depois, a Polícia Federal concluiu a investigação sobre a gênese do escândalo. Os Correios eram exatamente aquilo que as imagens mostraram – um covil usado pelos políticos para desviar dinheiro público mediante a indicação de pessoas para ocupar cargos estratégicos. Funcionava nos moldes de uma organização criminosa, com chefes, escalões de comando, contabilidade própria, ameaças, extorsões e pagamentos de propina.

VEJA teve acesso ao relatório final da Polícia Federal sobre o caso. O documento revela o poder de destruição de uma das piores pragas da política brasileira: o loteamento de cargos. Em 130 páginas, a Polícia Federal disseca, a partir dos Correios, a maneira como os políticos tomam de assalto empresas públicas para satisfazer interesses pessoais e partidários. O relatório ajuda a entender por que deputados e senadores, independentemente de credo ou ideologia, vivem numa guerrilha permanente para indicar seus afilhados para cargos no governo federal, estadual ou municipal. Fica evidente que a meta a ser perseguida é o binômio poder e dinheiro – principalmente dinheiro, que compra o poder. Maurício Marinho, o funcionário filmado recebendo propina, foi escolhido para ocupar o cargo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), uma das catorze agremiações aliadas ao governo. Por sua mesa, em três anos, transitou boa parte dos negócios realizados pela companhia. A polícia, com a ajuda de auditores, constatou que os contratos assinados por Marinho e outros diretores dos Correios, em sua maioria, foram "cavilosamente fraudados". Há casos de licitações dirigidas, compras sem necessidade, conluio entre empresas e superfaturamento em índices inacreditáveis de 400%. Tudo isso envolvendo mais 8 bilhões de reais em recursos. Parte desse dinheiro, segundo a polícia, foi desviada dos cofres públicos para os bolsos dos corruptos e alimentou campanhas políticas.

Dida Sampaio
O ex-deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, foi indiciado por crime de formação de quadrilha. Foi dele a responsabilidade pela indicação dos funcionários que arrecadaram propina para o partido

As suspeitas sobre as verdadeiras motivações dos políticos em busca de cargos públicos sempre existiram no imaginário dos eleitores, mas essa é a primeira vez que ela se materializa de forma tão evidente. Os partidos estão no centro do que a polícia chama de "esquema criminoso" dos Correios. Dois deles foram apontados no relatório da polícia: o PTB e o PT, mas não está descartada a possibilidade do envolvimento de outras organizações, como o PMDB. No caso do PTB, ficou comprovado que o presidente do partido, o ex-deputado Roberto Jefferson, "realizou um verdadeiro loteamento" dos Correios para operar "fábricas de dinheiro". O esquema funcionava da seguinte maneira: para prestar serviços à estatal, a empresa interessada aceitava destinar um porcentual de seus ganhos ao partido, que variava de 3% a 5% de tudo o que recebesse. O acerto era feito diretamente com os representantes da agremiação. O grau de requinte chegava ao ponto de a quadrilha manter uma contabilidade on-line do dinheiro desviado. A polícia apreendeu no computador de um dos dirigentes petebistas uma planilha mostrando em detalhes como era cobrada a propina partidária. O arquivo, com o sugestivo nome de "conta corrente", mostrava o nome da empresa, o valor do contrato, o funcionário responsável pela cobrança, o porcentual do acerto e a freqüência do pagamento.

Em períodos de eleição, o PTB ainda exigia das companhias que fornecessem uma ajuda direta aos seus candidatos. Os empresários eram lembrados de que, para continuar desfrutando seus gordos contratos com os Correios, a vitória nas urnas era imprescindível. Cada um deles recebia um CD com a matriz do material de campanha dos candidatos do partido. Normalmente, eram pedidos de santinhos e camisetas com a foto do político e o nome do partido. "As solicitações de contribuições aos fornecedores da ECT por parte dos empregados dos Correios, membros da quadrilha, eram explícitas e algumas vezes chegavam à beira da extorsão. Além da entrega de dinheiro em troca de informações e de benefícios indevidos nos procedimentos administrativos de licitação, nas prorrogações de contratos, na repactuação de preços, os fornecedores da ECT também contribuíam diretamente para o partido nas campanhas eleitorais", descreve o relatório policial. Não se sabe quanto o PTB arrecadou nos Correios, mas as estimativas mais modestas falam em 10 milhões de reais. Roberto Jefferson e os dirigentes indicados pelo PTB foram indiciados por crime de formação de quadrilha, corrupção e fraude em licitações. O líder trabalhista ainda vai enfrentar outro processo. Quando explodiu o escândalo, o ex-deputado disse que estava sendo vítima de extorsão. Numa curiosa inversão de papéis, a falsa denúncia levou à prisão do consultor Arlindo Molina, que ficou detido durante nove dias, enquanto os corruptos permanecem livres até hoje. "Espero que o Ministério Público cumpra seu dever e acuse o ex-deputado por crime de denunciação caluniosa", diz Molina.

Paulo Liebert/AE
O PT, do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, mentor e chefe do mensalão, foi apontado como suspeito de participar da quadrilha que, junto com o PTB, saqueou os cofres dos Correios

As diretorias dos Correios foram divididas – ou "loteadas", como afirma a polícia – também entre os políticos do PT e do PMDB. O resultado das investigações mostrou que o método trabalhista não era exclusivo do partido. Segundo o relatório, as nomeações para os Correios e para outras empresas públicas obedeciam ao mesmo critério. Os parlamentares indicavam nomes afinados com seus interesses, que eram avalizados pelo então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e por Silvio Pereira, então secretário-geral do PT. Esses dois personagens, como se sabe hoje, foram os mentores do mensalão, o esquema clandestino de arrecadação de fundos do PT. O relatório mostra que o Partido dos Trabalhadores também deixou suas digitais em fraudes e desvios de dinheiro nos Correios. A Polícia Federal detectou graves irregularidades na área de tecnologia da estatal, como fraude em licitações e cobrança de propina. "Tais atos dizem respeito à possível atuação de uma quadrilha comandada por pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores", descreve a polícia. No período investigado, entre 2003 e 2005, o setor foi comandado por Eduardo Medeiros, um petista abençoado por José Dirceu e Silvio Pereira. Há dois inquéritos na PF vasculhando exclusivamente a ação dos petistas.

Paulo Liebert/AE
Silvio Pereira, ex-secretário-geral do PT, fisgado no mensalão, saiu rindo à toa de uma condenação simbólica. Ele avalizava as indicações de cargos nos Correios

Um dos alvos de investigação federal citados no relatório é a empresa de computadores Novadata. No vídeo, Maurício Marinho contou que a companhia conseguiu uma série de benefícios nos Correios depois de fazer um "acerto" com a diretoria de tecnologia. Levantamentos feitos pela Controladoria-Geral da União e anexados ao inquérito mostraram que a Novadata conseguiu um reajuste inexplicável no valor de um de seus contratos e ainda venceu outra licitação, cujos critérios de escolha foram absolutamente irregulares. A empresa também foi poupada de multas por atraso na execução dos serviços. A Novadata pertence ao empresário Mauro Dutra, amigo e companheiro de pescaria do presidente Lula há mais de duas décadas. Dutra também exerce o papel de arrecadador extra-oficial de recursos para campanhas petistas e é dono de uma ONG que recebeu dinheiro público para treinar trabalhadores – e que prestava conta do serviço usando notas fiscais frias. "Apesar de ainda não ter sido cabalmente provado, Mauro Dutra é suspeito de ter feito acertos com servidores de pelo menos duas áreas dos Correios para vencer uma licitação e, também, para obter reajuste de 5,5 milhões no valor de um contrato", diz o relatório.

O escândalo, que nasceu com as revelações de Maurício Marinho e tragou, com a descoberta do mensalão, o que se supunha ainda existir de ética em alguns partidos políticos, expôs as vísceras do que há de pior na política brasileira. Mas, ao que parece, não serviu nem de lição. Na semana passada, em plena reunião ministerial – um evento tradicionalmente nobre e simbólico –, o presidente Lula aproveitou a presença do contingente de ministros para falar exatamente sobre distribuição de cargos. A chamada base aliada do governo, da qual ainda faz parte o PTB de Roberto Jefferson, vive ameaçando se rebelar se cargos e mais cargos não lhe forem imediatamente entregues. O fisiologismo não é uma invenção de Lula ou do PT. Ele faz parte de uma conveniente estratégia política usada por todos os presidentes que o antecederam. A diferença, agora, é que as negociações de cargos, por seu caráter pouco nobre e suas intenções nada explícitas, são escancaradas, sem nenhuma cerimônia. "O fisiologismo sempre existiu, mas Lula o levou ao paroxismo e ficou prisioneiro dele. Sem o mensalão, o governo só tem cargos e emendas para compor sua base de sustentação", analisa a cientista política Lucia Hippolito.

2008 é ano eleitoral. Mas isso, aparentemente, tem pouca relevância na discussão sobre cargos. Afinal, os interesses em colocar afilhados no governo seriam todos republicanos. Os políticos querem fazer nomeações porque acham que suas experiências de vida e seus partidos podem ajudar a melhorar o país. "O cargo é uma coisa simbólica, que serve para mostrar que se tem poder. Isso ajuda o deputado a implementar suas idéias em benefício da população", explica o deputado Mário Negromonte, líder do PP na Câmara, outro dos partidos da base aliada do governo. Maurício Marinho, Roberto Jefferson, José Dirceu, Silvio Pereira, o mensalão, o fisiologismo e a corrupção nos Correios seriam, portanto, exceções nesse universo de boas intenções. Diz a Polícia Federal: "Ao longo dos anos vem ocorrendo, tanto nos Correios quanto em outras empresas estatais do país, uma espécie de ‘loteamento’ dos cargos em comissão a pessoas dos mais diversos matizes políticos que se alternam no poder. Através desse instrumento censurável, busca-se angariar recursos financeiros junto às empresas privadas (...) Esses recursos, geralmente provenientes de ‘caixa dois’, são, em parte, destinados aos partidos políticos infiltrados nas empresas públicas à custa da dilapidação do erário levada a cabo por meio de fraudes de toda ordem realizadas em licitações".

GUERRA SANTA

Os líderes da chamada base aliada explicam as razões que levam deputados e senadores a disputas fratricidas por cargos no governo. E, ao contrário do que diz a Polícia Federal, as razões, quase sempre, são genuinamente republicanas

Tasso Marcelo/AE

"Há cargos de claro interesse político, que os partidos têm motivos para ocupar para implementar suas idéias. É o caso do PDT com o Ministério do Trabalho, área de afinidade histórica do partido. Mas esses casos são minoria. Na maioria, não dá para explicar qual é o interesse. O que me espanta é que antes era escândalo a troca de votos por cargos. Agora, essas negociações são apregoadas em rede nacional de rádio e TV."
Miro Teixeira, líder do PDT na Câmara

Celso Junior/AE

"Deputados e senadores precisam mostrar poder dentro do governo para desenvolver sua carreira política. Com os cargos, o político consegue atender à comunidade, atrair apoio dos prefeitos e montar sua base. Dependendo do cargo que você indique, fica próximo de empresários e financiadores de campanha, o que é essencial para todo político atualmente."
Ricardo Izar, vice-líder do PTB na Câmara

Sergio Dutti/AE

"A idéia de coalizão que eu tenho é de um presidencialismo parlamentarista. O presidente pega um setor e entrega a um partido que o apóia. Esse partido implementa suas políticas e passa a ser responsável pelos resultados. O PMDB, por exemplo, tem muito interesse na área da agricultura. Deveria ocupar integralmente esse ministério, todos os cargos de confiança, e garantir o apoio de seus parlamentares ao governo."
Michel Temer, presidente do PMDB

Joedson Alves/AE

"O cargo é uma coisa simbólica, que serve para mostrar que se tem poder. E o maior poder que você pode mostrar na base é a indicação de aliados para os principais cargos, do delegado do Ministério da Agricultura, do chefe da representação do Ministério da Saúde. Esse poder, além de simbólico, também pode ajudar o partido e o deputado a implementar suas idéias em benefício da população."
Mário Negromonte, líder do PP na Câmara

Celso Junior/AE

"Em um governo de coalizão, a administração deve ser compartilhada entre os partidos, o que significa distribuir cargos para os parlamentares. O político quer os cargos porque lhe dão visibilidade, que é essencial para sua eleição. Quem tem um cargo no DNIT em seu estado pode decidir quais obras serão priorizadas e comparecer a todas as inaugurações. É a face da atuação política dele, é voto na certa."
Luciano Castro, líder do PR na Câmara

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