Índios do Vale do Javari pedem socorro contra a hepatite
Descontinuidade de ações e falta de vacinação a intervalos regulares deixaram o terrível saldo de 80% dos adultos e 15% das crianças das comunidades indígenas da região com hepatite. “É gravíssimo, vou pressionar na mesa bilateral União Européia e Mercosul”, afirmou o parlamentar europeu Vittorio Agnolotti, após receber denúncia da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Barbara Arisi (*)
BELÉM - O mundo melhor já não é possível para Estevão Marubo, o velho indígena que caminha em meio aos jovens de dreadlocks e tatuagens de jenipapo feitas por habilidosas mãos de mulheres amazônicas no Fórum Social Mundial em Belém do Pará. Estevão vive no Vale do Javari, Amazonas, segunda maior terra indígena no Brasil, e perdeu oito parentes para a hepatite. “Sobrou só eu e minha mulher”, conta.
“Um dia antes de começar o Fórum Social Mundial, dia 26 de janeiro, morreu um de nós vítima de hepatite hemorrágica, o Edilson Kanamarí. Ele tinha só 43 anos”, diz Jorge Marubo, da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Conheci Edilson em 2006, quando acompanhei uma assembléia indígena no Vale do Javari. Naquele ano, o assunto principal da reunião havia sido a calamidade em que se encontrava o sistema de saúde dos povos do Javari, sob responsabilidade da Funasa (Fundação Nacional da Saúde). De lá para cá, a saúde só piorou. O número total de mortos por hepatite soma 100. Na Terra Indígena Vale do Javari, vivem 3.700 pessoas em cerca de 50 comunidades. São seis povos contatados pelo governo brasileiro (Korubo, Mayoruna, Marubo, Matis, Kanamari, Kulina) e outros considerados pelos indígenas como autônomos, ou índios isolados, segundo a FUNAI.
Pela estrada, conosco, marcham apressados no rumo da tenda indígena da Universidade Federal Rural do Pará (UFRA) índios de diversas etnias que vivem na Amazonia brasileira, Kayapós com pinturas de urucum, Kaxinawás com intrincadas pinturas corporais. Muitos estão aqui para protestar contra a iminente construção de hidrelétricas (grandes UHEs e as pequenas PCHs) que proliferam por toda floresta desde que o governo Lula começou a construir as obras previstas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC, chamado pelos ecologistas brasileiros de “imPACto”). Estevão é dos que vieram denunciar as péssimas condições de saúde em suas áreas e pedir socorro internacional.
O serviço de saúde sempre foi precário no Javari. Em 1976, por exemplo, quando o povo Matis foi contatado pela FUNAI, morreu 2/3 da população, os Matis chegaram a ser apenas 87 em 1983. Agora, são cerca de 300. A saúde era ruim quando estava sob responsabilidade da FUNAI, mas deteriorou de vez a partir de 1991, quando o governo Collor implantou a política neoliberal de diminuir a responsabilidade do estado e transferi-la para entidades de direito privado. A Funasa passou a terceirizar os serviços de assistência através de conveniadas indígenas. A partir de então, descontinuidade de ações, falta de vacinação a intervalos regulares deixaram o terrível saldo de 80% dos adultos e 15% das crianças com hepatite, de acordo com dados da própria Funasa. Além disso, a malária é endêmica e há muitas outras doenças como filaria e tuberculose.
“Se nada for feito com urgência, nós vamos desaparecer em 20 ou 30 anos”, fala ao microfone Jorge Marubo, após adentrar com um grupo de mais 30 indígenas do Javari a Tenda Cuba 50 anos, interrompendo um evento organizado pela Fundação Perseu Abramo. Os presentes os receberam com aplausos. Havia uma transmissão ao vivo de televisão internacional, as palavras de Jorge e outros caciques do Javari chegaram longe, como eles queriam. De lá, a delegação do Javari seguiu seu périplo. Correram pelo campus da UFPA, com suas flechas, zarabatanas e gritos agudos, ocuparam a sala de imprensa do Fórum Social Mundial. “Se os jornalistas não prestassem atenção, iríamos desligar os cabos da internet”, disse Waki Mayoruna.
Na noite anterior, a ação fora planejada pelos 30 membros da delegação do Javari, sentados na tenda de lona azul, na escola Mário Barbosa, onde diversos povos indígenas estavam hospedados. O que se ouve não são falas de uma assembléia política, são desabafos de homens como César Marubo. Ele lembra como, em 2005, tentou salvar suas duas filhas pequenas. “Eu trabalhei dias e noites para minhas meninas viverem, chá, tabaco, reza, muito trabalho de pajé, mas elas morreram, as duas no mesmo dia, no meu colo. Fui para Cruzeiro do Sul, endoideci, queria morrer, comprava briga e só vivi porque meus amigos me arrastavam para fora do bar quando a situação engrossava demais.”
Eles já pediram ajuda aos poderes federais, mas todos parecem amarrados. No Fórum, o pessoal do Javari aproveitara para conversar com a procuradora Debora Duprat (6ª Câmara do Ministério Público Federal), elogiada publicamente por diversas lideranças de outras etnias que comentaram que sua pequena estatura escondia a mulher forte que ela é. Tiveram uma reunião improvisada e tensa. Waki Mayoruna disse que ele depositara confiança nela, mas agora achava que ela também não iria fazer nada. “Matxó”, chamava-lhe Waki com força em sua língua materna Mayoruna. O jovem tradutor vertia para o português as queixas de Waki. “Matxó, mulher, você prometeu na audiência pública realizada em Atalaia do Norte que o Ministério Público que nos ajudaria. Mas meus parentes estão morrendo”. Débora Duprat respondeu que, finalmente, conta com dois promotores em Tabatinga (cidade fronteriça do Brasil com Colômbia e Peru) e isso irá agilizar muito as coisas, mas que ela não é do Ministério da Saúde e não pode providenciar os refrigeradores com vacinas, os médicos e enfermeiros das quais eles necessitam com urgência. “Preciso ser sincera com vocês, não posso fazer mais nada”, respondeu a procuradora com um lenço juvenil a prender-lhe o cabelo e um certo ar triste de quem sabe que mesmo seu poder de defensora pública não vai salvar essa gente.
Com o presidente da FUNAI, Márcio Meira, também não fora diferente. “Vocês sabem e eu também sei que não posso fazer nada”, explicou. “Mas a FUNAI, pela Constituição Federal de 1988, é responsável pelos povos indígenas”, retrucou Jorge Marubo. Meira também assumira a fraqueza de sua posição à frente do mais importante órgão federal quando o assunto é indigenismo. O jeito é procurar ajuda internacional, pensa Jorge Marubo, ele lembra-se de quando os Médicos Sem Fronteira estiveram no Javari.
Enquanto correm da tenda de Cuba para a Sala de Imprensa, aproxima-se um senhor calvo italiano e apresenta-se numa língua de babel, típica do Fórum. “Chamo-me Vittorio Agnolotti, sono membro do parlamento europeu, médico infectologista”. Alguns jornalistas italianos haviam avisado o deputado que os indígenas do Javari estão desesperados e buscam ajuda internacional. Em meio ao ginásio e à balbúrdia, Agnolotti espera sentado a meu lado que Estevão, Cesar, o jovem professor Makë Bush Matis contem suas histórias e façam suas exigências em língua nativa, português e tradução ao inglês frente ao batalhão da imprensa com seus microfones e câmeras. “Posto de saúde, geladeira, vacinas”, exige o jovem Makë Bush Matis, com seus vistosos brincos e pendente nasal de nácar.
Por fim, Jorge Marubo entrega ao parlamentar europeu a moção e um documento onde pede ajuda à União Européia em nome da UNIVAJA (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). “A situação é gravíssima, incrível, irei pressionar via acordo bilateral União Européia e Mercosur e na recém criada Câmara Paritária América do Sul e Europa”, promete Agnolotti. “Queremos a Cruz Vermelha, os Médicos Sem Fronteira, Terre des Hommes, quem puder que venha nos salvar, o governo brasileiro nos abandonou”, pede Jorge Marubo.
Aos poucos, o bolo humano se desfaz, os jornalistas vão escrever suas matérias, outros enviam suas fotos, combinam entrevistas por rádio. Os índios ficam por ali mais um pouco, pensam em testar seus dardos de zarabatana no teto do ginásio, depois resolvem voltar para a escola Mário Barbosa e esperar o horário de voltar para casa, afinal foram 7 dias em barco para vir a Belém, para voltar serão outros 11 dias de subida do Amazonas e Solimões.
Na tenda indígena, uma hora depois do protesto e da ocupação da sala de imprensa pelos povos do Javari, o ministro da Justiça Tarso Genro afirma que a saúde indígena voltará a ser de responsabilidade do Ministério da Justiça e não será mais terceirizada. Para Waki Mayoruna, Estevão Marubo e Makë Matis essas conversas de Brasília não mudam nada, não salvam a vida de ninguém, são apenas espera e burocracia. Eles precisam sim é de médicos, lugares onde conservar as vacinas em geladeiras e ação imediata. Parece que a única esperança pode vir de longe mesmo, quem sabe deste médico italiano, parlamentar? Ou da Cruz Vermelha? Os índios do Javari pedem apenas para não morrer, um mundo melhor já é pedir muito. Afinal, Estevão Marubo e sua mulher não tem idade nem ânimo para ter novos filhos.
(*) Barbara Arisi é antropóloga.
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