Duda Teixeira, de Lima, Paraguai
Fotos Manoel Marques |
PRONTOS PARA A GUERRA |
A faixa na qual se lê "Fuera brasilero" não é o tipo de mensagem que um brasileiro esperaria encontrar em país amigo. No Paraguai, infelizmente, essa chocante palavra de ordem pode ser vista nas estradas do interior, hasteada na entrada de acampamentos de sem-terra. Longe de ser apenas retórica, ela se traduz em violência física e ameaças contra o meio milhão de brasileiros e descendentes que vivem numa larga faixa de terras férteis próximas à fronteira com o Brasil. Em algumas partes – sobretudo no departamento de San Pedro, o mesmo onde o presidente Fernando Lugo fez sua carreira política como bispo católico –, quem trafega em veí-culos com placas brasileiras arrisca-se a ser atacado a pedradas ou tiros. Na semana passada, quase três dezenas de fazendas com proprietários brasileiros estavam cercadas ou já tinham sido invadidas. Atritos entre o Brasil e os governos populistas de países vizinhos agora são rotineiros – mas no Paraguai é diferente, pois as possibilidades de uma tragédia humana são reais e enormes.
O número de brasiguaios é quatro vezes o total de brasileiros em todos os outros países da América do Sul. No exterior, só a comunidade nos Estados Unidos é mais numerosa. A primeira conseqüência de um surto de violência xenófoba na área rural paraguaia, do qual já se vêem os primeiros sinais, seria um êxodo brasiguaio. O Brasil, em especial os estados de Mato Grosso do Sul e Paraná, se veria diante do desafio de receber os produtores que retornarão e da necessidade de tomar medidas para reintegrá-los na economia nacional. O êxodo será um pesadelo logístico e um desgaste sem precedentes para o governo do presidente Lula. "O Paraguai é a parte mais sensível e volátil no relacionamento com os países limítrofes", diz Rubens Barbosa, ex-embaixador nos Estados Unidos. "Caso um brasileiro venha a morrer, haverá certamente uma comoção nacional."
O marco da hostilidade contra os brasiguaios foi a eleição do presidente Lugo, em abril. Durante a campanha, ele prometeu promover uma reforma agrária integral, e, ainda que não tenha sido explícito, o Movimento Sem-Terra entendeu que as terras dos imigrantes seriam desapropriadas. Em maio, uma bandeira brasileira foi queimada em praça pública em Curupaiti, departamento de San Pedro, e a onda de violência prolongou-se por semanas. Fazendas foram invadidas. Silos e equipamentos agrícolas, queimados. Hoje, paraguaios armados impedem o plantio da nova safra em pelo menos 20% da área em mãos de produtores brasileiros. "Eles nos enxotam de nossas terras dizendo que isso não é lugar de brasileiro", diz Marcelo Kaefer, 23 anos, filho de um produtor rural brasileiro que há trinta anos trabalha no país. "São extremamente racistas." No início de outubro, quando ele trabalhava na lavoura, foi seqüestrado por quinze homens armados. Como nenhum deles sabia dirigir, Marcelo foi obrigado a conduzir o trator até um acampamento de sem-terra nas proximidades. Ele só foi libertado quando a polícia e seu pai chegaram. Marcelo nasceu no Paraguai, o que não melhora seu conceito junto aos sem-terra. "Para eles, não sou paraguaio de sangue."
Há dezenas de relatos similares. Não é sem motivo que muitos fazendeiros estão se armando ou contratando seguranças particulares para vigiar as lavouras e proteger suas famílias. "Nem mesmo temos cerca aqui, porque nunca tivemos problemas com os vizinhos paraguaios", diz o brasileiro Lirio Vettorello, de 57 anos, trinta deles no Paraguai. Desde a posse de Lugo, a Fazenda Recanto Tropical, de sua propriedade, foi invadida três vezes por um grupo de oitenta pessoas. Em todas elas, a polícia retirou à força os invasores. Mas os sem-terra permaneceram acampados em frente à porteira. De tempos em tempos, entram na propriedade e montam barracas. Há trocas de tiros e princípios de incêndio. Em setembro, um funcionário da Bunge, a multinacional de origem holandesa dos grãos, encarregado de verificar a altura do trigo plantado na propriedade, foi atacado a tiros. Contaram-se 32 furos de bala em sua picape. "Essa fazenda é tudo o que eu tenho. Não posso sair daqui", diz Vettorello, que dorme com uma escopeta calibre 12 ao lado da cama.
O ressentimento contra os imigrantes não é generalizado no país. A maioria dos paraguaios vê o Brasil com simpatia e torce pela seleção brasileira como se fosse a sua própria, com direito a festa nas ruas de Assunção. A xenofobia está concentrada entre os sem-terra e outros grupos ultranacionalistas. Contudo, o discurso exigindo mais dinheiro por Itaipu proferido por políticos tanto da situação quanto da oposição e as manchetes publicadas quase diariamente contra o Brasil nos jornais de maior circulação fizeram com que o antibrasileirismo se espalhasse. Em sua campanha, Fernando Lugo afirmou diversas vezes que o Paraguai deveria deixar de ser marionete do Brasil. Essa versão, repetida diversas vezes, fez com que pela primeira vez a simpatia dos paraguaios pelos argentinos, medida em pesquisas durante a campanha eleitoral, ultrapassasse o sentimento favorável aos brasileiros. "Se considerarmos que os paraguaios já foram comandados de Buenos Aires, trata-se de um dado surpreendente", disse a VEJA o paraguaio Francisco Capli, diretor do instituto First de pesquisas de opinião.
A região fronteiriça onde se concentram os brasileiros é um mosaico de culturas agrícolas como soja, girassol, milho e trigo, que representa um terço do PIB paraguaio. A pujança econômica faz com que a esquerda paraguaia tache os brasileiros de latifundiários, uma distorção da realidade. A maioria das propriedades tem em média 50 hectares e está organizada em cooperativas. Jorge Eichellberger, 27 anos, vive com a mãe e a esposa paraguaia em uma casa de madeira de um único cômodo no departamento de San Pedro. Paranaense, ele comprou 50 hectares de terra do Indert, o órgão que regula a terra no Paraguai. Em 2004, começou a plantar feijão-de-corda, milho e soja. Cinco meses após a eleição de Lugo, um grupo de sem-terra montou acampamento em seu terreno. Hoje, há 150 deles a 50 metros da casa de Eichellberger. A família é ostensivamente observada pelos invasores. No sábado, 29, Eichellberger e outros seis brasileiros formaram um comboio de tratores para preparar a terra para o plantio de soja. Na volta, foram atacados a tiros de revólver por seis paraguaios em motos. "Eles estavam a menos de 4 metros da gente. Foi sorte não terem nos acertado", diz ele.
Lugo coloca-se contra as invasões de terra e defende a propriedade privada. Em entrevistas à imprensa, diz ter um plano de reforma agrária que se estenderá até 2023. Nas reuniões com produtores brasileiros, o presidente promete enviar policiais para garantir as novas safras. Muitos de seus partidários estão frustrados com tanta moderação. "Lugo é um hipócrita miserável", disse a VEJA Tomás Zayas, dirigente da Associação de Agricultores do Alto Paraná (Asagrapa), que reúne sem-terra e acampados. "A reforma agrária é urgente. Se não for feita logo, o país explodirá", afirma. Lugo declarou que as terras a ser desapropriadas seriam aquelas que o ditador Alfredo Stroessner entregou a amigos de forma irregular. A quase totalidade delas, porém, já foi revendida pelo menos três vezes e seus donos detêm os títulos de posse. Um levantamento recente em San Pedro mostrou que 90% das terras em mãos de brasileiros são regulares.
O destino dos brasiguaios não é apenas uma crise prestes a explodir no colo do governo brasileiro. Também determinará o futuro do Paraguai. Aqueles que querem expulsar os produtores agrícolas e dar as costas ao Brasil sonham em isolar o país e viver dos recursos naturais (as águas do Rio Paraná, que movem as turbinas de Itaipu, são o principal disponível). Para consolidar essa opção, contam com a ajuda em dinheiro e petróleo prometida pelo venezuelano Hugo Chávez. O segundo caminho é aquele aberto com Itaipu e os colonos brasileiros. Com energia abundante e uma agricultura moderna, a população paraguaia triplicou e espalhou-se pelo território. A produção de grãos foi multiplicada por trinta e a pobreza rural caiu de 84% para 25% na década de 90. "Os brasileiros levaram consigo os valores dos seus pais e avôs, imigrantes italianos, alemães e japoneses. Com perseverança e conhecimento, transformaram o Paraguai em um país empreendedor", diz o economista Wagner Enis Weber, diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Sociais do Paraná-Paraguai (Ineespar), em Curitiba. "A riqueza produzida nas últimas décadas é muito superior à que ocorreu em épocas anteriores, e se deu em um regime democrático, fato inusitado para o país." Graças à atuação dos brasileiros, existem hoje 20 000 produtores rurais paraguaios. Todos querem o máximo de distância possível dos sem-terra. Se quiser levar o país adiante, Lugo só terá uma opção: trabalhar com o Brasil e os brasiguaios.
AMEAÇAS CONSTANTES
O brasileiro Edumir Kovalsky, 53 anos, vive com a mulher e dois filhos há 32 anos no Paraguai. Seus filhos estudam em escolas paraguaias e falam três idiomas: português, espanhol e guarani. Há seis anos, sua terra começou a ser visitada por paraguaios que alegam ter o título de propriedade da área, obrigando-o a se defender na Justiça. Como as ameaças são constantes, ele e os vizinhos se revezam na guarda das lavouras. "O Paraguai já foi um paraíso", diz Kovalsky, que guarda com cuidado o título de propriedade da sua terra. "Agora, vivemos sem saber o que pode acontecer amanhã." |
INVASÕES E TIROS Desde a posse de Lugo, a Fazenda Recanto Tropical foi invadida três vezes. Em todas as ocasiões, a polícia retirou os sem-terra, mas esses permaneceram acampados em frente à propriedade. De tempos em tempos, eles entram na fazenda e levantam barracos de madeira. Há trocas de tiros e os casebres são queimados. "Essa fazenda é tudo o que eu tenho. Não posso sair daqui", diz o brasileiro Lirio Vettorello, dono da Recanto Tropical. Hoje, ele dorme com uma escopeta calibre 12 ao lado da cama. |
SEM PÁTRIA Marcelo Kaefer, 23 anos, nasceu no Paraguai, mas é filho de um brasileiro. Em outubro, dirigia o trator quando quinze homens armados o levaram à força para um acampamento de sem-terra. "Dizem que devo voltar ao Brasil. Para eles, não sou paraguaio de sangue." |
INIMIGOS NA PORTA
Jorge Eichellberger, 27 anos, vive com a mãe e a esposa paraguaia em uma casa de um cômodo, em Lima. Ele comprou 50 hectares do Indert, o órgão que regula a terra no Paraguai. Em setembro, cerca de 150 sem-terra montaram acampamento a poucos metros de sua casa. Quando uma pessoa de sua família entra na lavoura, homens armados advertem para que saiam dali. "Não temos tranqüilidade", diz ele. "Essa guerra eu perdi."
Nenhum comentário:
Postar um comentário