17.12.08

Latinos racham entre símbolos Alca e Alba

Em cúpula de América Latina e Caribe na Bahia, mandatários expõem divergências sobre modelo de integração regional

Grupo à esquerda defende união voltada para dentro, alijando os EUA; chefes de governo à direita acham que região não deve se fechar


Coube, surpreendentemente, a Bharrat Jagdeo, presidente da pequena e periférica Guiana, explicitar a divisão entre os países de América Latina e Caribe, escondida em meio à cautelosa retórica latino-americanista e integracionista.
Falando pela manhã, logo após o discurso do equatoriano Rafael Correa, Jagdeo cobrou de seus pares (representantes de 33 países do subcontinente) que se definam em relação ao próximo grande evento regional, a Cúpula das Américas, marcada para abril em Trinidad e Tobago.
"Vocês querem que a Cúpula das Américas tenha êxito ou querem uma alternativa [que ele próprio lembrou ser a Alba, Aliança Boliviariana para as Américas, bloco idealizado pelo venezuelano Hugo Chávez]?".
O processo de Cúpula das Américas foi inventado pelos Estados Unidos, ainda no governo Bill Clinton, e a cereja do bolo nessa iniciativa seria a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que, no entanto, não conseguiu sair do lugar, acima de tudo por divergências entre os Estados Unidos e o Brasil, que são os dois grandes pólos das Américas.
De certa forma, portanto, Jagdeo coloca América Latina e Caribe entre a Alca e a Alba, se tomadas como símbolos de pólos ideológicos opostos.
O equatoriano Correa, sem mencionar Alca ou Alba, havia defendido uma integração voltada para dentro.
Sugeriu até uma "nova arquitetura regional" em contraposição ao bordão "nova arquitetura financeira internacional", que se discute também desde o governo Clinton e foi ressuscitada agora, com a crise global.
Ou seja, é basicamente o mesmo dilema: todos os 33 líderes latino-americanos e caribenhos são a favor da integração regional, mas a ala esquerda (Correa, o venezuelano Hugo Chávez, o boliviano Evo Morales e o nicaraguense Daniel Ortega) a quer voltada para dentro.
Jagdeo contrapõe com uma frase que é óbvia, mas necessária nesse contexto: "Somos parte do mundo. Temos que discutir a arquitetura financeira global, em vez de apenas regional".
Não se pense que se trata de uma visão restrita ao presidente de um país pequeno de menos de 900 mil habitantes e jamais chamado à mesa dos grandes debates. Como Jagdeo pensam, por exemplo, o colombiano Álvaro Uribe, o peruano Alan García e o mexicano Felipe Calderón.
Os dois primeiros não compareceram às cúpulas na Bahia. Uribe alegou a necessidade de atender às vítimas das inundações do rio Magdalena, o principal do país (desculpa avalizada por Chávez, às vezes crítico feroz, às vezes amigo de infância de Uribe). Alan García usou a desculpa de praxe (outros compromissos).
Mas Calderón, sem se referir especificamente ao dilema da região, afirmou claramente: "A saída [para a crise financeira global] não é cerrar as fronteiras nem a nível regional nem global".
As propostas de Correa foram na direção oposta: sugeriu reforçar o incipiente Banco do Sul; criar um Fundo de Reservas do Sul, "que sirva de respaldo para uma eventual crise de balanço de pagamentos"; e mecanismos de compensação no comércio regional (na prática, deixaríamos de usar o dólar, o que aliás está sendo feito de maneira incipiente no comércio Brasil/Argentina).
Correa, no entanto, não mencionou o fato de que seu país dolarizou a economia e que ele, apesar de seu discurso "bolivariano", não tem planos de desdolarização.
Calderón, sempre sem mencionar situações específicas, não deixou de alfinetar a recém-decretada moratória de parte da dívida equatoriana. Cobrou reforçar a "segurança jurídica, que criaria um ambiente propício aos investidores", ainda mais em um momento em que os investimentos externos escasseiam.
"Segurança jurídica" é um bordão geralmente usado em lugar de "respeito aos contratos", respeito que Correa rompeu, ao declarar a moratória.

Brasil
Nesse tiroteio indireto -e até elegante-, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva fica no meio, espremido entre uma retórica latino-americanista e uma prática de política econômica aplaudida pelos países ricos.
No seu próprio discurso, Lula se disse disposto a "dobrar a aposta no nosso bloco" (no caso o Mercosul).
Mas, ao contrário de Correa, que prioriza a "arquitetura financeira regional", o Brasil participa, por meio do G20, da discussão sobre a arquitetura financeira global (ao lado de México e Argentina, entre os países latino-americanos; não há caribenhos no G20).
Em meio às diferentes visões sobre o processo de integração, sobram retórica romântica e afirmações grandiloqüentes.
De Chávez, por exemplo: "Estamos começando um caminho, um caminho que se perdeu há muito tempo, o caminho de Bolívar, San Martín, O'Higgins [heróis da independência de países andinos, Argentina e Chile, respectivamente], de nossos fundadores de pátria" .
Ainda de Chávez: "O importante é que estamos juntos aqui sem o apadrinhamento do império [os EUA]".
Raúl Castro, o presidente cubano, falou em "Nuestra América", o paraguaio Fernando Lugo em "Pátria Grande" (latino-americana e caribenha).
Já o chileno José Miguel Insulza, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, a instituição que reúne todos esses países (menos Cuba) mais Canadá e Estados Unidos, põe um pouco de realismo:
"Não se pode confundir uma instituição, como a OEA, com uma conferência como esta", disse à Folha.

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