Editorial do Estadão
O presidente Lula mudou. Desde que a força dos fatos pôs abaixo a sua fantasia de que "se a crise americana chegar por aqui será uma marolinha", na qual "não dará nem para esquiar", ele passou a acrescentar ao costumeiro triunfalismo de seus pronunciamentos uma agressividade desmedida contra quem quer que tenha alertado, desde o primeiro momento, para os efeitos da retração global sobre a economia brasileira. Na raivosa retórica presidencial, os que discordam de seus prognósticos sobre a virtual imunidade do País aos desdobramentos do colapso financeiro de Wall Street se dedicam a fazer "uma propaganda sistemática em favor da crise". Foi o que disse, com o semblante alterado - vermelho de raiva e não de vergonha de pronunciar semelhante patacoada -, ao discursar durante a inauguração de um trecho - inacabado, para variar - da Ferrovia Norte-Sul, em Colinas do Tocantins. "Tem gente", acusou, "que vai deitar rezando para que a crise pegue o Brasil, para esse Lula se lascar."
Eis um rematado disparate. Nenhum brasileiro de posse de suas faculdades mentais há de querer que Lula se lasque, se isso significar que a economia descarrilou. Na realidade, a síndrome do "quanto pior, melhor" é alheia ao debate público nacional. Mesmo os críticos do governo e os adversários políticos do lulismo sempre torceram para que a proverbial sorte do presidente, da qual ele falava de boca cheia, não o deserdasse, pelos óbvios e alentados ganhos que ela trouxe ao País nos anos recentes - se é disso que se tratou. Mais ainda agora, é de desejar que a boa estrela de Lula se mantenha para que o Brasil sofra o mínimo com a crise que "não foi causada por nós", como ele insiste, nesse ponto coberto de razão. Mas, da mesma forma que os demais países emergentes, o Brasil se beneficiou da pletora de créditos em circulação no globo, alimentando um formidável ciclo de prosperidade - real, sem dúvida, conquanto artificiais as suas bases, como ficou patente.
O presidente decerto não pensa o que diz - imaginar o contrário seria fazer pouco-caso de sua inteligência. O que parece desatar a sua ira teatral é a avaliação do que o espera. Não é uma perspectiva que suscite o bom humor. O País acaba de chegar ao ápice de uma trajetória de expansão econômica que foi decisiva para fazer de Lula o governante mais popular dos tempos modernos em seu país e um dos mais admirados do mundo. Mas desse promontório o que se vislumbra é um declive - menos ou mais acentuado, o tempo dirá. Só que a descida coincidirá perversamente com a construção da candidatura Dilma Rousseff e tenderá a afetar - em grau ainda incerto também - as suas chances de herdar o patrimônio eleitoral do presidente que a escolheu como sucessora, numa decisão, diga-se de passagem, estritamente pessoal. Está claro que, diante da mudança dos ventos da economia, Lula preferiu não esperar o novo ano para desencadear a campanha pró-Dilma. "Temos muita coisa para fazer", disse numa entrevista recente. "E 2009 será um ano de inauguração de muitas obras e de muita costura política."
Foi, sem tirar nem pôr, o que se viu na terça-feira em Colinas do Tocantins, na solenidade - ou melhor, no comício - em que o presidente verberou aqueles que supostamente estariam rezando para ele se lascar. Ele se guardou de citar pelo nome a ministra presente ao seu lado - afinal, era um ato de governo -, mas duas vezes afirmou ter "certeza" de que fará a sua "sucessão", evitando assim falar em sucessor ou sucessora. Mas a costura política se fazia a céu aberto. Se Lula trabalha para ter o PMDB com a sua candidata - indicando o seu companheiro de chapa -, ali estava um aliado inestimável, o ex-presidente José Sarney, o idealizador da Ferrovia Norte-Sul quando ocupou o Planalto, entre 1985 e 1989 (o que é um exemplo de livro de texto sobre o ritmo das coisas que dependem da administração federal). Sarney, o patrono da entrada do PMDB no governo Lula, foi mais do que enfático em sua adesão a Dilma.
"Estive em muitos cargos da República e poucas vezes vi alguém tão dedicado à causa pública, tão estudioso dos problemas do Brasil quanto Dilma", entoou. "Ela é uma sacerdotisa do serviço público." (Já não bastasse ser a mãe do PAC…) Esse, em suma, o pano de fundo para o espetáculo da indignação do presidente.
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