7.7.08

O resgate de Ingrid Betancourt

"Somos do Exército. Vocês estão livres"

O resgate de Ingrid Betancourt não foi só uma vitória de Uribe.
Foi uma vitória da civilização sobre a barbárie


Diogo Schelp

John Vizcaino/Reuters
O reencontro de Ingrid com sua mãe, em Bogotá

VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem
Quadro: Uma operação espetacular
Exclusivo on-line
Conheça o país: Colômbia

Nos seis anos e quatro meses que passou na selva, em poder das Farc, a colombiana Ingrid Betancourt teve tempo de sobra para pensar em como terminaria seu sofrimento. Quando estava otimista, supunha que seria libertada dali a alguns anos, depois de um acordo entre o governo e o narcoterrorismo. Quando era tomada pelo pessimismo, a refém imaginava-se morta por causa dos maus-tratos e da falta de assistência médica. O final foi mais feliz que o sonho mais otimista. Na quarta-feira da semana passada, Ingrid, três americanos e onze soldados e policiais colombianos foram resgatados das mãos do narcoterrorismo sem que fosse disparado um só tiro. "Uma operação perfeita, perfeita", não parava de elogiar Ingrid em suas primeiras declarações numa base aérea em Bogotá. A operação de resgate foi o último de uma série de golpes devastadores sofridos neste ano pelas Farc – e o mais humilhante.

A organização de narcotraficantes foi ludibriada e, ao cair na cilada, expôs seu grau de enfraquecimento moral e militar. Para tornar mais dolorida a derrota, ficou demonstrada a correção da estratégia do presidente Álvaro Uribe de não ceder à chantagem terrorista. As Farc ainda mantêm em cativeiro 23 membros do Exército e da polícia e três dirigentes políticos – os chamados prisioneiros de valor político –, além de 700 cidadãos comuns, seqüestrados apenas pelo valor financeiro do resgate cobrado às famílias. O vasto estoque de vítimas não se compara à carga simbólica de Ingrid Betancourt. Quando foi seqüestrada, durante a campanha eleitoral em 2002, ela era um fenômeno político na Colômbia. Senadora mais votada em 1998, disputava a Presidência por um micropartido chamado Oxigênio Verde, sem chance de sucesso. O seqüestro a tornou uma cause célèbre na França, onde tinha vivido e casado com um francês, o que lhe valeu a cidadania do país. Seus dois filhos, Melanie, 22 anos, e Lorenzo, 19, moram em Paris.

Inaldo Perez/AFP
Os dois terroristas presos durante o resgate e as correntes que eles usavam para prender os reféns. "Cesar", o carcereiro-chefe, é o de camiseta branca


O presidente Nicolas Sarkozy assumiu sua libertação como uma missão pessoal. A França e a família de Ingrid pressionavam Uribe a negociar e ceder aos terroristas. A mãe da seqüestrada, Yolanda Pulecio, que foi miss na juventude, era presença constante em Caracas, onde, ao lado de Hugo Chávez, desancava o presidente colombiano. Hoje, toda a família está publicamente grata a Uribe. Diz bastante a respeito do caráter pernicioso das Farc o fato de os narcoterroristas não terem se preocupado em prestar assistência médica a seu refém mais precioso. Ingrid, que no dia de sua libertação aparentava surpreendente boa forma física, quase sucumbiu a crises renais e de fígado durante o cativeiro. Recuperou-se com a assistência prestada por outro refém, um enfermeiro militar. Libertada, ela descreveu uma rotina de picadas de insetos, banhos apressados sob a pressão de guardas armados, necessidades fisiológicas feitas em buracos, noites de insônia que passou acorrentada pelo pescoço e a brutalidade dos algozes. "Imaginem o que era para mim urinar na frente dos guardas durante a noite, à luz de lanternas", contou Ingrid. "Havia sevícias e muita maldade, coisas que não vou contar em detalhes porque são demasiadamente dolorosas."

Uma operação como a que libertou Ingrid Betancourt exige anos de preparativos em termos de treinamento de pessoal e trabalho de inteligência. Nos últimos anos, as Forças Armadas colombianas têm tido sucesso em infiltrar seus agentes nas fileiras das Farc e também em cooptar terroristas com promessas de anistia e gordas recompensas. O antecedente imediato da operação xeque, como foi chamado o resgate, foi a fuga de um policial, refém das Farc, no ano passado. Ele forneceu detalhes sobre os acampamentos terroristas na selva onde eram mantidos os seqüestrados. O trabalho do serviço de inteligência militar foi favorecido pela precariedade das comunicações entre as várias quadrilhas terroristas que, dispersas pelo território colombiano, compõem as Farc. As comunicações ficaram ainda mais difíceis depois que o governo de Uribe aprimorou a interceptação de telefonemas e de mensagens por rádio e computador enviadas pelo bando facinoroso. As mensagens podem estar registradas em pen drives, mas precisam ser levadas por portadores, como na Idade Média. O que agentes infiltrados fizeram foi enviar, por intermédio desses portadores, uma mensagem falsa que, segundo uma fonte do Exército colombiano contou a VEJA, foi entregue diretamente a Gerardo Aguilar, codinome "Cesar", e a Enrique Gafas, os carcereiros responsáveis por Ingrid. Era uma ordem para que reunissem os reféns e os conduzissem a um determinado ponto na selva, a 330 quilômetros de Bogotá, de onde seriam levados por um helicóptero de uma "organização humanitária" para um encontro com o chefão das Farc, Alfonso Cano.

Em um detalhe que revela a qualidade do serviço de inteligência colombiano, seus agentes descobriram que "Cesar" andava ressentido por receber pouca atenção de seus superiores. Para afagar seu ego, a mensagem assegurava que ele fora escolhido para a missão por ser considerado por Cano um "homem confiável". As dificuldades de comunicação impediam que Cesar ou Gafas pudessem confirmar a mensagem diretamente com o secretariado das Farc. Os seqüestrados tampouco suspeitavam de qualquer armação. Ingrid contou que, na quarta-feira, ela e os outros reféns foram acordados às 5 horas da manhã para ser conduzidos até os helicópteros. "Perguntei ao comandante que nos levava e ele disse que não sabia o que ia acontecer, se nos libertariam ou se apenas nos mudariam de lugar", disse Ingrid.

Mehdi Fedouach/AFP
Ingrid com o filho Lorenzo e o presidente Sarkozy, em Paris: recepção de heroína

Às 13h30 um helicóptero de fabricação russa, pintado de branco e vermelho, pousou na clareira. Ingrid conta que ficou confusa. "De dentro saíram uns personagens surreais, vestindo jalecos e camisetas do Che Guevara e com uma atitude que não combinava com a de membros de organizações humanitárias", relata. Nas últimas semanas, os comandos haviam tido aulas de atuação para simular o jargão dos simpatizantes das Farc. Para não despertar desconfianças, toda a operação foi montada de forma que se parecesse com aquela de janeiro, quando Consuelo González e Clara Rojas foram entregues a uma missão enviada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Havia até uma falsa equipe da rede de TV chapa-branca de Hugo Chávez, a Telesur. Ingrid pensou, decepcionada: "Esta deve ser mais uma farsa para as Farc nos filmar e distribuir as imagens como prova de vida". Em seguida, os reféns foram algemados para subir no helicóptero. Cesar e Gafas pegaram carona. Logo que o aparelho levantou vôo, os dois terroristas foram convencidos a entregar as pistolas, a pretexto de que aquela era uma missão humanitária. Em seguida, foram dominados. "Quando me dei conta, o comandante que tantas vezes fora cruel e déspota estava no chão, de cueca e olhos vendados", contou Ingrid. O chefe da missão de resgate anunciou, então: "Somos o Exército nacional. Vocês estão livres". Ingrid achou que o helicóptero fosse cair com os pulos de felicidade dados pelos reféns.

Só a birra ideológica pode negar o sucesso de Álvaro Uribe em transformar a Colômbia num país melhor. Com a ajuda dos Estados Unidos, que lá injetaram 5 bilhões de dólares desde o início da década, ele expandiu e treinou as Forças Armadas, investiu em comunicações e serviços de inteligência. O resultado é que as Farc se reduziram a uma sombra do que eram. "A debandada, que antes se concentrava nas fileiras mais baixas, já chegou ao escalão intermediário do grupo", disse a VEJA o cientista político colombiano Nicolás Urrutia, especialista em assuntos militares. Antes do resgate, a popularidade de Uribe estava em extraordinários 84%. Agora, bate em 91%. Ele já mudou a Constituição uma vez para poder ser reeleito presidente. No momento, namora a possibilidade de um terceiro mandato. Apesar de Ingrid já ter se declarado a favor de mantê-lo na Presidência, será melhor se ele resistir à tentação. Uribe fez por merecer o segundo mandato – mas um terceiro o colocaria no patamar de Hugo Chávez, cuja fome de modificar a Constituição para garantir reeleições sucessivas esbarrou na rejeição popular. "O presidente pode escolher entre dois caminhos: perpetuar-se no poder, porque não vai enfrentar opositor, ou terminar seu segundo mandato e entrar para a história como o homem que dobrou as Farc", sintetizou o senador Gustavo Petro, líder da oposição.

As muitas derrotas do narcoterrorismo

Javier Casella-Mindefensa/AFP
Força especial do Exército colombiano: treinamento com ajuda americana

Militar
Os narcoterroristas não são páreo para as unidades de ataque rápido do Exército colombiano. Mais de 10.000 terroristas foram mortos nos últimos cinco anos. Dos sete membros do secretariado, três morreram neste ano

Política
As imagens de reféns acorrentados pelo pescoço provocaram repulsa mundial, fazendo as Farc perder a batalha da propaganda. Até Hugo Chávez se distanciou do grupo

Moral
Quase 12.000 terroristas desertaram desde 2002. Recompensas em dinheiro e anistia oferecidas pelo governo incentivaram os terroristas a entregar ou a assassinar seus chefes

Estratégica
Devido à pressão militar e de inteligência, os contingentes terroristas estão isolados em grotões remotos. A comunicação entre as várias quadrilhas é precária e há falta de mantimentos em todas as frentes

Nenhum comentário: