12.7.08

Dantas contra a parede

O banqueiro que esteve no centro dos maiores escândalos de corrupção da última década foi preso duas vezes em uma única semana. Ah, se ele contasse o que sabe!

Preso, solto, preso de novo, solto... Essa era na semana passada a vida do banqueiro Daniel Dantas, o peixe mais graúdo a cair nas malhas de uma operação da Polícia Federal batizada de Satiagraha, slogan do movimento popular de resistência pacífica com que o faquir Mahatma Gandhi liberou a Índia de três séculos de dominação britânica. Freqüentador assíduo do noticiário policial, foi a primeira vez, no entanto, que Dantas conheceu o xadrez. Dois de seus intermediários foram filmados enquanto ofereciam 1 milhão de dólares a um delegado da Polícia Federal. O banqueiro pretendia assim excluir seu nome e o de sua família de uma investigação sobre crimes financeiros que vão de gestão fraudulenta a evasão de divisas, passando pelo uso indevido de informações privilegiadas. Além do banqueiro, a operação prendeu mais dezesseis pessoas, suspeitas de integrar a quadrilha de Dantas ou de manter estreitas relações comerciais e financeiras com ela. O flagrante foi a única manobra de inequívoco brilho da Satiagraha, de resto uma operação mambembe.

Poucos homens de negócios representam com mais nitidez a natureza perversa do capitalismo brasileiro dependente do estado macrófago do que o banqueiro Daniel Dantas. Pelas mãos do ex-ministro Mario Henrique Simonsen, que o considerava seu aluno mais capaz, Dantas despontou há duas décadas como um jovem e astuto economista saído do conceituado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Durante as privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, o banqueiro de origem baiana reinventou-se. À frente de seu próprio banco, o Opportunity, recebeu a bênção do governo para unir-se aos poderosos fundos de pensão de estatais, como Previ e Petros, formando uma espécie de parceria público-privada cujos efeitos desastrosos perduram até hoje. Dantas conseguiu do governo um mandato para ser o gestor dos recursos investidos por esses fundos em um conglomerado de empresas recém-privatizadas, que reunia desde a Santos Brasil, terminal portuário em Santos, até as operadoras de telecomunicações Brasil Telecom, Telemig Celular e Amazônia Celular. A parceria funcionava desta forma: o governo entrava com o dinheiro e Dantas dava as cartas.

Foi assim, como empresário privado de patrimônio público, que Dantas despontou como o mais astuto entre os inúmeros capitalistas brasileiros cujo sucesso se deve a privilégios oficiais obtidos pela bajulação e, principalmente, pela corrupção de autoridades de plantão. Ele é expoente entre os negociantes e sistemas empresariais que nunca se expuseram ao poder purificador da concorrência, que se escondem sob as asas estatais para fugir dos rigores da lei e do vento trazido pela abertura econômica. Nada sabem sobre inovação ou produtividade, os reais motores da criação de riqueza no sistema capitalista. Nessa condição, Dantas envolveu-se em praticamente todos os grandes escândalos de economia mista – estatal e privada – da última década no Brasil.

O primeiro deles, revelado por VEJA em 1998, mostrou grampos telefônicos em que o ex-ministro das Comunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros e o então presidente do BNDES, André Lara Resende, discutiam formas de beneficiar Dantas na aquisição do melhor quinhão do leilão de privatização da Telebrás, a até então empresa monopolista de telecomunicações no país. Ambos saíram do governo depois das revelações de VEJA. Em 2004, já no governo Lula, descobriu-se que o banqueiro Daniel Dantas havia contratado a empresa de espionagem Kroll para bisbilhotar, ao espanto da lei, autoridades, jornalistas e juízes. Com isso, pretendia convencer o governo a manter sob seu controle os fundos de pensão estatais – o que conseguiu até 2006. Com o mesmo propósito, o de agradar, corromper e ameaçar o poder, o banqueiro destinou 152,4 milhões de reais para abastecer o duto do mensalão, esquema por meio do qual o governo comprava deputados da base aliada. Ainda pagou à Gamecorp, empresa de jogos eletrônicos do filho do presidente Lula, 100 000 reais mensais para fornecer conteúdo ao portal de internet da Brasil Telecom.

Entre os acusados na operação, também se destacam o empresário Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta. Ao lado de Dantas, Nahas teria montado um esquema de lavagem de dinheiro e de uso indevido de informações privilegiadas. Já Pitta foi pego acidentalmente nas investigações, grampeado enquanto pedia dinheiro aos doleiros e assessores do empresário libanês naturalizado brasileiro. Também estão na lista de investigados a irmã de Dantas, Verônica, um dos sócios dele, Carlos Rodenburg, e o ex-deputado federal petista Luiz Eduardo Greenhalgh. Detido em sua cobertura, no Rio de Janeiro, Dantas passou a semana toda entre a cadeia e a liberdade. No dia 8, foi levado para a carceragem da PF em São Paulo. No dia 10, pela manhã, conseguiu um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal e foi liberado. À tarde, a Justiça expediu novo mandado de prisão contra ele, depois que a polícia apresentou ao delegado provas adicionais da tentativa de corrupção. Enquanto o banqueiro voltava para a prisão, os outros acusados citados na Operação Satiagraha deixavam a cadeia, beneficiados, também eles, por habeas corpus apresentados ao STF. Dantas passou mais uma noite em cana até que, no fim da tarde de sexta-feira 11, seus advogados conseguiram que o STF expedisse um segundo habeas corpus em seu favor em apenas dois dias.

Dantas preso ou Dantas solto é assunto da Justiça. Mas Dantas calado ou Dantas contando tudo o que sabe é do interesse do Brasil. O ideal é que fale, que conte tudo o que sabe... Sua carreira e fortuna foram construídas inteiramente na zona de sombra gigantesca projetada pelo capitalismo de estado. Sem os favores de legisladores, de figuras-chave do Executivo e dos gestores das maiores fortunas líquidas do Brasil, os fundos de pensão de empresas estatais, empresários como Daniel Dantas não existiriam. No processo de formação de sua riqueza pessoal e do poder de seu grupo empresarial, o Opportunity, ele manipulou, corrompeu ou simplesmente se associou a dezenas de altas autoridades de diversos governos, em especial os de FHC e Lula. VEJA fez uma lista de vinte grandes escândalos recentes sobre os quais Daniel Dantas teria muito a dizer.

O outro implicado preso e solto logo, o financista Naji Nahas também detém informações do maior interesse para o Brasil e os brasileiros. Ele aparece em diversas investigações brasileiras e internacionais, acusado de ser um dos elos entre interesses privados e autoridades do governo Lula. No inquérito resultante da Operação Satiagraha, Nahas surge como um fanfarrão. Ora ele se gaba de sentar-se com o rei da Arábia Saudita para combinarem juntos o preço do petróleo, ora, na mais lisérgica das afirmações do inquérito policial, se vangloria de obter do presidente do Banco Mundial (sic) a informação sobre a taxa de juros a ser fixada pelo Fed, o banco central americano, vinte dias antes de sua divulgação. Isso é tão maluco quanto alguém ligar para o fabricante de guarda-chuvas para saber se vai chover no fim de semana. Mesmo assim, o delegado da Polícia Federal viu em Nahas um Deus ex machina do capitalismo financeiro planetário. Pena ele ter preferido se entreter com as fantasias em torno do personagem pois, no Brasil, há evidências de que Nahas tem mesmo mais poder do que lhe é atribuído. Em 2006, uma reportagem de VEJA revelou que a empresa Telecom Italia fez pelo menos um saque de 3,25 milhões de reais em nome de Nahas – personagem central da crise que abalou a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro em 1989. O pagamento foi feito em dinheiro vivo, em pacotes de 150 000 reais, sacados de uma agência do Bradesco em São Paulo. A transação foi confirmada pelas partes envolvidas. Nahas justificou ter recebido o dinheiro para ajudar a Telecom Italia a resolver pendências com o banco Opportunity, de Daniel Dantas. Ele não deu detalhes sobre que pendências foram essas. Está aí uma boa pergunta para fazer a Naji Nahas!

Meses depois, graças ao trabalho de promotores italianos, ficou-se sabendo que os 3,25 milhões de reais foram apenas uma fração modesta da pilha de dinheiro pago pela Telecom Italia. A Justiça italiana já sabe que Nahas recebeu 25,4 milhões de euros (euros sim, nem dólares nem reais, o que, pela cotação do período, somou uma avalanche de 80 milhões de reais). A maior parte dos pagamentos, de acordo com pessoas envolvidas nas investigações, ocorreu em 2002 e 2003. O motivo? Segundo as autoridades italianas, o dinheiro se destinava ao pagamento de propinas a políticos brasileiros situados em cargos-chave para assim obter o apoio deles na disputa que a Telecom Italia travava com o Opportunity de Dantas. Os delegados da PF, os procuradores federais e os juízes brasileiros, tão determinados em sua busca pela punição dos criminosos de colarinho branco e dos marajás da corrupção, não se preocuparam, no trabalho investigatório que culminou com as prisões de Nahas e Dantas, em apurar essas transações para lá de suspeitas. Não há a preocupação de identificar os destinatários dos 25,4 milhões de euros que os italianos remeteram para Nahas.

Na semana passada, Nélio Machado, o advogado de Dantas, questionou o fato de dirigentes do PT nunca serem presos nas diligências da Polícia Federal. Ele tem certa razão. Com a prisão do banqueiro e de Nahas, o combate à corrupção no país ganha uma dinâmica curiosa. Até o governo Lula, era lugar-comum criticar a parcialidade com a qual autoridades policiais perseguiam funcionários públicos corruptos e deixavam de lado seus corruptores, os tubarões. Dá-se agora o inverso. Os corruptores são presos sem que os corruptos apareçam. Cadê os corruptos?



20 questões que Daniel Dantas ainda pode esclarecer

Ano 1997
Governo FHC
1. Privatizações
Otavio Magalhães/AE
Privatizações: o governo entrou com o dinheiro, e Dantas ficou com o controle

O que ocorreu: Daniel Dantas foi incluído pelo governo no consórcio formado pelos fundos de pensão e pela CSN que saiu vitorioso do leilão da Vale do Rio Doce.
O que Dantas pode esclarecer: que argumentos convenceram Ricardo Sérgio, o então influente diretor do Banco do Brasil, a incluí-lo no consórcio.



Ano 1998
Governo FHC
2. Privatizações

O que ocorreu: grampos revelados por VEJA mostraram que o BNDES operou para favorecer o grupo Opportunity no leilão de privatização das teles.
O que Dantas pode esclarecer: por que a diretoria do BNDES decidiu favorecê-lo.


Ano 1998
Governo FHC
3. Fundos de pensão de estatais

O que ocorreu: Dantas conseguiu que a Previ e outros fundos de pensão lhe entregassem o controle acionário da Brasil Telecom quando ele havia investido apenas 1% do capital usado na criação da empresa.
O que Dantas pode esclarecer: o que convenceu os diretores dos fundos de pensão a fechar esse acordo.



Ano 2002
Governo FHC
4. Fundos de pensão de estatais

O que ocorreu: alguns dias antes da intervenção do governo federal no comando da Previ, que destituiu diretores do fundo que se opunham a Dantas, o banqueiro teve um jantar reservado com o presidente Fernando Henrique Cardoso.
O que Dantas pode esclarecer: sobre o que os dois conversaram.



Ano 2002
Governo FHC
5. Transição para o governo do PT

O que ocorreu: na edição de 22 de outubro do jornal O Estado de Minas, Dantas publicou um texto quase em código revelando supostas ameaças e achaques praticados por integrantes do governo petista que assumiria.
O que Dantas pode esclarecer: qual a chave para entender o documento.



Ano 2002
Governo FHC
6. Transição para o governo do PT
Celso Junior/AE
Delúbio: ele procurou o banqueiro antes mesmo de Lula chegar ao Planalto

O que ocorreu: Dantas conversou longamente com o então coordenador da campanha presidencial de Lula, Antonio Palocci, e com o tesoureiro Delúbio Soares.
O que Dantas pode esclarecer: o que acertaram?


Celso Junior/AE
Roberto Teixeira: 1 milhão de reais para o compadre


Ano 2003
Governo Lula
7. Telefonia

O que ocorreu: por ordem de Dantas, a Brasil Telecom contratou o advogado Roberto Teixeira para prestar-lhe consultoria. Teixeira ganhou 1 milhão de reais no período.
O que Dantas pode esclarecer: que serviço o compadre de Lula prestou ao banqueiro.



Ano 2004
Governo Lula
8. Gamecorp

O que ocorreu: por meio da Brasil Telecom, Dantas pagou à Gamecorp, empresa de games do filho do presidente Lula, 100 000 reais mensais pelo fornecimento de conteúdo para o portal de internet da Brasil Telecom. A informação foi publicada por VEJA.
O que Dantas pode esclarecer: que outros pagamentos foram feitos ao filho do presidente.



Ano 2004
Governo Lula
9. Kroll
Lula Marques/Folha Imagem
Kakay: advogado de 8 milhões de reais

O que ocorreu: o jornal Folha de S.Paulo revelou um esquema de Dantas e da empresa de arapongagem Kroll para espionar o governo, jornalistas e empresários. A PF pôs-se atrás do banqueiro, que contratou o advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, procurador informal do ex-ministro José Dirceu. Kakay levou 8,5 milhões de reais.
O que Dantas pode esclarecer: que serviços Kakay efetivamente prestou.



Ano 2004
Governo Lula
10. Telefonia

O que ocorreu: José Dirceu, então ministro-chefe da Casa Civil, subitamente passou a defender os interesses de Dantas junto ao governo.
O que Dantas pode esclarecer: a que se deveu a súbita simpatia de Dirceu por Dantas.



Ano 2004
Governo Lula
11. CVM

O que ocorreu: a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) aplicou a Dantas uma multa extremamente branda por manter aplicações de investidores residentes no Brasil no Opportunity Fund, fundo sediado nas Ilhas Cayman. O procedimento feria a regulamentação do Banco Central. Hoje, essa acusação é justamente o pilar da investigação que levou o banqueiro à prisão.
O que Dantas pode esclarecer: como ele convenceu a CVM a manter sua licença para operar no sistema financeiro.



Ano 2004
Governo Lula
12. CVM

O que ocorreu: enquanto o caso se arrastava na CVM, Dantas se reunia seguidamente para tratar do assunto com o petista Ivan Guimarães, ex-auxiliar de Delúbio Soares e ex-presidente do Banco Popular.
O que Dantas pode esclarecer: sobre o que Dantas e Guimarães conversaram.



Ano 2004
Governo Lula
13. Matisse
Leopoldo Silva/Folha Imagem
O publicitário petista Paulo de Tarso: contratado para "reposicionar" Dantas

O que ocorreu: Dantas contratou a agência Matisse, de propriedade de Paulo de Tarso Santos, publicitário das campanhas de Lula em 1989 e 1994, para "reposicionar" a marca Brasil Telecom no mercado de telefonia. A informação foi revelada por VEJA.
O que Dantas pode esclarecer: por que justamente Paulo de Tarso foi escolhido e quanto foi pago a ele.


Joedson Alves/AE
Valério: o dinheiro do mensalão também veio do banqueiro


Ano 2003/2005
Governo Lula
14. Mensalão

O que ocorreu: Dantas pagou ao publicitário Marcos Valério ao menos 152,4 milhões de reais por meio das concessionárias de telefonia Brasil Telecom, Telemig e Amazônia Celular.
O que Dantas pode esclarecer: o que ele ganhou do governo por abastecer o propinoduto do mensalão.



Ano 2003/2005
Governo Lula
15. Mensalão

O que ocorreu: anotações na agenda de Fernanda Karina Somaggio, ex-secretária de Marcos Valério, mostravam encontros entre o publicitário e o sócio de Dantas, Carlos Rodenburg. Ao menos um desses encontros contou com a presença de Delúbio Soares.
O que Dantas pode esclarecer: sobre que tipo de negócio conversaram.



Ano 2002/2005
Governo FHC e Lula
16. Telefonia
Sergio Lima/Folha Imagem
Mangabeira: consultoria de longo prazo para o Opportunity

O que ocorreu: Dantas pagou pelo menos 1,1 milhão de dólares ao então professor Mangabeira Unger, a pretexto de tê-lo como consultor e representante legal nos Estados Unidos.
O que Dantas pode esclarecer: que tipo de consultoria Mangabeira prestou e por que custou tão caro.



Ano 2005
Governo Lula
17. CPI dos Correios

O que ocorreu: o senador Heráclito Fortes, velho aliado de Dantas, disse ao ex-ministro Luiz Gushiken que a Kroll, empresa de espionagem contratada pelo banqueiro, era especializada em "rastrear contas bancárias no exterior".
O que Dantas pode esclarecer: se foi uma ameaça velada ou uma informação vazia.


O espião Frank Holder: bisbilhotagem a mando de Dantas

Ano 2006
Governo Lula
18. Dossiê da Kroll

O que ocorreu: Dantas mandou seu espião Frank Holder fazer um dossiê com contas no exterior que seriam do presidente Lula e de outros manda-chuvas do governo e do petismo. VEJA revelou a existência do dossiê e denunciou o uso que Dantas esperava fazer dele.
O que Dantas pode esclarecer: como Holder chegou às supostas contas.



Ano 2006
Governo Lula
19. Dossiê da Kroll

O que ocorreu: depois que a existência desse dossiê foi revelada por VEJA, Dantas reuniu-se em Brasília com o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos.
O que Dantas pode esclarecer: se a conversa girou em torno da autenticidade das contas.



Ano 2008
Governo Lula
20. BrOi

O que ocorreu: Dantas foi convencido a encerrar seu litígio com o governo envolvendo o controle da Brasil Telecom. Essa decisão foi essencial para a criação da gigante da telefonia BrOi.
O que Dantas pode esclarecer: os argumentos usados para convencê-lo a desistir da briga.

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