A interferência indevida da Abin
Ocupadas as atenções da opinião pública com o prende-solta de Daniel Dantas e com o que vazou das investigações da Polícia Federal (PF) sobre o labirinto de interesses e ligações dessa figura sui generis do "capitalismo político" brasileiro, ainda não subiu à vista de todos a grave impropriedade, no limite do escândalo, praticada pelo delegado Protógenes Queiroz, o responsável pela Operação Satiagraha. Do ponto de vista institucional, ele fez algo mais condenável do que autorizar a filmagem da detenção de um aturdido Celso Pitta, o ex-prefeito de São Paulo, em traje de dormir; ou do que solicitar - sem sucesso, felizmente - a prisão temporária da jornalista Andrea Michael, da Folha de S.Paulo, que revelara a existência do inquérito contra Dantas, Naji Nahas e muitos mais.
O delegado não só deixou para a vigésima quinta hora a obrigação funcional de dar conhecimento dos seus atos ao diretor-geral da PF, Luiz Fernando Correa, como - à revelia dele e sem autorização judicial - engajou informalmente nas investigações a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), dirigida, aliás, pelo ex-titular da PF Paulo Lacerda. Conforme o Estado noticiou no último sábado, Correa relatou ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, o insólito procedimento de Protógenes. Com isso, alertou, arapongas da Abin tiveram acesso a informações sigilosas que o juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Federal de São Paulo, encarregado do caso, compartilhava apenas com a PF. Lacerda disse considerar "uma rotina" a colaboração da agência com a Polícia Federal. "Os órgãos de inteligência sempre fornecem seus profissionais."
Se o fazem rotineiramente a contrapelo das normas que definem os limites da competência da Abin, pode estar se repetindo, em pleno sistema democrático, a deformação que o regime militar impôs ao ancestral da agência, o Serviço Nacional de Informações (SNI), de triste memória. O SNI surgiu para abastecer a cúpula do Executivo de informes privilegiados sobre o que se passava no País. Aparelhado, transformou-se numa polícia especial - uma Gestapo -, passando a integrar o sistema repressivo da ditadura. O "monstro", como o chamou o seu criador, Golbery do Couto e Silva, chegou a ser um Estado dentro do Estado. Decerto a Abin não irá tão longe, mas todo cuidado há de ser pouco para prevenir a confusão entre a função de coletar informações de interesse do Estado com a de policiar, mesmo quando nascida do enovelado jogo de rivalidades no setor.
Ainda no comando da PF, Lacerda teria sido impedido pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, de dar início à operação afinal conduzida pelo delegado Protógenes, com a qual se envolveu. Menos mal, a propósito, que o ministro reconheça que se cometeram na Operação Satiagraha "alguns equívocos, que servem como lição". Entre eles, "a exposição indevida de pessoas", como a do ex-prefeito Pitta; o prazo exíguo com que a alta direção da Polícia Federal ficou sabendo da movimentação do delegado em São Paulo (a quem, como não podia deixar de fazer, cobre de elogios); e o malogrado pedido de prisão da jornalista. "Não pode ser confundida uma investigação jornalística com cometimento de um delito", distingue. A par disso, Tarso parece o proverbial bombeiro quando fala do presidente do STF - "uma pessoa séria", que criticou "corretamente" a pirotecnia da PF, e de quem se declara "aliado". (Eles divergem, porém, sobre o uso de algemas.)
É também oportuna a clareza do ministro em afastar quaisquer suposições de que a polícia acobertará os companheiros do PT que eventualmente tenham passado dos limites em razão de sua associação com Daniel Dantas. O nome em pauta, como se sabe, é o do advogado e ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh, cuja desenvoltura em favor de seu cliente, com interlocutores do Palácio do Planalto - notadamente com Gilberto Carvalho, chefe de gabinete do presidente Lula -, está audível nos grampos da Polícia Federal. Depois que a Justiça rejeitou o pedido de prisão contra ele, Greenhalgh disse a Tarso que, fosse ele o ministro, jamais envolveria o seu nome num "espetáculo" como aquele. "Essa observação pressupõe que o ministro da Justiça deve proteger pessoas do partido", comentaria Tarso mais tarde. "Isso jamais vai acontecer." Mesmo porque o líder petista Tarso Genro não gosta de todos os líderes petistas que disputam a liderança do partido.
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