9.2.08

O escândalo é outro

Editorial Estadão

Como faz, pavlovianamente, sempre que suspeitas de improbidade pairam sobre o Palácio do Planalto, o ministro da Justiça, Tarso Genro, atribuiu a onda, que não pára de se avolumar, de revelações sobre o uso abusivo de cartões de crédito estatais a uma operação da imprensa mal-intencionada, para dar assunto a uma oposição silenciada pelos êxitos do lulismo. Foi o que alegou ao ser confrontado com o copioso - e surpreendentemente minucioso - noticiário sobre o que a ex-ministra da Igualdade Racial chamou de "erros administrativos" nos gastos e retiradas mediante cartão corporativo por funcionários e autoridades da administração federal. Trata-se, desdenhou, de um "escândalo artificial". De mais a mais, alegou o ministro, não fosse uma iniciativa moralizadora do presidente Lula - a criação do Portal da Transparência, de livre acesso no site da Controladoria-Geral da União (CGU) -, a mídia não teria a seu alcance, e com essa facilidade, as informações detalhadas dos pagamentos e saques feitos com os 11 mil cartões emitidos pelo governo.

Nesse ponto, Tarso tem toda razão. Pena que ele tenha deixado de combinar com os russos, no caso o chefe, antes de reaquecer as suas críticas à imprensa. Afinal, os meios de comunicação fazem rigorosamente o que Lula incentivou a sociedade a fazer quando do lançamento do portal, em 2005 - ajudar "no controle e fiscalização" do uso do dinheiro público. Não há nada de artificial, portanto, nem no exercício dessa contribuição nem nos seus resultados. É o governo que deixou o serviço pela metade. Na edição de 13 de janeiro, este jornal revelou, com base no exame dos dados disponíveis no portal, o assombroso aumento superior a 800% dos dispêndios com o cartão corporativo entre 2003 e 2007. Desde então, a massa de fatos e números trazidos ao conhecimento dos brasileiros deixa patente, à parte tudo mais, a extraordinária eficiência desse sistema de agregação de minuciosas informações objetivas, graças à tecnologia da computação, como instrumento do controle e fiscalização de que falava Lula - e que deixou de ser utilizado por quem tem a obrigação de se valer dele em primeiro lugar: o próprio governo.

Escândalo, para recorrer ao termo do ministro da Justiça, não é o produto do trabalho jornalístico que consistiu simplesmente no esquadrinhamento do fabuloso arquivo do Portal da Transparência. É, isso, a incompetência, ou inapetência, de quem de direito na cúpula do aparelho de Estado para passar periodicamente um pente-fino nos gastos declarados, para separar aqueles que respeitam as normas que regem o uso dos cartões corporativos daqueles que as transgridem, e punir os responsáveis, também com o ressarcimento dos cofres públicos. Um governo verdadeiramente comprometido com o manejo escrupuloso do dinheiro alheio - ou seja, não só da boca para fora, a fim de impressionar os incautos - não esperaria a imprensa denunciar o que ele tinha plenas condições de saber a qualquer momento, por estar escancarado diante de si, para só então mostrar-se zeloso guardião da moralidade. Se quisesse, o Executivo teria identificado as grossas irregularidades cometidas pela ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, e agido de acordo com a gravidade do que ela preferiu chamar, complacentemente, "erros administrativos".

O mesmo vale para a outra ponta das impropriedades - a do varejo das tapiocas, como a insignificância dos R$ 8,30 que o ministro dos Esportes, Orlando Silva, gastou indevidamente pelo manjar com o seu cartão, ou acima disso, embora não na escala da ex-ministra. É, notoriamente, o caso do servidor do Ministério das Comunicações que, em junho do ano passado, fez o contribuinte bancar os R$ 1.400 pela reforma de uma mesa de sinuca de uso na repartição. O que exaspera é o governo a reboque. Foi preciso que um repórter flagrasse o episódio no portal da CGU, passados sete meses, para o Ministério anunciar a abertura de uma investigação, ao fim da qual se adotarão as "medidas cabíveis", com a eventual demissão do sinuqueiro. É de se perguntar quantos malfeitos do gênero ainda aguardam o olhar de um jornalista para merecer a (tardia) atenção do governo da transparência. E quantos portadores de cartões corporativos estatais, na dúvida sobre se podem usá-los para cobrir uma despesa, não se guiam pelo cômodo princípio do "em dúvida, gaste". Afinal, de quem é o dinheiro?

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